domingo, 12 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

Faz-se necessário, também, não confundir o gênero narrativo ficcional com as novelas/romances de cavalaria medievais, escritas em versos e com personagens puros ─ narrativa épica medieval ─, enfraquecidas esteticamente, com o passar dos anos, porque foram adaptadas em forma de prosa, para o gosto dos ávidos leitores burgueses do século XVI e seguintes. Por esse ângulo, aqueles “novos” narradores da prosa moderna (atentar-se para o narrador do Quixote e os narradores da estética ficcional romântica), se posicionaram desiludidos ante a perda da pura heroicidade guerreira ─ própria dos destacados personagens das epopéias em versos anteriores ─, tornaram-se, por intermédio da realidade histórica que os envolvia, personagens desajustados, desequilibrados, buscando novos rumos gloriosos em um mundo disparatado, onde o progresso era a força maior. Entretanto, e mesmo assim, os “estreantes” ficcionistas de então (repito, o primeiro foi Cervantes) iniciaram a “nova” modalidade genérica ancorados firmemente em seus imaginários-em-aberto particulares, pois intuíram que seus personagens, obtidos da realidade sócio-cultural que os envolvia, apesar da fama obtida com o aparecimento daquela “recente” forma ficcional em prosa (repito: prosa diferente das “prosas palacianas” anteriores), deveriam permanecer cultuando a heroicidade do passado, e mereciam ser reanimados pelos narradores-pioneiros daquele momento, apresentando aos leitores apenas personagens mais destacados, com nomes, sobrenomes, etc. (mesmo que fossem problematizados ao longo das narrativas do período).
Assim, as exigências narrativas da Era moderna (narrativas em prosa) acompanhavam, de certa maneira, os fenômenos estilísticos da narrativa épica ─ epopéias antigas e medievais, anteriormente escritas em versos ─, os quais (os fenômenos estilísticos), dali para frente, passariam a ser reavaliados pelo olhar inteligente e a mão recriadora dos reformados humanistas da já finda Era Moderna, transmutados e problematizados ad infinitum. Portanto, e ainda assim, seriam os modernos prosadores os arautos das normas tradicionais inseridas em suas narrativas (a partir dali, em prosa ficcional), exemplos de vida comunitária, apesar das inegáveis mudanças históricas ocorridas naquele momento. Tais personagens ─ com suas vidas desajustadas, desequilibradas, graças ao“novo” momento da humanidade ─ em busca de valores que os tornassem heróicos, uma busca de ajuste ao mundo moderno que se iniciava, à moda heróica da antiguidade, mas, historicamente, impossível de ser readquirida. Mesmo com o “recente” vigorando naquele início, aqueles “novos” narradores modernos continuavam irremediavelmente buscando a “perfeição” das antigas normas guerreiras e míticas do passado. A grande vantagem, ou seja, o sucesso desse gênero narrativo, enquanto gênero diferenciado, deveu-se às exigências sociais da história da civilização ocidental, as quais (naquele momento crucial de uma nova Era) impediam a retomada de “heróis à moda antiga” reconhecidamente comunitários em uma sociedade na qual, a partir dali, imperariam apenas as leis individualistas de um mundo já repleto de impurezas (o personagem antigo e o seu mundo circundante eram naturalmente puros). Por conseqüência, instalavam-se as prerrogativas das narrativas ficcionais em prosa, reprodutoras de realidades possíveis (camadas superpostas), e, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, apresentando narradores-principiantes de uma novíssima modalidade genérica, o Gênero Narrativo Ficcional, registrado graficamente no início do século XVII, por Miguel de Cervantes (1602), gênero este reconhecido pelos exigentes teórico-críticos pós-modernos, submetidos atualmente à Ciência da Literatura, como fenômeno da Era Moderna.
