quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O personagem lendário

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 

 

 
 
A Caxinauá olhou aquelas margens [as margens de um dos igarapés do Manixi]. Ali viveram seus antepassados. Ali estivera entre os seus. A Caxinauá gostava de visitar aquele lugar histórico. Do passado não havia traço. (...)
 
Súbito pressentiu o perigo.
 
De repente sentiu que, de dentro, do fundo da mata, se aproximava algo ameaçador. Ela sabia que aquilo vinha muito rápido ─ nada o tinha denunciado, mas ela rapidamente saiu de dentro d’água.
 
Mas era tarde: Foi agarrada por mãos enormes, por enormes braços de um ser monstruoso, por trás, e ela sentiu o cheiro de cumaru e o forte calor daquele corpo e soube de imediato de quem se tratava, que seria ela mais uma das vítimas de Paxiúba, o Mulo.
 
Avaliou a situação: um dos braços do Mulo podia quebrar o seu pescoço, ela ia começar a sufocar, sabia daquela força insuperável besta selvagem. Ficou imóvel. Deixou-se levar. Sabia o que ele queria. O corpo do monstro estremecia, de prazer, era quente, o desejo roçava pelas costas da índia, arfando, como um cão.[i]
 
O personagem lendário de Rogel Samuel, o Paxiúba, nos últimos capítulos, passa a interagir (pela ótica interativa do segundo narrador rogeliano) com as induções visíveis e invisíveis do capitalismo desenfreado (benéficas ou maléficas), intrínsecas no plano sócio-substancial relativo à decadência do aparato capitalista do Manixi (o Manixi mítico permaneceu/permanece intacto, pois o ficcionista, por intermédio de seu narrador-auxiliar, na página 103, afirma que “a floresta vencera”). Posteriormente, envolvido por tais induções, disseminadas na maneira de pensar dos personagens relacionados com o aparato empresarial amazonense, Paxiúba começa a perder a sua aura guerreira ─ o brilho mítico, explícito, que o dignificava ─, terminando sua existência de uma forma diferente do narrar fabuloso, ou seja, pela forma exigida pelo tempo vital, acionada pelo dinamismo cíclico da ficção.
É bem verdade que a dimensão ficcional do Manixi, o lugar onde o poder mítico de Paxiúba se fez / se faz visível, já estava maculado por valores capitalistas, desde o início da trajetória ficcional do primeiro narrador Ribamar de Sousa (e isto será decodificado nos próximos capítulos desta minha apreciação fenomenológica da obra de Rogel Samuel), entretanto, nas duas primeiras fases do romance, o espaço de concepção da obra se projetou por meio da fusão do sócio-substancial com o mítico-substancial (o que os teóricos da literatura em prosa denominam como realismo-mágico). Na primeira etapa, reinou o narrador Ribamar, como representante da dimensão sócio-substancial. Na segunda etapa, o (verdadeiro) narrador, criativamente, cedeu o privilégio ao bugre Paxiúba, pois se percebeu motivado a reclamar a aura lendária do gigantesco personagem, para iluminar e revigorar o seu desenrolar narrativo. Eis aqui a razão crítica (fenomenológica) da imponência do personagem. No entanto, a aura de Paxiúba não permanecerá visível nos capítulos subseqüentes da terceira fase ficcional (e final). E a nova face (ficcional) de Paxiúba começa/começará a aparecer a partir da decadência exterior do Manixi, sustentada e assinalada por ocasião de seu encontro voluptuoso com a Caxinauá.
No capítulo intitulado DEZESSETE: A RUA DAS FLORES, o bugre Paxiúba reaparece como homem “original” (ser primitivo), ao aproximar-se de Conchita Del Carmen, “uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy”, “a dona da Rua das Flores”, “o mais belo jardim humano da prostituição bem-educada da cidade de Manaus, uma Transvaal incrustada nos domínios do Mito Indígena e recriada pela arte ficcional rogeliana (de uma forma nunca vista em outros escritores da pós-modernidade).
 
Conchita Del Carmen esperou que o homem se voltasse.
 
Não havia ninguém naquela rua. Rua estreita, na Vila de Transvaal. Ladeira. Exuberância de plantas e flores. Do Rio Jordão, que ali passava, no fim da descida. Dois gatos se lambiam na calçada. Conchita, sentada numa cadeira de embalo, olhava o homem e lixava as unhas. Fernandinho de Bará, nervosamente, sorriu para ela quando o homem se voltou. Fernandinho estava de pé, ao lado dela, sob as begônias. Antes que o homem se voltasse, ela não tinha reparado bem, distraída, examinando as unhas, a revista francesa caída sobre o colo. Conchita Del Carmen uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy.[ii]
 
Conchita Del Carmen já era a dona da Rua das Flores. (...)
 
Mas Conchita não acreditava no que estava vendo quase à sua frente. Aquilo nunca tinha sido visto antes, que Fernandinho, sempre atento às observações daquele tipo, lhe tinha chamado a atenção. (...)
 
Era um bugre alto e escuro, quanto à fortaleza dos músculos e dos membros, monstruosamente enorme, meio índio meio negro, mal vestido e descalço. Porém, tinha, a seu modo, certa simpatia.
 
Conchita Del Carmen vivia ainda sonhando com o filho do lendário Coronel Pierre Bataillon, que tinha sido o oposto daquilo que estava na sua frente.[iii]
 
Pois o monstruoso homem era o contrário do que tinha sido o príncipe perdido. (...) Olhando aquilo, enojou-se. O monstro se afastava em direção do fim da ladeira da Rua das Flores, o chapéu na mão com que os cumprimentara. Tinha chegado do Rio Jordão..
 
Mas voltou.
 
Voltava! ele passava em revista as portas das casas. Como era de manhã, elas dormiam. A princípio, o Mulo. Depois ... se decidiu por ela.
 
Mas Conchita não se sentiu lisonjeada por aquela cortesia, mesmo fosse outro.[iv]
 
Mas homem não queria. Principalmente um índio daqueles ─ via-se ali um assassino, um homem mau, com quem deveria desenvolver logo umas evasivas amáveis mas firmes falas. Aquilo era um bandido, ela conhecia bem.
 
Mas o homem se aproximava.
 
Meio envergonhado, como convinha tratar a uma senhora-dama, ele veio dizendo uns “bons dias...”.
 
Foi quando De Bará deu um grito, olhando o homem de perto:
 
─ D. Conchita, este é o Paxiúba, do Manixi.[v]
 
Paxiúba se “afigurou”[vi] como homem ─ primitivo ─ diante de Conchita Del Carmen. Transitando dentro dos limites poderosos de um complexo populacional urbano, calcogênico, repleto de emanações terrestres, Paxiúba perde a aura lendária, aquela aparência miticamente iluminada que o caracterizou, quando de sua atuação como ser extraordinário, o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”.


[i] Idem: 103.
[ii] Idem: 127.
[iii] Idem: 130.
[iv] SAMUEL, Rogel, 2005: 132 - 133.
[v] Idem: 134.
[vi] Ibidem.

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