CANTOS DO SERINGAL - Isaac Melo
O meu caleidoscópio é o pensamento,
que imagens do Acre forma em minha mente:
é o rio que dobra um porto lamacento...
é o barranco... é a floresta... é a minha gente...
Océlio de Medeiros
Foto: Sérgio Vale Agência de Notícias do Acre |
Dias há
em que desperto com as lembranças do seringal. A verdade é que me
apetecem as recordações da floresta. Não por um saudosismo melancólico.
Seringal não é um espaço bucólico no estilo das pastorais virgilianas.
Seringal é dureza, é luta, é esforço... No entanto, seringal é encanto, é
beleza, é harmonia...
Nove
anos vivi num seringal. O seringal Sumaré, no rio Tarauacá. Impressões
de um tempo que ainda me impressionam, e o tempo não apaga. Não carrego
memórias na cabeça. Minhas memórias habitam o meu peito. Não preciso
fazer força para pari-las. Elas surgem e escorrem tranquilas como as
águas de um igarapé quando é chegado o verão.
Uma
paisagem, um barulho, um cheiro basta para me transportar às
reminiscências do seringal. A mata vislumbrada do alto dá uma impressão
de monotonia. É preciso descer, percorrê-la, habitá-la. Então a mata se
desdobra numa miscelânea de cores, cantos, aromas, formas, tamanhos... A
mata inebriante desperta a sobriedade dos sentidos.
Foto: Sérgio Vale Agência de Notícias do Acre |
Enquanto
o céu derrama-se em pétalas douradas por sobre as majestosas copas de
samaumeiras, cumarus, seringueiras, no anfiteatro da selva silenciosa
mil vozes ecoam numa sinfonia perfeita. Tal polifonia de cantares é
harmonia, é sincronia de tudo o que há. Nada é fora do seu tom, do seu
ritmo, da sua poesia... Ali só a ganância humana é anomalia.
A selva
quanto mais selvagem mais fascínio me causava. Por ela nunca sentir
pavor, embora me apavorassem as histórias contadas sobre os seres
fantásticos que a habitavam: mapinguari, visagem, caipora... Um medo,
porém, reconheço, o de atravessar matas de igapós, medo dos
estrambóticos e fatais poraquês. Ou das cobras peçonhentas. Minhas duas
ressalvas.
Como o mais novo de casa, gostava de acompanhar meus irmãos nas caçadas, nas pescarias, nas estradas
de borracha, nas andanças pela mata. Meus sentidos ficavam despertos
para tudo o que não me era comum. Novas sensações para um corpo que
desconhecia as extravagâncias da civilização. Minha civilização era o
que sentia, via, degustava, apalpava ou sonhava.
O que
se esconde nos olhos de um menino de seringal? Escondem-se as manhãs em
que o sol, despontando vagaroso lá na curva do rio, vem trazer a aurora
no cantar de um bem-te-vi; escondem-se o voo das andorinhas que, à
tardezinha, enfeitavam o céu, levemente retocado de azul, indo pousarem
sobre a galharia de uma velha árvore arrastada pelo rio.
À
frente de casa passava o rio. O rio de tantos repiquetes com seus
balseiros a descer, e que tanto mexiam com meu imaginário infantil. No
verão, as águas sumiam e as praias surgiam com suas areias tão alvinhas.
Aí viviam os tetéus e os maçaricos que eu costumava perseguir a força
de baladeiras e reboladas em dias de peraltices.
Foto: Sérgio Vale Agência de Notícias do Acre |
Ao
fundo de casa, antes de atingir a mata, ficava o igapó, onde abundavam
os aguapés e as vitórias-régias. Aí também estava assentada a tábua onde
mamãe lavava a roupa, sobretudo no tempo do inverno, quando as águas
dos rios eram ainda mais barrentas. No igapó encontravam-se as jaçanãs,
com um cantar fino e belo.