Mas, a pergunta permanece: e os escritores pós-modernos/pós-modernistas? Como classificá-los como ímpares, se os mesmos desmistificaram e desmistificam e desmistificarão, por um bom período temporal, suas criações ficcionais? Reafirmo: são autênticos. São esses os verdadeiros revolucionários da chamada literatura-arte deste atual momento histórico (século XXI), porque sabiamente não se consideram criadores excepcionais. Os pouquíssimos eleitos pelo dom da arte literária, neste momento de desajustes existenciais, são os realmente autênticos criadores ficcionais. (E aqui elevo a diferenciada criatividade ficcional de Rogel Samuel, a qual, nas páginas seguintes, será por merecimento indiscutível destacada). São esses ficcionistas atuais (apenas os privilegiados pelo dom da criação literária), os “novos criadores” da estética pós-modernista da Era Pós-Moderna, porque, pelo processo histórico-literário (não poderão apartar-se) rejeitaram, rejeitam e certamente rejeitarão por um considerável período, os dogmas da estética modernista passada.
É importante explicar: os ficcionistas pós-modernistas não rejeitaram os grandes escritores do modernismo e, também, não se opuseram aos escritores de outros gêneros do passado, ao contrário, foram e são admiradores de todos, dos verdadeiros, dos ímpares, mas seus dons ficcionais já não se adequavam e não se adéquam ainda àquele momento modernista da primeira metade do século XX. A dinâmica de vida agora é outra. A rejeição foi na esfera da formalidade (forma), porque os de agora não querem explorar ficcionalmente os conflitos existenciais do indivíduo-criador, e, muito menos, lançar um poderoso olhar demiúrgico, de cima, à realidade fragmentada.
Então, se há rejeição, porque não falar em renovação? Muitos dirão: há semelhança com o modernismo, não há rejeição ─ a marca inconteste de mudança estética. (Assim como muitos críticos literários, ao longo do século XX, se referiram ao Romantismo e Simbolismo, buscando semelhanças inexistentes). Verdade. Há aparente semelhança obscurecendo as diferenças, que são muitas. O escritor da ficção pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, além de não aceitar dogmas, para a elaboração de seus textos, e de não se ater às revelações epifânicas, àqueles momentos culminantes, insólitos, assinaladores do clímax dos textos, percebe o quanto é difícil narrar, se não há um padrão teórico-crítico preestabelecido que o coloque na categoria de pós-moderno. O padrão aparentemente não existe, porque aparentemente os teórico-críticos da atualidade se recusam a ler com atenção os textos-novidade, uma vez que é muito cômodo continuar a interagir com os escritos literários já sacralizados pelos conceituados “donos do saber”. E, atualmente (no Brasil e no Mundo), os “donos do saber”, ligados à Indústria Cultural, estão a proliferar. Estão ancorados nas redações dos jornais e revistas, nas seções dedicadas à cultura, avaliando como bons os livros que irão render retorno financeiro. E esses muitos valorizam alguns textos insignificantes que o Mercado Propagador se esmera em divulgar, que vão sendo exaltados como “repletos de criatividade”, deixando no ostracismo os realmente valiosos. Mas, acredito, os autênticos resistirão ao crivo do tempo. Os verdadeiros textos-arte ficcionais serão reconhecidos no futuro. Seria interessante que a Indústria Cultural destacasse a qualidade e esquecesse, um pouco, as exigências financeiras (não muito, o dinheiro será sempre necessário ao artista, pois, sem Mecenas provedores, as contas estão aí, para serem pagas).
Entretanto, o leitor massificado não se encontra preparado para entender as mudanças estéticas (não foi devidamente orientado); os bons textos, criativos, são de difícil compreensão para o leitor de vida apressada. Até mesmo o crítico, atualmente, prefere se posicionar como analista-intérprete que seja aceito pelos leitores massificados do momento. Só não percebe (o crítico de hoje) que ele também será avaliado no futuro, e não seria nada interessante ser reconhecido como um “novo Monteiro Lobato”, julgando depreciativamente uma arte inovadora (Monteiro Lobato e a arte diferenciada de Anita Malfatti) e apreciando aqueles que não mereciam ser apreciados (pesquisem); socialmente, colocando-se a favor de uma elite abastada e rejeitando lamentavelmente os menos favorecidos. (Frase de Monteiro Lobato, sobre o camponês brasileiro do século XX: “(...) essa raça a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso”[i]).


[i] LOBATO, Monteiro. Urupês. 27. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982:

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