segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

MORRE CLAUDIO ABBADO

Morreu Claudio Abbado, o maestro que desenhava a música com os dedos

O maestro italiano Claudio Abbado foi um dos mais relevantes músicos dos últimos 50 anos. Morreu aos 80 anos na sua casa de Bolonha.

A morte de Claudio Abbado é uma perda imensa. Sabíamo-lo doente, mas, por mais do que uma vez, ele tinha recuperado e regressado aos palcos, por vezes, com enorme sacrifício pessoal.

Foi um maestro excepcional. No entanto, isso é dizer pouco sobre tudo o que ele fez em termos musicais. Recorde-se que entre os cargos que ocupou esteve a direcção do Scala de Milão (para onde foi nomeado com apenas 35 anos), da Orquestra Sinfónica de Londres, da Ópera e Filarmónica de Viena e da Filarmónica de Berlim. Mas há também que recordar, e de que maneira, que fundou a Orquestra de Jovens da União Europeia e – ainda mais importante –, depois, a Orquestra de Jovens Gustav Mahler, que reunia numa Europa ainda dividida jovens de ambos os lados da “Cortina de Ferro”, à qual muito se dedicou. E recordar ainda que, nos últimos anos, o seu maior foco de interesse foi a Orquestra do Festival de Lucerna, na Suíça, caso único em que prestigiados músicos, mesmo solistas, que nunca tinham sido membros de orquestras, aceitaram integrar.
Claudio Abbado foi um excepcional intérprete de Verdi, sem dúvida alguma, o maior depois de Toscanini. Entre as suas máximas gravações – e, aliás, das máximas de toda discografia verdiana –, encontram-se o McBeth e o Simão Boccanegra, que tinham ambas sido encenadas por Giorgio Strehler. Sendo ainda especialmente de lamentar que nunca tenha sido editado, senão nas marcas paralelas e nunca em DVD, o espectáculo histórico que foi a sua direcção de Don Carlo, com encenação de Luca Ronconi, no Scala, em Janeiro de 1987, espectáculo que, no entanto, foi transmitido pela Eurovisão.
Claudio Abbado foi também um grande intérprete de Rossini, sendo especialmente marcantes os seus registos de O Barbeiro de Sevilha e Il Viaggio a Reims.
Mas, atenção, ele esteve longe de se restringir ao reportório italiano. Tinha a cultura da Europa Central e foi grande intérprete da tradição sinfónica austro-alemã, de Beethoven, Schubert, Brahms e Mahler.

E mais: foi um dedicado intérprete de música contemporânea. No seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigiu não só o Concerto para piano n.º 1, de Brahms – com o seu cúmplice de eleição, Maurizio Pollini –, e Tchaikovsky, como também uma obra do compositor contemporâneo britânico Brian Ferneyhough.
No final dos anos 60, numa época política e socialmente conturbada, Abbado, já director do Scala, foi fazer concertos para fábricas juntamente com o compositor Luigi Nono, com quem teve também uma relação electiva, e com Pollini.
Devo-lhe, entre outros momentos, três das maiores emoções musicais da minha vida: o citado Viaggio a Reims, de Rossini; o Wozzeck, de Alban Berg, com encenação de Peter Stein, no Festival de Salzburgo; e, já depois da sua paragem por motivos de saúde, o Concerto em sol, de Ravel, com Martha Argerich, no Festival de Edimburgo.
Claudio Abbado foi o indirecto sucessor de Arturo Toscanini. Aliás, é interessante notar como as interpretações de um e de outro de La mer, de Debussy, são as referências maiores. Muito jovem, Abbado tinha visto o velho maestro ensaiar no Scala, experiência que o marcou, porque tornou-se sempre no oposto do estilo autoritário de Toscanini.
Muitos maestros, por vezes, parece que exercem para fazer brilhar ainda mais o seu ego. Claudio Abbado tinha um único fim: fazer música como gesto colectivo.


               

“Morreu pelas 8h30 [hora local] de forma serena, rodeado pela sua família. As informações relativas ao funeral serão divulgadas posteriormente”, anunciou a família do maestro numa mensagem enviada à comunicação social.

