quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - O ESPLENDOR DO FOGO



 O ESPLENDOR DO FOGO

 

Seus parentes, “os dois machos protagonistas do enigma de [seu] próprio silêncio e de [sua] angustiosa comunicação gestual”, terão de existir, temporariamente, a partir dali, “como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída”, “na prisão geográfica onde só recordar [será] possível sob pressão da materialidade selvagem e da solidariedade da guerra”. Tio Genaro e Antônio são importantes para o desenrolar ficcional, mas são representantes de mundos conceituais, o social e o mítico.

 

No meio da noite, súbita, acordo: toda a floresta está em chamas! Mas não era sonho não, conforme logo vi, e ouvi os disparos da arma de meu tio. Gritos e gritos. Na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça, meu irmão na contorcedura da grande dor, especado por flechas feito porco espinho ─ agulheiro de dor! E meu tio atrás das pélas, parecendo mal, morrendo. Os Numas nos atacavam no meio da noite, mas... eu ainda estava vivo e não ferido.

 

Foi aí que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou.[i]

 

Os dois personagens jamais ultrapassarão as barreiras que separam o mundo conceitual do mundo amorfo (não-dito), e terão de findar suas vidas, socialmente e miticamente, por intermédio do fogo. Mas, como personagens mitificados, representantes da chave para um novo recontar ficcional, poderão renascer ou não, sair das cinzas ou não, a cada leitura, a cada leitor que obtiver o privilégio de interagir com o texto receptivo de Rogel Samuel. Enquanto houver leitores reflexivos, a oferecer-lhes vida ficcional, Genaro e Antônio partirão “para a estrada como para a morte”[ii], e, páginas adiante, “no meio da noite, (...) toda a floresta em chamas, na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça”[iii], os dois terão de desaparecer (morrer) miticamente, e o personagem-narrador continuará “vivo e não ferido”, para (depois da extinção dos adjuvantes) modificar e amplificar o curso narrativo.

 

(...) o fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida. Neste caso, o devaneio é verdadeiramente empolgante e dramático; amplifica o destino humano; liga o que é pequeno ao que é grande, a lareira ao vulcão, a vida de uma acha à vida de um mundo. O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação.[iv]

 

 

Com o fogo tudo se modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O fenômeno inicial é não só o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos de vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponta do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência.[v]

 

“O fogo sugere o desejo de mudança”. A morte dos dois personagens pelo fogo (arma-de-fogo, flechas incandescentes, fogo na floresta) possibilita a alteração no rumo da primeira seqüência narrativa (sedimentada em princípio pelo arcabouço histórico) para uma segunda etapa ficcional (“a outra vida” gerenciada pela forma do narrar mítico). Com esta atitude, o proprietário da arte de narrar orienta o primeiro narrador para uma segunda dimensão ficcional (auxiliado pelo conhecimento do mito). Submetido à fervura ígnea de seu cogito diferenciador, percebe-se impelido à uma significação calamitosa (tio Genaro e Antônio consumidos pelo fogo) que anime o desenrolar do narrado. O fogo mítico, circunstancial, promove uma espécie de liberdade transitória, em busca das inovações do imaginário-em-aberto da consciência singular, interativa, porque o elemento rigorosamente indispensável ao escritor da pós-modernidade, propulsor de renovados juízos de descoberta, é o ar. O Manixi, a Cidade de Manaus e todos os personagens rogelianos que por ali transitam exalando dinamismo, se refortaleceram ao longo daqueles muitos anos de pesquisa (revelados nas Entrevistas do escritor amazonense), e se animam de um jeito incomum pela “força de elevação psíquica”[vi] do escritor.

 

 

 

E chega que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) – sim, quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fama, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no parado esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é.[vii]

 

O fogo é um elemento mítico e será, nesta segunda seqüência, a marca da renovação ficcional rogeliana. A partir da morte dos dois personagens-chave, o primeiro narrador Ribamar de Sousa, auxiliado pelo segundo, que ainda não se manifestou, terá de buscar o verdadeiro personagem-auxiliar desta alternada dimensão ficcional, possuidor da outra chave mágica, para que possa penetrar seguramente no recinto mítico do Manixi, apresentando-se à moda dos lendários heróis do passado. Seu nome é Paxiúba.

 

 

 

Manifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade, humanidade esta quase sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense), e, acima de sua aparência exterior, a matéria épica (substância épica; não confundir com Gênero Épico) se faz presente no relato ficcional, realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.

Sobre esta questão dos gêneros literários, especificamente em relação a terminologia aqui empregada ─ substância épica  (matéria épica) ─, será de sumo interesse uma explicação. O romance de Rogel Samuel, pelo ponto de vista dos conceitos teóricos cientificistas esclarecedores dos Gêneros Literários, não poderá ser renomeado como narrativa épica, uma vez que não foi escrito em versos e não apresenta os fenômenos estilísticos que caracterizam o gênero em questão. Por este ponto de vista, o personagem Paxiúba não poderá ser avaliado como herói de narrativa épica (narrativa em versos). No entanto, como no todo do texto ficcional de Rogel Samuel ─ O Amante das Amazonas ─ há substância (matéria) épica em estado ininterrupto, o personagem, quando de sua apresentação aos leitores, adquire, por transação (ajuste) ficcional, a aura dos grandes heróis do passado.

A respeito deste assunto, ainda polêmico, nos meus Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária[viii], procuro explicar esta discussão controvertida, sobre a mimese na poesia épica e gênero narrativo em prosa, incluindo também um esclarecimento em relação à questão dos Gêneros Literários nestes anos iniciais de século XXI (Terceiro Milênio).

Mimese no texto ficcional:

 

A mimésis na poesia épica (ou narrativa em versos) só poderá ser reconhecida pelos postulados platônicos, ou seja, a mimésis como reprodução (cópia) das duas realidades conhecidas pelos antigos gregos: a histórica e a mítica (ambas lineares). A idéia de mimésis como recriação da realidade, ou de realidades ─ conceito moderno ─, só começou a ser entrevista a partir do surgimento do Gênero Narrativo Ficcional, um fenômeno da Era Moderna.[ix]

 

 

 






[i] Idem: 35.


[ii] Idem: 30


[iii] Idem: 35.


[iv] BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Tradução de Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral, 1989: 22.


[v] Idem, 1990: 64.


[vi] BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 40.


[vii] SAMUEL, Rogel, 2005: 37.


[viii] MACHADO, Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária. Rio de Janeiro: NMachado, no prelo para 2008.


[ix] Idem: Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro de Teoria e Crítica Literárias que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve ─ no prelo para 2008 ─ por sua editora particular, NMachado, editora da autora, registrada no ISBN – RJ.

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