sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A MORTE DO MITO


NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO


 

SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

 

 

 

 “Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio dizendo uns “bons dias...”. Aquele que, “meio envergonhado”, se aproxima dizendo uns “bons dias” à senhora-dama Conchita Del Carmen, não é o mesmo Paxiúba que “assustou” a lavadeira Zilda, mulher do Laurie Costa, com a urgência de sua mítica necessidade sexual.

Nesta seqüência da narrativa rogeliana, Paxiúba perde a sua primazia heróica, pois penetrou no Olimpo telúrico da prostituição do recinto de Transvaal, e quem se coloca em evidência agora é o narrador da fase final do século XX, oferecendo aos leitores de seu romance a possibilidade de alcançarem o reverso da medalha da narrativa em prosa que caracteriza a escritura literária da era pós-moderna. A partir do capítulo oito, a sensibilidade criativa de Rogel Samuel, já distinguida desde as primeiras linhas de seu romance, alcança um reanimado pódio ficcional. Nesta seqüência, já não há lugar para as ações engrandecidas de Paxiúba, ou mesmo dos outros personagens (brancos ou índios) situados nas fronteiras do Manixi. Em princípio, o ficcionista amazonense se mobilizou em função de uma vigorosa retomada dos valores históricos do Estado do Amazonas, seu lugar de nascimento, espaço geográfico brasileiro de onde se originaram os créditos culturais que sedimentaram sua caminhada vivencial. O escritor, no início de sua narrativa, retoma ficcionalmente o grandioso passado histórico do Amazonas (em sentido positivo e negativo), para reagir paradoxalmente contra as injustiças, sócio-políticas, que, gradativamente, propiciaram a decadência do lugar. O amoroso descendente de um povo mitificado, o amante (cultural, intelectual) das lendárias guerreiras amazonenses, o admirador inconteste da grandiosidade histórica de seus irmãos naturais, percebe que há mistérios a serem revelados. Esses mistérios, ao contrário das regras oficiais da narrativa ficcional, terão de ser engendrados ficcionalmente por sua sensibilidade ímpar, e esta sensibilidade de ficcionista incomum não se enquadra (não se encaixilhará jamais) em padrões pré-estabelecidos. Depois da grandiosa extensão territorial do Manixi, inédita e diferenciada, (com o seu “magnífico, supremo, inominável, majestoso”[i] Palácio), surgem “ratos” na cidade de Manaus. Os “ratos” se manifestam depois da decadência e “morte do Manixi”[ii], ativados pelo terceiro cogito do escritor-testemunha do crepúsculo da era da borracha, surpreendido agora pela necessidade de contemplar para a posteridade, mesmo que seja por intermédio de fragmentos narrativos, as frestas dessa decadência (contrária às regras e aos bons costumes das puras e antigas sociedades mitificadas, reverenciadas pelas gerações posteriores).

Revela-se, nos capítulos finais de O Amante das Amazonas, a autêntica documentação (pelo ponto de vista ficcional) do que não se pode avaliar, porque a presente história sócio-cultural do escritor amazonense ainda não se completou. Urge fazer justiça aos seus naturais (ao seu povo, que sentiu na própria pele os estragos da decadência); urge encontrar um justiceiro que aceite a co-participação em seus atos de autoridade judicial. Urge eliminar o mito do grandioso em proveito do pequeno, do incompreensível, das migalhas de pão que caem da mesa dos antigos poderosos, agora, decadentes.

Gaston Bachelard, em A Terra e os Devaneios do Repouso[iii], cita Tristan Tzara: “Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol”. A Manaus da ficção rogeliana saiu de seu arcabouço vivencial infanto-juvenil. O escritor, enquanto criança e adolescente, foi testemunha dos últimos estilhaços do esplendor da borracha, do que restou da grandeza capitalista. Ele foi testemunha da decadência. Foi ele que viu, por intermédio de sua sensibilidade provinda da infância em Manaus, os “ratos”, como “um traço cinematográfico, contínuo”, se infiltrando “entre as frestas da construção carcomida”[iv] de sua anterior realidade sócio-existencial. Assim, percebe-se a urgência em causar a morte do mito (autoritário, alegórico, exemplar), adotando ficcionalmente o descontínuo existencial do momento, em prol de uma futura nova ordem fundamental. Por este ângulo interpretativo, Paxiúba terá de morrer, “afigurado” como homem primitivo (Paxiúba, o Mulo). Alguém terá de apertar o gatilho e eliminar o mito, agora transmutado em ser primitivo, da face do Amazonas. Para tanto, o narrador delega esse poder a um outro personagem, o Benito Botelho. “Benito atirou no meio do tórax, matando-o. Benito o matou, sim. O morto era Paxiúba, o Mulo.”[v]

Pela ótica da crítica literária cientificista-estruturalista, terá de existir uma razão para a morte do bugre. Por enquanto, fica a pergunta à moda da crítica fenomenológica: Qual foi o motivo (real ou ficcional) que levou o personagem Benito Botelho a matar Paxiúba? Sobre este assunto secreto, indagarei no capítulo a ele reservado.





[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 151.


[ii] Idem: 90.


[iii] TZARA, Tristan. L’antitête. Lê nain dans soncornet, p. 44. In.: BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso. 1. ed. brasileira. Tradução: Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 15.


[iv] SAMUEL, Rogel, 2005: 89.


[v] Idem: 138.

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