O anúncio da morte de Abbado, mesmo se não causou surpresa a quem conhecia os problemas de saúde que o atormentavam nos últimos anos, motivou lamentos e reacções emotivas um pouco por todo o lado, a começar, naturalmente, pelo seu país. O Presidente Giorgio Napolitano manifestou-se com “grande emoção e dor” e destacou que Abbado, que no ano 2000 fora submetido a uma delicada operação na sequência do diagnóstico de um cancro no estômago, tinha “enfrentado a doença que o minava desde há anos com uma força extraordinária e uma vontade inacreditável”.
Os problemas de saúde tinham obrigado o maestro a anular, nos últimos tempos, alguns concertos com a sua Orquestra Mozart de Bolonha. E, já em 2010, tinham feito adiar o seu regresso ao La Scala de Milão, que dirigira durante quase duas décadas (1968-86), para três concertos de consagração.
Em Agosto do ano passado, Giorgio Napolitano tinha nomeado Abbado como senador vitalício de Itália. Na altura, o maestro renunciou ao subsídio correspondente ao título doando-o para o financiamento de bolsas de estudo para jovens músicos — uma atenção que marcou toda a sua carreira.

O seu par, Riccardo Muti, manifestou-se ontem também “profundamente triste pela perda de um grande músico, que marcou, durante décadas, a história da direcção de orquestra”. Também citado pela AFP, Giuliano Pisapa, presidente da Câmara de Milão, terra natal de Abbado, anunciou que iria pedir ao La Scala que organize o mais rapidamente possível um concerto de homenagem.
O actual director musical do La Scala, Daniel Barenboim, comentou assim a morte de Abbado: “Perdemos um dos maiores músicos dos últimos 50 anos e um dos raros a ter uma ligação directa com o espírito da música em todas as suas formas". Na sua declaração, citada pela Reuers, o maestro e pianista acrescenta que Abbado "foi um exemplo para o mundo, mostrou que os músicos jovens e inexperientes podem fazer música ao mais alto nível quando trabalham com a atitude e o empenho adequados". "Devemos-lhe isto e muito mais”, conclui Barenboim.
Claudio Abbado estreou-se no Scala em 1960 e, seis anos depois, com apenas 35 anos, iria assumir a direcção artística do histórico teatro de ópera. Afirmar-se-ia, tanto no famoso palco de Milão como na cena internacional, como assinalam tanto Rui Vieira Nery como Augusto M. Seabra, como “um sucessor indirecto de Arturo Toscanini”.
Nascido em Milão a 26 de Junho de 1933, Claudio Abbado associou ao La Scala a direcção das mais destacadas formações mundiais da música, como a Filarmónica de Berlim, onde sucedeu a Herbert von Karajan, a Filarmónica e o Teatro de Ópera de Viena ou a Sinfónica de Londres.
Na sua extensa carreira internacional, passou duas vezes por Lisboa: em Maio de 1969, apresentou-se no Coliseu dos Recreios, no âmbito do 13.º Festival Gulbenkian de Música; em Outubro de 1997, dirigiu no grande auditório da fundação, no ciclo Grandes Orquestras Mundiais, a Filarmónica de Berlim e o Coro Gulbenkian, na interpretação da 2.ª Sinfonia de Mahler.
Gravou também com a pianista Maria João Pires obras de Mozart e Schumann.
Rui Vieira Nery só viu e ouviu Abbado actuar ao vivo no concerto na Gulbenkian em 1997. Se, por essa razão, conhece o essencial da carreira do maestro apenas por via dos discos e dos vídeos, o musicólogo não tem dúvida de que se trata “claramente de uma figura de topo, que veio logo a seguir à geração dos grandes maestros, como Karl Böhm e Karajan”, tendo surgido como “o sucessor natural deste último na Filarmónica de Berlim” — cargo para que foi convidado em 1989.
Vieira Nery acrescenta que, “dentro da geração de maestros italianos que se revelaram na década de 1960, ao lado, por exemplo, de Riccardo Muti, Abbado foi quem teve a maior projecção”. Nesse sentido, vê nele “um sucessor indirecto de Toscanini”, acrescentando que desde o desaparecimento do mítico maestro italiano, na década de 1950, que “a Europa do Sul não tinha um nome com esta projecção internacional”.
Generosidade e inteligência
