domingo, 19 de janeiro de 2014

A NARRATIVA E OS PERSONAGENS


A Narrativa e os Personagens

NEUZA MACHADO

Rogel Samuel foi além: informou-se intelectualmente, viu os problemas e as virtudes de perto (problemas e virtudes amazonenses que sempre fizeram parte de sua vida), pensou e repensou o espaço de concepção de sua obra ficcional e o transformou em singularíssima narrativa. A Grandeza do Mítico-Ficcional (não é o mítico da epopéia em versos), a Floresta Imensurável, o Igarapé do Inferno como Limite do Fim do Mundo, todos os símbolos transmutativos que vigoram e se revigoram no discurso narrativo de Rogel, a partir de sua criativa intuição, desvelam gradativamente a Floresta Mítica e a Cidade (Manaus ou todas as Cidades do Mundo); descobrem-na, enquanto dimensão de normas capitalistas, rodeada nestes tempos pós-modernos por um arcabouço mítico. O amoroso olhar do escritor, nascido e criado ali, conhecedor de todas as frestas e sinuosidades do lugar, “olhar atuante” auxiliado por sua influente mão de criador ficcional e por um terceiro cogito singularíssimo, mapeou, horizontalmente e verticalmente, a Grande Floresta Amazonense e a Cidade de seu nascimento, oferecendo-lhes vida ficcional (a verdade da ficção), por meio de uma singular imaginação dinâmica, duradoura.
A narrativa O Amante das Amazonas apresenta-se (e apresentar-se-á no futuro) como incomum ficção transmutativa. Enquanto houver leitores que visualizem dinamicamente o entrelaçar das mensagens reveladoras, ao interagir com os ditos e os não-ditos de Rogel Samuel, os pecados e as virtudes dos seres humanos, a Floresta Amazonense e a cidade de Manaus sempre se revitalizarão. Assim, por intermédio de minha ótica particular (embasada certamente por anos e anos de contato interativo com o texto artístico), Euclides mostrou estaticamente o que viu, ou seja, a realidade amazonense do início do século XX por meio de um impressionismo marcado pela razão planificada do forasteiro-escritor. As “neo-impressões” ficcionais de Rogel Samuel saem de sua inteligência “animada”, saem de seu imenso amor pela terra natal. Nas páginas de O Amante das Amazonas há constante movimento. Há uma Floresta vibrante onde uma sutil música se espraia e os barulhos cotidianos quase se tornam reais (os ruídos da Floresta). Ali, os fatos vão acontecendo paulatinamente. O mesmo se revela quando a criatividade do ficcionista se volta para a cidade de seu nascimento: há movimento no Bar do Bacurau, “no início da João Coelho” , e, “proeminente, bêbado, apoiado no balcão”, Mestre Benito Botelho indagará ad infinitum (ou seja, enquanto houver um leitor incomodado) “o sumiço do filho de Pierre Bataillon no fundo da floresta amazônica”. Quanto a Conchita Del Carmen, permanecerá repleta de vida (vida ficcional), comandando a Rua das Flores (enquanto a narrativa existir e houver leitores para oferecerem-lhe dinamismo supravital). O conflito entre os espaços sócio-substancial e mítico-substancial se revela assim em toda a sua grandeza e movimento diante do leitor. O Manixi é o lugar da contenda. A Cidade de Manaus também. Ali, na Floresta versus Cidade, os dois espaços (o social e o mítico) se unem e se digladiam (se digladiarão permanentemente nas três dimensões da ficção rogeliana, ou seja, nas dimensões da arte ficcional). Ali, dois poderes se enfrentam.
