Paxiúba, o bruto, o fundamental, o da impressão
fugidia para a certeza, correta e culposa, aproxima-se do porto do Laurie
Costa, porque o semi-humano (o semideus) interessou-se por uma mortal, uma
comum lavadeira do Palácio Manixi. Ele terá de tomá-la sexualmente do Laurie
Costa, o marido, para, assim, transitar livremente na dimensão humana. (Assim
se comportou Júpiter, ao se relacionar com Alcmena, esposa de Anfitrião; assim
se comportaram os Anjos do único Deus dos Hebreus, nos Evangelhos Apócrifos, ao
se relacionarem com as “filhas dos homens”). Entretanto, é o cheiro do camaru
(camará, cambará) que vigora “na interseção vazia” entre o dito e o não-dito
desta obra ficcional de Rogel Samuel. Paxiúba, graças ao perfume do camaru,
ultrapassa as regras do narrar mítico, “fundamental”, para vigorar na “lógica
da tenebrosa região infantil”, energeticamente ficcional, de quem
escreve. Ele se revela não apenas pelo poder do mito, mas por meio da “força
hipnótica (do pensar efervescente, do repouso ativado), para fora, para novas
submissões”. Ele é o somatório de todos os indígenas, bugres e caboclos que
povoaram o arcabouço mítico-infantil do escritor nascido ali, naquelas paragens
amazonenses, a manifestarem-se, exigindo do escritor que, mesmo saindo de seu
lugar de origem, não poderá deixar de revelar as suas impressões primeiras, as
suas particularidades e as particularidades de seus conterrâneos.
“Diga a
sua verdade” ─ era a linguagem da ordem de seus olhos no risco do seu
sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado que nos
fotografava, que nos dizia no espelho avaliado das baixezas.[i]
O discurso mítico é a oratória da “ordem”, é a explanação
(oral ou escrita) de fatos e seres grandiosos (humanos ou não), estruturalmente
inseparáveis da tradição de um povo. Paxiúba possui a chave da verdade mítica
de quem escreve, mas, quem terá de manuseá-la é o primeiro narrador (alter ego
do segundo), enquanto personagem principal das ocorrências narradas. Paxiúba
possui o poder de mando, assim como os grandes guerreiros e personalidades
notáveis do passado. E os legendários heróis do passado mítico (passado que se
perde nas fendas do tempo, anterior aos severos dogmas do cristianismo) não
conheceram a natureza íntima da bondade. A “ordem” dos olhos e o “sorriso
sensual perverso” caracterizam a face reduplicada do personagem Paxiúba. O ser
mítico é selvagem, primitivo. Possui o que Max Weber classificou como “poder do
ontem eterno” ou “poder do carismático-guerreiro”. A “ordem” dos olhos é para
que o narrador diga somente verdades (apreciáveis ou não), mesmo que o narrar
mítico da pós-modernidade seja a edificação intelectual de uma narrativa em
prosa, idealizada. A Floresta Amazônica, revista ficcionalmente pelo escritor
nascido ali, em suas imediações, concentra a essência do mito de antigas eras,
mas, aqui, insolitamente revestido pela roupagem do arcabouço mítico-lendário
dos índios daquela localidade. A pureza mítica poderá ser classificada
como a integridade vivencial do ser primitivo, aquele que não foi maculado por
exigências ideológicas (sociais ou religiosas). O ser primitivo não conheceu
(não conhece) o ônus do pecado cristão. Paxiúba não é cristão. É um ser
original. Então, quem reconhece o “sorriso sensual e perverso, sublinhado por
esboço de pecado” a fotografá-lo, é o narrador rogeliano. A “ordem” mítica dos
olhos de Paxiúba possui a pureza do primitivismo heróico. O bugre não
sabe o que seja pecado, e não creio extra-texto que Frei Lothar (um outro
personagem importante) o tenha catequizado. Quem se percebe avaliando o
“sorriso sensual e perverso” de Paxiúba é o narrador. Quem avalia o olhar do
“pecado” o fotografando é o narrador, aquele que, historicamente, conhece os
dogmas do cristianismo, no que tange a relacionamentos sexuais. As “baixezas”
do olhar de Paxiúba saíram do “espelho” simbólico-ficcional duplicado e
“sublimado” de quem narra, não da pureza primitiva do mito.
Paxiúba
era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência,
medo e prática muda da obscura familiaridade com a ternura se via na
transmissão de seu segredo. Em uma palavra: explícito. Quando se retirava, a
gente se persignava. Porque se efetivava guerreiro de épocas irregulares, de
tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo,
privilegiadas, inusuais, capazes de muito realizar, sedimentando o músculo vivo
e assumido.[ii]
Paxiúba “se efetivara guerreiro de épocas irregulares,
de tempo inverso”
(invertido), possuidor dos “remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo”, ou
seja, “remotíssimos mecanismos ardilosos” da urgência sexual. O guerreiro de
épocas contrárias às regras (de civilidade), nesta dimensão da narrativa
ficcional rogeliana, é a personificação do ser mitológico. Este ser em especial
(o Paxiúba) conhece as normas e os preconceitos sexuais do ser civilizado, por
isto é “capaz de muito realizar sexualmente, pois sabe sedimentar (endurecer),
a partir de seu apetite carnal fabuloso, “o músculo vivo e assumido”.
Seu poder é o da força bruta. Se há algo que deseja, ele o toma. Por isto, “era
bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta”. Por isto, a exigência
da cautela, da precaução. Por isto Zilda, a esposa do Laurie Costa, “uma certa
e acocorada lavadeira das roupas (roupas brancas do Palácio Manixi), agachada
sobre a prancha lisa do tabuão de sabão”[iii],
se assusta com o “regular da urgência daquele olhar”[iv].
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