Joana Carneiro viu pela primeira vez Abbado a dirigir uma orquestra ao vivo quando era ainda adolescente, e o efeito foi esmagador. “Como maestro, é uma das minhas maiores inspirações e é por isso que sinto que hoje a música sofreu uma perda enorme. São raros os maestros que olham para uma partitura com a generosidade e a inteligência com que Claudio Abbado olhava”, disse nesta segunda-feira ao PÚBLICO a maestrina portuguesa de 37 anos.
Infelizmente, acrescenta, nunca teve oportunidade de conhecer pessoalmente o maestro italiano, mas isso não significa que, na forma que tinha de conduzir a orquestra e a sua carreira, não seja capaz de lhe identificar traços de personalidade. “O seu olhar era sempre atento, tanto para a partitura como para os intérpretes que a iam trabalhar. E isso notava-se muito bem. Demorava-se no estudo da música e dos músicos e tinha uma sabedoria enorme. Estava sempre ao serviço da música, fosse qual fosse o compositor.”
Críticos de música como Andrew Clark, do jornal económico Financial Times, sublinham-lhe as qualidades intelectuais que, dizem, sempre “vigiaram a expressão de sentimentos” na sua condução de orquestra, fazendo com que Abbado não fosse, de forma alguma, “o maestro italiano típico — instintivo”. Esse peso cerebral, escreve ainda Clark no artigo em que assinala os 80 anos de Abbado e em que elogia, entre outros aspectos, “a sua técnica de excepcional naturalidade”, nunca lhe retirou, no entanto, “espontaneidade”. O que fazia, garante o crítico do Financial Times, era conferir às peças que dirigia uma exploração contida dos picos musicais, “de bom gosto e brilhante, em vez de temperamental”.
Vieira Nery, por seu lado, nota que, “mesmo parecendo um lugar-comum, pode dizer-se que Abbado é um homem que alia o sentido do rigor e da fidelidade ao espírito do compositor, que marca a escola alemã, à imaginação e ao calor característicos da cultura latina”. E dá como exemplos a leitura que Abbado faz de um Beethoven ou de um Mahler, que, sob a sua batuta, ganham “um lado solar muito especial”.
Quando olha para o trabalho de Claudio Abbado e de qualquer outro maestro, Joana Carneiro não faz distinções entre emoção e carga intelectual: “Simplesmente não consigo, porque uma e outra estão interligadas. No caso de Abbado, isso era particularmente evidente — o que sempre senti foi o respeito que tinha pelo compositor e pela orquestra, que sabia deixar tocar.”
Tudo no ofício do músico lhe interessava, mesmo nos muito jovens, como era o caso em dois dos projectos que mais acarinhou, explica Carneiro: a Orquestra de Câmara da União Europeia e a Orquestra Jovem Gustav Mahler, que fundou, respectivamente, em 1978 e 1986.
“Era fantástico vê-lo dirigir, ver como desenhava a música com as mãos, com os dedos; como comunicava com os músicos; como mantinha sempre um domínio absoluto da partitura.”
Na biografia que traça de Claudio Abbado, a editora Deutsche Grammophon — onde Abbado começou a gravar em 1967, num disco com obras de Ravel e Prokofiev — cita esta sua afirmação: “O termo ‘grande maestro’ não significa nada para mim. Grande é o compositor.”
De facto, Abbado não distinguia os compositores, nem cedia ao elitismo que muitas vezes marca a cena musical e leva muitos músicos e maestros e seguirem apenas caminhos já pisados anteriormente.
A atenção aos jovens músicos, “às obras menos conhecidas e divulgadas de clássicos como Rossini, Schubert e mesmo Mahler”, como nota Vieira Nery, e aos compositores do século XX — Schönberg, Stockhausen, Luigi Nono, Bruno Maderna, Franco Donati… — são também uma marca da vida e da actividade de Abbado, a quem a Deutsche Grammophon chama mesmo “um campeão da música contemporânea”.
Uma carreira que foi elogiada e consagrada ao longo do tempo, com distinções como o Prémio Imperial do Japão, as Medalhas Mahler e Mozart (Viena), ou a mais alta distinção civil do governo alemão, o Bundesverdienstkreuz, ao lado de doutoramentos honoris causa em universidades de Ferrara, Cambridge, Aberdeen e Havana. com Lucinda Canelas

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