NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
No entanto, este narrador da pós-modernidade, alter
ego do escritor do final do século XX e princípio do século XXI, querendo ou
não, pois se vê envolvido pelas diferenciadas normas ficcionais de seu momento
social, terá de se valer da técnica do olhar simulador para
apresentar o Manixi, o espaço sócio-ficcional de sua narrativa. Assim, o
Palácio do Manixi e as terras que o rodeiam terão de aparecer em toda a sua
grandiosidade e imponência, à moda dos simulacros televisivos e
cinematográficos que imperaram (imperam) em sua atualidade. Por enquanto, a
saída digna, irrepreensível, para que, posteriormente, o verdadeiro narrador
possa desmistificar a sua própria realidade vital e a sua outra diferenciada
realidade sócio-ficcional, é buscar nos domínios do mito uma diretriz
qualificada que apresente, aos leitores do momento e aos leitores do futuro, a
suntuosidade exigida pelo hodierno momento histórico das grandezas simuladas. O
arcabouço mítico será sempre uma dimensão que em todo tempo satisfará tais
requisitos. Paxiúba é o guardião da chave. O narrador terá de elevá-lo à
categoria de herói mítico-ficcional. No entanto, como semi-humano, o seu aparecer
glorioso, ao longo da segunda etapa da narrativa, não representará um
simulacro. A verdade da ficção-arte do Pós-Moderno/Pós-Modernismo de Segunda
Geração ultrapassa os limites da simulação do fingir depreciativo
(simulacro), para, em seguida, alcançar a glória do fingir da
literatura-arte (recriar). E convenhamos: são poucos os escritores eleitos para
tal missão, neste tempo presente de incomuns calamidades.
Mas o
olho burro tudo vê, e registra ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso
e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que
ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo
prestigioso vale.[i]
“Mas o olho burro tudo vê, e registra (...)”. O
teórico da literatura de orientação fenomenológica, neste início de século e de
milênio, não poderá desprestigiar as expressões ficcionais que o “incomodam”.
Por que “olho burro”? Será que este “olho burro” representa o olhar do primeiro
narrador, um ser híbrido, resultante do cruzamento entre o telúrico e o
espetaculoso, aquele representante dos narradores que vêem em demasia? Mas, a
realidade ficcional do século XX e início do século XXI está ali a exigir-lhe
(ao narrador rogeliano da primeira fase ficcional) um cenário grandioso para
apresentação do personagem mítico que se aproxima. Então, quem tem consciência
desse “olho burro” é o segundo narrador, possivelmente, alter ego de um
terceiro narrador, o qual intui, por sua vez, uma possível quarta chave
(imaterial), propiciadora de uma insólita condução para o quarto cogito, onde
se percebe o Tempo Espiritual. (Esse terceiro narrador se encontra muito bem
camuflado nas tramas ficcionais do romance, nesses primeiros capítulos da
narrativa). Ou será que “olho burro” representa outra expressão já conhecida,
ou seja, “dar com os burros n’água”, o que, em outras palavras, significaria a
perda momentânea do poder narrativo singular, exclusivo da ficção
paradigmática. O olho do escritor-artista paradigmático não “registra”,
recria a realidade que o cerca. No entanto, continuo aqui a resistir às
assertivas ficcionais rogelianas. Se me atenho à idéia de uma afirmação
diferenciada, consciente da capacidade criativa do escritor, infiro que o
“olhar” esclarecido, intelectual, do segundo narrador, acompanha por sua vez a
perspectiva visual do primeiro narrador. O “olho burro tudo vê, e registra
ele-mesmo” a aproximação de Paxiúba, “remando silencioso e feroz pela face da
manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa”, criativamente secundado pelo
olhar talentoso do escritor ficcional da pós-modernidade. Os narradores
sintagmáticos não possuem tal visão diferenciada. Assim, o “olho burro”,
explícito na narrativa rogeliana, sublinearmente e paradoxalmente, se
transforma em “olho inteligente”, se for avaliado pelo ponto de vista do
crítico fenomenológico. Por meio de um narrar paradoxal, o incomum ficcionista
de O Amante das Amazonas revelou (revela e revelará), aos “incomodados”
leitores de seu romance, a indiscutível qualidade de sua ficção.
O “olhar inteligente” do narrador rogeliano, nesta
segunda fase de sua criação ficcional, se sustentará pela ligação da forma de
expressão da linguagem mítica com as inovações registradas na linguagem
ficcional de seu momento histórico. Assim, o nomear enigmático colabora
com o ficcionista, oferecendo-lhe, nesta segunda etapa de seu romance, um
princípio narrativo ficcional à moda do narrar mítico-lendário, mas,
paradoxalmente, imbuído de expressões dialetais familiarizadas. “Pois sim. Que
diz-que Paxiúba era filho de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma
índia Caxinauá que não conheci, e se tornou lendário e eterno”.[ii]
Na primeira fase, a busca de conhecimento histórico
ofereceu-lhe também um princípio ficcional. Ribamar de Sousa começa a sua
trajetória diferenciada, de Patos, Pernambuco (realidade histórica), ao Manixi
Amazônico (realidade ficcional), assinalando a data do início de suas
peripécias existenciais em busca do extraordinário: “madrugada do Natal
de 1897”[iii].
O princípio assinalado denuncia a caminhada do homem do século XX: aquele que
não pode mais se estabelecer em seu meio comunitário, pois, adulto, sujeito a
uma vida de mendicância, terá “de começar a correr, prisioneiro das colocações,
e a seguir estrada com tigelinha de flandres”[iv]. Este princípio, á moda tradicional, nesta
ficção de Rogel Samuel, só se tornou possível, em plena pós-modernidade
entrópica, graças ao auxílio da História. As chamadas narrativas de estruturas
inovadoras da pós-modernidade, principalmente as da Primeira Fase, não se atêm
ao tempo vital (tempo linear, do relógio), são narrativas de acontecimento,
visualizando apenas o presente e não preocupadas com um clímax que as leve a um
fecho à moda tradicional.
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