NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
“Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio
dizendo uns “bons dias...”. Aquele que, “meio envergonhado”, se aproxima
dizendo uns “bons dias” à senhora-dama Conchita Del Carmen, não é o mesmo Paxiúba que “assustou” a lavadeira Zilda,
mulher do Laurie Costa, com a urgência de sua mítica necessidade sexual.
Nesta
seqüência da narrativa rogeliana, Paxiúba perde a sua primazia heróica, pois
penetrou no Olimpo telúrico da prostituição do recinto de Transvaal, e quem se
coloca em evidência agora é o narrador da fase final do século XX, oferecendo
aos leitores de seu romance a possibilidade de alcançarem o reverso da medalha
da narrativa em prosa que caracteriza a escritura literária da era pós-moderna.
A partir do capítulo oito, a sensibilidade criativa de Rogel Samuel, já
distinguida desde as primeiras linhas de seu romance, alcança um reanimado
pódio ficcional. Nesta seqüência, já não há lugar para as ações engrandecidas
de Paxiúba, ou mesmo dos outros personagens (brancos ou índios) situados nas
fronteiras do Manixi. Em princípio, o ficcionista amazonense se mobilizou em
função de uma vigorosa retomada dos valores históricos do Estado do Amazonas,
seu lugar de nascimento, espaço geográfico brasileiro de onde se originaram os
créditos culturais que sedimentaram sua caminhada vivencial. O escritor, no
início de sua narrativa, retoma ficcionalmente o grandioso passado histórico do
Amazonas (em sentido positivo e negativo), para reagir paradoxalmente contra as
injustiças, sócio-políticas, que, gradativamente, propiciaram a decadência do
lugar. O amoroso descendente de um povo mitificado, o amante
(cultural, intelectual) das lendárias guerreiras amazonenses, o admirador
inconteste da grandiosidade histórica de seus irmãos naturais, percebe que há
mistérios a serem revelados. Esses mistérios, ao contrário das regras oficiais
da narrativa ficcional, terão de ser engendrados ficcionalmente por sua
sensibilidade ímpar, e esta sensibilidade de ficcionista incomum não se
enquadra (não se encaixilhará jamais) em padrões pré-estabelecidos. Depois da
grandiosa extensão territorial do Manixi, inédita e diferenciada, (com o seu
“magnífico, supremo, inominável, majestoso”[i]
Palácio), surgem “ratos” na cidade de Manaus. Os “ratos” se manifestam depois
da decadência e “morte do Manixi”[ii],
ativados pelo terceiro cogito do escritor-testemunha do crepúsculo da era da
borracha, surpreendido agora pela necessidade de contemplar para a
posteridade, mesmo que seja por intermédio de fragmentos narrativos, as frestas
dessa decadência (contrária às regras e aos bons costumes das puras e antigas
sociedades mitificadas, reverenciadas pelas gerações posteriores).
Revela-se, nos
capítulos finais de O Amante das Amazonas, a autêntica documentação
(pelo ponto de vista ficcional) do que não se pode avaliar, porque a presente
história sócio-cultural do escritor amazonense ainda não se completou. Urge
fazer justiça aos seus naturais (ao seu povo, que sentiu na própria pele os
estragos da decadência); urge encontrar um justiceiro que aceite a
co-participação em seus atos de autoridade judicial. Urge eliminar o mito do
grandioso em proveito do pequeno, do incompreensível, das migalhas de pão
que caem da mesa dos antigos poderosos, agora, decadentes.
Gaston
Bachelard, em A Terra e os Devaneios do Repouso[iii],
cita Tristan Tzara: “Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as
migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol”. A
Manaus da ficção rogeliana saiu de seu arcabouço vivencial infanto-juvenil. O
escritor, enquanto criança e adolescente, foi testemunha dos últimos estilhaços
do esplendor da borracha, do que restou da grandeza capitalista. Ele foi
testemunha da decadência. Foi ele que viu, por intermédio de sua sensibilidade
provinda da infância em Manaus, os “ratos”, como “um traço cinematográfico,
contínuo”, se infiltrando “entre as frestas da construção carcomida”[iv]
de sua anterior realidade sócio-existencial. Assim, percebe-se a urgência em
causar a morte do mito (autoritário, alegórico, exemplar), adotando
ficcionalmente o descontínuo existencial do momento, em prol de uma futura nova
ordem fundamental. Por este ângulo interpretativo, Paxiúba terá de morrer,
“afigurado” como homem primitivo (Paxiúba, o Mulo). Alguém terá de apertar o
gatilho e eliminar o mito, agora transmutado em ser primitivo, da face do
Amazonas. Para tanto, o narrador delega esse poder a um outro personagem, o
Benito Botelho. “Benito atirou no meio do tórax, matando-o. Benito o matou,
sim. O morto era Paxiúba, o Mulo.”[v]
Pela ótica da crítica literária
cientificista-estruturalista, terá de existir uma razão para a morte do bugre.
Por enquanto, fica a pergunta à moda da crítica fenomenológica: Qual foi o
motivo (real ou ficcional) que levou o personagem Benito Botelho a matar
Paxiúba? Sobre este assunto secreto, indagarei no capítulo a ele reservado.
[iii]
TZARA, Tristan. L’antitête. Lê nain dans soncornet, p. 44. In.: BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso. 1. ed. brasileira.
Tradução: Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 15.
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