Bonito
de ver eram as noites de verão. A noite, como um manto pontilhado de
diamantes reluzentes, se estendia sobre nós. Uma lua enorme adornava de
prata os campos, as matas, o rio. Nem Van Gogh com sua A Noite Estrelada seria capaz de dar uma noção daquele espetáculo tão natural que chegava a ser sobrenatural. A noite desperta outros cantos.
Meu
irmão chamava-o sapo canoeiro. Era o kampu. Um anuro pequeno, mas quando
coaxava se agigantava, pois tão imponente ressoava o seu cantar. Produz
uma substância que pode ser fatal, embora os seringueiros e ribeirinhos
o aplicassem, em justa medida, para retirar panema e atrair a sorte.
Herança da sabedoria dos povos indígenas.
Dos
barrancos quem dava o tom era o Bacurau. Pássaro de perfeita camuflagem.
Pipilo um pouco nostágico, não tanto como o da Mãe-da-lua, outro mestre
da camuflagem. Seu canto penetrante e melódico invadia a noite e me
despertava sensações estranhas. Pobres de nós que transferimos às aves
as impressões do nosso próprio coração.
E o que
dizer da Acauã? Reza a lenda que seu canto é agourento. Prenúncio de
morte ou desgraça. Quando entoava seu piar mamãe, na sua piedosidade
cristã supersticiosa, logo exclamava: “Deus conjuro, condenada!”. Apesar
de nossa ingratidão, a avezinha persistia em ofertar o seu singelo
cantar, às vezes logo ao amanhecer, outras ao apontar da noite.
O
Cancão também tinha um canto forte, estridente, como é próprio das aves
falconiformes. Dizem que ele costumava acompanhar os temíveis bandos de
queixadas. Daí meu receio. Os anus-corocas, que a gente chamava de
arigó, costumavam fazer algazarras às margens dos rios e saiam voando e
fazendo ecoar seu canto rouco com o aproximar das canoas.
Nossa
casa parecia se enamorar do rio à sua frente, com seus dois olhinhos a
mirá-lo de cima do barranco. Casa coberta de palha de jaci ou ouricuri.
Soalho de paxiúba. Paredes de paxuibinha. À sua frente um trapiche.
Trapiche de onde acompanhava as exibições cinematográficas projetadas na
grande tela por sobre a selva.
Sentado
à ponta do trapiche, enquanto o sol começava a ser engolido pela boca
da noite, ficava a admirar o casal de papagaios em seu voo curto e
deselegante, o bando de garças, as maracanãs chilreantes, as graúnas, os
japós... Do aceiro da mata vinha o canto dos nambus. Por entre as
palhas, nesgas de fumaças iam mesclar-se à bruma lá fora.
Foto: Angela Peres Agência de Notícias do Acre |
Poucas
vezes vi o espetáculo de um barreiro, isto é, um depósito natural, às
vezes às margens de um igarapé, rico em salitre, aonde inúmeros animais
vêm comer. Chilreios ensurdecedores de centenas de periquitos num vai e
vem incessante. Mas a mata tem o som ímpar, para mim, do Corrupião. Toda
vez que o ouço gorjear minha alma volta a fundir-se à floresta.
A mata
me viu nascer, crescer, voar. Por isso ficou impresso na alma um naco de
cada canto: do cicio da cigarra ao brado do guariba. A selva de pedra
nunca sufocara a selva das minhas reminiscências... Ainda ouço o chiado
das folhas secas no caminhar dos varadouros... Ainda trago nos olhos uma
noite florida de estrelas, onde a lua desabrocha em pétalas prateadas.
A
floresta nunca foi o inferno. Nem o paraíso. A selva é o que a selva é.
Selvagem. Há encantos e artimanhas. Não é amiga. Nem inimiga. É
generosa. Abundante. E pode ser cruel. Mas não há maldade. Há a vida. E
tudo o mais gira em seu entorno. A floresta me faz esteta. Não
romântico. E quem me dera ter alma de poeta, pois “que triste não saber
florir”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário