NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
No entanto, se atento para os enclaves que
superexcedem no todo desta criação ficcional de Rogel Samuel, recupero uma
terceira fase, autenticamente reveladora das imposições respeitantes às
inovadoras formas estruturais de narrar da pós-modernidade. No capítulo sete, o
arcabouço mítico desaparece para oferecer o espaço ao narrador da fase final do
século XX. O próprio título do capítulo já é por si uma revelação peculiar: “SETE: DESAPARECE”. Quem desaparece? Do desaparecido, falarei depois.
Por ora, a palavra desaparece se projeta como um referente (um sinal) de
finalização da narrativa mítica e de nova mudança narrativa: do mítico
para o plano da ficção-arte (a anterior sinalizou a caminhada do histórico para
o mítico). No capítulo seguinte (capítulo Oito), há um “ponto” indefinido
direcionando a mudança de estilo narrativo, revelando a decadência da realidade
sócio-substancial amazonense, apresentada inicialmente pela maneira de narrar
grandiosa da linguagem histórico-lendária.
Contudo, ainda não me desenredei de Paxiúba. O
arcabouço mítico-ficcional de Rogel Samuel exige-me novas reflexões sobre este
poderoso personagem. Ele, neste momento em que o reflito, está vindo ao
encontro de Zilda, a “esposa do Laurie Costa,” (...) “lavadeira pessoal do
Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa”[i].
Ele está vindo também ao encontro de minhas reflexões teórico-críticas. Vejo-me
em expectativa: assim como a outra energética Zilda, a da mitologia germânica,
a poderosíssima guerreira da vitória, a guerreira de ferro, terei de vencê-lo
teoricamente e reflexivamente ─ pela razão, pelo conhecimento, pela ponderação
inovadora ─, terei de vencer suas guardas míticas e seus desafios existenciais.
Não posso deixar-me seduzir teluricamente pelo seu fabuloso porte, descomunal,
colocando-me em perigo diante das já insuficientes e, ainda, exigidas análises
significativas (cientificismo dogmático), as quais estão aqui a digladiarem-se com as minhas inferências fenomenológico-interpretativas.
─ era assim que ele vinha, cínico,
atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se
dissesse: “te conheço: sei quem és”.[ii]
Paxiúba surge no desenrolar ficcional como personagem
“cínico, atravessador”, anunciando que, mesmo possuidor de uma aura mítica
(que, pelo ponto de vista épico, deveria ser de autêntica pureza), ele não será
concebido como tal. Seu papel, nesta narrativa ficcional, é o de
“atravessador”, de intermediário entre as três dimensões da ficção de
Rogel Samuel: a sócio-substancial, a mítico-substancial e a ficcional-arte.
Desde o seu surgimento até ao final da escrita rogeliana, ele atuará com
desenvoltura nestes três planos da criação literária. Seu poder será atuante. Pari
passu com o primeiro personagem-narrador, a sua importância se revelará
sempre ativada.
─ seu
poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil confissão
antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob seu
pulso, o certo da culpa, gesto indecente
e ameaçador, de assustar policial ─ impondo mole aquilo que o sustentava nos
seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que encontrava no
fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o bruto, mas
fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que coage,
que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se,
impelida, à força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se
infiltrando nas fendas do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na
interseção vazia e na interdição da resposta, na inversão das forças a ré,
malandragem desmascarada, única nobreza, qualquer dignidade sobrevivente: “Diga
sua verdade”.[iii]
“Seu poder vinha do cheiro de camaru”. Em volta da
Alta Palmeira dos Igapós (Paxiúba), com seus três caules indivisos (o social, o
mítico e o ficcional) e sua mítica coroa de flores (o cocar), manifesta-se a
interferência do cheiro do camaru, uma pequena árvore de flores aromáticas, de
fruto indeiscente (que não se abre espontaneamente ao atingir a
maturação). O cheiro agradável, afrodisíaco, verbenáceo, impregna criativamente
todos os capítulos referentes a Paxiúba. Ao longo da leitura, o cheiro vai
anestesiando inclusive o leitor. Eis o poder indiscutível do herói ficcional.
Eis o poder indiscutível desta narrativa de Rogel Samuel. Seu personagem não é
apenas um simples simulacro, como os personagens representantes das
ficções paraliterárias (os representantes dos textos de novela televisiva e
cinema, ou mesmo das novelas paraliterárias ─ lineares, sintagmáticas ─,
produzidas para a massa). Paxiúba terá vida ficcional permanente, enquanto o
romance existir e houver leitores-eleitos. A Ficção-Arte não se materializa
apenas para o entretenimento do leitor. A Ficção-Arte exige do escritor
(incluindo posteriormente o leitor) a plena-atenção, como recomenda com encômio
a filosofia budista (normas filosófico-religiosas que, não por acaso,
administram a vida espiritual do escritor Rogel Samuel).
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