Entretanto, apesar do ou graças ao conflito, a partir da página oitenta e nove, um novíssimo narrador rogeliano se obrigou a surgir para revelar aos leitores que, desde o início da narrativa, o interregno capitalista esteve ali presente (o lado capitalista do Manixi), ansioso por destruir a grandeza mítica do lugar. Subitamente, aparecem ratos na narrativa. Os dois poderes não poderão permanecer juntos naquele espaço efervescente de transição. Um deverá destruir o outro. A mudança narrativa instiga o leitor interessado. Ele terá de descobrir (se houver ou não um fecho narrativo tradicional) quem sairá vencedor. Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Como desvelar o Manixi (o Palácio e as terras que o rodeiam) ao longo da narrativa rogeliana? Por que “o sumiço do filho de Pierre Bataillon, um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá, permanece encoberto de tal mistério, sempre um acontecimento mitificado na imaginação do povo amazonense e acreano, e todas as hipóteses, levantadas então, não se puderam justificar, nem explicar”? Por que a Cidade de Manaus revela-se, na segunda etapa da narrativa como segundo espaço de mediação ficcional? E os ratos? Por que os ratos? Há ratos na Floresta. Há ratos na Cidade. Há “ratos” entre “as tábuas do chão”, “ratos” como “um traço cinematográfico, contínuo”, um “corroer” que incomoda, ativando a sensibilidade e a inteligência do leitor, demonstrando que, holisticamente, há “ratos” em todas as partes do mundo a abalar os primordiais e puros alicerces da civilização. Não foi o narrador Ribamar (o narrador tradicional das histórias contadas e relidas) que viu os tais ratos, foi o outro narrador (o das histórias lidas, relidas e inúmeras vezes repensadas), porque somente um narrador, capacitado para tal função, poderia formalizar criativamente o início da decadência da época da borracha (aquele que vê “o risco preto no chão” , ou seja, o início da decadência do plano das exigências conceituais a interagir com um discurso saído da própria “consciência fervilhante” (Gaston Bachelard).
Ainda repensando as minhas inferências sobre Euclides da Cunha, em relação à sua escrita sobre o Amazonas, conscientemente distanciada dos juízos substanciais, o engenheiro-escritor do início do século XX não logrou alcançar as dinâmicas peculiaridades do lugar, atuando como escritor-repórter, sintagmaticamente diante dos contrastes que estavam à sua frente (não criativamente e paradigmaticamente ao seu redor), ou seja, miséria versus riqueza. Devo esclarecer que não me refiro ao Euclides, enquanto autor da obra Os Sertões. Em Os Sertões, ele escreveu sob a pressão da autêntica criação literária (não importa aqui a forma genérica). Falo agora do Euclides que recebeu a missão de escrever sobre o Amazonas. Havia um contrato a ser cumprido com o Barão de Mauá. Euclides, apesar de preso a uma incumbência, enquanto escritor, desejava escrever uma grande narrativa sobre o Amazonas, mas, como chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus (sua função era demarcar a fronteira entre o Brasil e o Peru), ao se defrontar com a realidade daqueles homens que vinham de outros Estados (principalmente, aqueles que fugiam da seca do Nordeste), o ímpar criador de Os Sertões desaparece para oferecer o lugar ao engenheiro-repórter, observando racionalmente o homem da Floresta a trabalhar “para escravizar-se” . Asserto que, naquele momento, a atenção de Euclides estava voltada para as questões lineares que o cercavam. Entretanto, a apresentação do problema em forma de narrativa sintagmática não deixou um intervalo em branco (as entrelinhas do texto-arte) para as reflexões dos leitores exigentes. Os problemas realçados eram do conhecimento de todos, naquele início de século XX, continuam sendo do conhecimento geral. Penso que os “ratos” da escrita de Rogel Samuel, à época, estavam gordos e dominavam o lugar, subjugando a população desvalida, lançando-a na miséria e na doença. Daquele modo, foram eles (os “ratões”) que abalaram os alicerces míticos e sociais da cidade de Manaus e da Floresta (a que vai desaparecendo). E nas páginas do romance, as frestas negras da ambição desmedida favoreceram a decadência do Império da Borracha e o lento desenrolar da ordem e progresso no Brasil.


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