quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Personagens-Narradores



 
(FOTO DE A. C. ARAUJO)

Personagens-Narradores


 
NEUZA MACHADO
 

O narrador moderno, cujos olhos o obrigavam a ver o momento incógnito de uma novíssima Era desconcertada, amedrontadora,  intuiu que, por intermédio de uma perspectiva dialetizada, o seu ato de narrar alcançaria camadas desconhecidas daquela realidade que lhe estava próxima, escoltado por seu singularíssimo grau de conhecimento do mundo e por sua capacidade de registrar, ao longo de sua narrativa, palavras plurissignificativas, que levassem o leitor a pesquisar os seus vários significados, e, com isto, obrigando-o a interagir com a camada oculta do texto ficcional. O criador desse iniciante ardil ficcional foi Miguel de Cervantes, quando criou a expressão “moinhos de vento”, expressão que remete aos diversos obstáculos enfrentados por seu personagem principal, o Quixote (um herói decaído, impossibilitado de representar os antigos heróis do passado medieval), acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança (o personagem-representante legal, racional, da Era que se iniciava). Como bem se pode avaliar, a origem da plurissignificação literária é ficcional; a forma poética lírica a adotou, posteriormente, (A poesia lírica, inclusive a renascentista, anterior ao século XVII, não é plurissignificativa; possui os fenômenos estilísticos do gênero lírico, mas não se vale da plurissignificação, um fenômeno literário da Era Moderna, a partir da estética barroca).

O ciclo de narradores ficcionais modernos, iniciado a começar de Cervantes, termina aqui no Brasil no final do século XIX e anos iniciais do XX, com as narrativas realista-impressionistas, de Machado de Assis a Lima Barreto. Assim, as narrativas ficcionais do século XX, de escritores brasileiros do pós-22, em conformidade com as expressões literárias dos escritores de outros países ocidentais (James Joyce, Kafka e outros), já poderiam ser inseridas, em se tratando de Era, naquela a que denominamos de Pós-Moderna. Segundo os especialistas, há ainda muita dificuldade para um julgamento eficiente sobre o início desta atual Era, pois ela está muito próxima, historicamente, de nossa realidade existencial. Entretanto, penso que o século XX (desde a sua alvorada), presentemente, já poderá ser recebido como o princípio de algo bem diferente da Era anterior. Teria de gastar um tempo distendido para provar tal tese. Por enquanto, não é esta a intenção que me orienta. Mas, de qualquer forma, para o desenvolvimento de minhas reflexões sobre o romance de Rogel Samuel, catalogarei os anos iniciais do século XX como o início desta nova Era, chamada (depois de diversas negações e reprovações) de Pós-Moderna.

Penso que as narrativas dos escritores da segunda fase do Modernismo Brasileiro (a partir do Macunaíma de Mário de Andrade) até aos anos finais da década de 1960, já poderiam ser reconhecidas como narrativas pós-modernas (refiro-me à Era, evidentemente). Por conseqüência, já teríamos, historicamente falando, dois momentos histórico-literários relacionados com o nosso atual momento (estes anos iniciais do século XXI): o Modernismo (da segunda fase até aos anos sessenta, dividido em dois segmentos) e o Pós-Modernismo (dos anos sessenta em diante, já computando também dois segmentos).

Ao chamado Modernismo de Terceira Fase (anos quarenta aos sessenta), percebo-o como um momento de transição para o pós-modernismo literário (estética pós-modernista). Para a valorização da criatividade do escritor brasileiro, foi um momento literário excepcional, com todos os seus grandes ficcionistas epifânicos, os quais souberam guiar, catarticamente, seus leitores ao mais alto grau de interação reflexiva por meio de textos ímpares, iluminados; ficcionistas esses, únicos, cada um diferenciando o estilo criativo de seus escritos por meio de suas peculiares formas, obstruindo o posterior desenvolvimento de textos semelhantes, impedindo a proliferação de plágios, assinados por outros pseudo-escritores. (É lícito lembrar que Cervantes foi vítima de tal conduta por parte de um outro escritor. Depois de sua morte, houve uma continuação das aventuras do Dom Quixote). E aqui vamos assinalar, inclusive, o Modernismo Brasileiro das duas últimas fases, a partir dos anos trinta aos anos sessenta, como estéticas Pós-Modernas (relacionadas à Era), com o advento das mudanças políticas aqui percebidas, mas, também, como reflexo das leituras estrangeiras feitas pelos intelectuais nos anos anteriores, desde o término da Primeira Guerra Mundial. Leituras teórico-críticas importadas principalmente da França, trazidas também pelos professores-pesquisadores e sociólogos franceses, que aqui vinham pesquisar, leituras que refletiam as idéias do denominado “novo romance francês”, o qual desenvolvia a chamada “técnica do olhar” em alta rotatividade, técnica esta já utilizada desde o início do século XX por perspectivas ficcionais diferentes (narrativa paradigmática normal, narrativa de absurdo, narrativa fantástica, narrativa do realismo-mágico), todas, sem distinção, diretrizes ficcionais relacionadas com as chamadas Narrativas de Acontecimento.

Só que os narradores brasileiros, os pós-modernos/pós-modernistas de Segunda Geração, foram além do “olhar” em alta rotatividade dos chamados pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração (Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros). Diverso dos antigos narradores experientes que “tinham mãos para pensar” (teoria de Anaxágoras de Clazomene) e dos narradores modernos (os quais pensavam porque tinham olhos e mãos para escrever), os narradores pós-modernistas (do segundo momento ficcional da Era pós-Moderna até ao momento) passaram a pensar porque tinham mãos criadoras à moda dos antigos narradores, olhos para ver a realidade globalizada, como os pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração, mas possuindo, concomitantemente, um incomum imaginário-em-aberto, dinâmico, acionado pela capacidade de apropriação e transformação interativa do cotidiano, do conhecimento em todas as suas vertentes, das informações generalizadas, em outras palavras, de tudo o que pudesse instigá-lo criativamente, a partir de sua própria realidade histórica, ou seja, do cheio ao vazio existencial.

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