terça-feira, 21 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO



NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO




Tio Genaro e Antônio: Personagens Mediadores entre o Social e o Mítico

 

Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido. E lá, foi lá que eles encontraram o barco que seguia para o Igarapé do Inferno e que os deixou no Manixi, onde amansaram, no Acre, aviados do dono do seringal.[i]

 

            Qual é a importância destes dois personagens no fluxo narrativo rogeliano? O tio Genaro e o irmão Antônio aparecem/apareceram e desaparecem/desapareceram rapidamente, mas, mesmo assim, eles não obstam, em seus rastros, a razão de suas presenças. Por algum motivo, apenas do conhecimento do escritor Rogel Samuel, ali se materializam. Assim é o narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração. A narrativa terá de acontecer ao longo da criatividade de quem escreve. Nesta renovada forma de narrar, não há personagens importantes ou personagens secundários, como nas narrativas das estéticas anteriores. Em verdade, todos os personagens são importantes, mesmo os que aparecem esporadicamente. Por um processo de apreensão ficcional gradativo, o narrador-personagem vai compondo enredadamente a trama. O primeiro narrador, auxiliado pelo segundo, é o personagem-“herói” de uma nova forma ficcional, aquele que jamais se deixará envolver nas malhas do narrar tedioso. Os outros personagens são incontestavelmente adjuvantes, mas nem por isto deixarão de revelar reconhecida importância. Poderão sair da cena, mas, enquanto personagens-atuantes, mesmo por breves momentos, deixarão suas marcas no leitor. É importante esclarecer que todos os personagens rogelianos, independentes de suas atuações, sejam elas permanentes ou breves, continuarão a “incomodar”, indefinidamente, o leitor que se propuser a desvendá-los, seja o leitor do momento ou o leitor do futuro.

Genaro e Antônio são personagens insubstituíveis no fluxo narrativo deste romance de Rogel Samuel. Enquanto personagens adstritos ao plano das probabilidades vitais (o que os teóricos da literatura nomeiam como verossimilhança), eles existiram. São eles os representantes ficcionais de todos os tios e irmãos que saíram da região nordestina da seca, lugar em que os longos períodos de estiagem transformam os sertanejos em retirantes. Mas, são eles também que possuem a chave, para que o primeiro narrador, alter ego do segundo ─ o ficcionista-narrador ─, possa penetrar na misteriosa Floresta Amazonense. O segundo narrador (ou verdadeiro narrador), naquela primeira etapa narrativa, está ali, nas entrelinhas, desde o início, guiando os passos de seu personagem. Não há como se aventurar em terras estranhas sem um precursor. Haverá sempre um pioneiro, para abrir o caminho até ao centro do enigmático ambiente. Por exemplo, Ferreira de Castro, para escrever o seu romance neo-realista A Selva, teve de sair de Portugal para o Brasil, mais precisamente, para o Amazonas, acreditando, com esta decisão, que o tio, um comerciante da borracha que ali residia, o ajudaria a se transformar em um homem rico.

Na primeira seqüência da narrativa rogeliana, os dois personagens (Tio Genaro e Antônio) não poderão ser conceituados como resultado de aparências estereotipadas, ou seja, personagens moldados, reduplicados, robotizados, coisificados, desenhados por meio da palavra (marcas das narrativas pós-modernistas de Primeira Geração). Aliás, é importante esclarecer, desde já, que esta minha proposição afirmativa sobre os personagens Tio Genaro e Antônio se aplica a todos os personagens desta obra ficcional de Rogel Samuel.

Genaro e Antônio poderão ser vistos como mediadores importantes para que o primeiro narrador, auxiliado pelo segundo, possa se aproximar da dimensão mítica da Floresta, uma vez que ambos já se haviam aclimatado àquela realidade cruciante, tornando-se parte inerente do Igarapé do Inferno, conhecedores de todas as minúcias do lugar.

 

Pois não disseram palavra. Se recolheram em si, e eu ainda durante muito tempo sentado no escuro, escorrendo chuva na mala de amarrado, chorando no abandono e solidão. E eu quis voltar, e não estar ali. E eu não quis ter vindo. Mas não tinha o caminho de volta. E nunca mais voltei.[ii]

 

E não falavam comigo, e não me ensinavam, como que me ignoravam, não se falavam entre si, os dois. Tinham virado bichos, e não creio soubessem falar. Chegavam de noite, macacos moídos, mudos e sujos, comiam e dormiam fedendo. E de madrugada de novo para a estrada, movidos por um interno aparelho de corda, mecânicos, outra vez, eu não sabia para onde, eu não sabia para quê.[iii]

 

Mesmo que o narrador os apresente como robôs, “movidos por um interno aparelho de corda, mudos”, não poderão ser avaliados como seres inanimados, reificados. Há muita “animação” em suas presenças, pois se valem do repouso fervilhante (Bachelard) e da linguagem visual de quem escreve. Muito menos poderão ser conceituados como simples cópias de indivíduos da realidade do século XX (marca de algumas narrativas consideradas como pós-modernas). São importantes e ativos, e, mesmo falando pouco, sabem dar ordens ao primeiro narrador, pois possuem a “chave” da interação entre o Mundo do Silêncio (amorfo) e o Mundo dos Conceitos (formas). São eles os guardiões da linha divisória entre as dimensões sócio-substancial e mítico-substancial. Entretanto, Genaro e Antônio só transitam nas duas margens explícitas do Igarapé do Inferno (a afirmativa e a negativa). Nunca se aventuraram na busca de uma insólita terceira margem amazonense (só o narrador-personagem possui esta perspectiva diferenciada), propiciadora de juízos de descoberta, o “salto da novidade”, pelo ponto de vista ficcional de Rogel Samuel.

 

Cerca de 500 metros acima do tapiri havia um trecho do rio onde o Igarapé do Inferno fechava – ainda que corrida, funda, escura e fria – a Curva do Tucumã, acima da qual nunca ninguém passava adiante, universo regido pela povoação Numa – “Você não passa”, disse tio Genaro, naquela tarde. “Você nunca atravesse o rio”. E na margem se lançavam os limites que se sobrepunham sobre as marcas da significação da vida, alerta e alarme, nos traços insondáveis e infratores (“Não passarás!”), e por isso aquele lugar atraía tanto quanto o Proibido, o Outro, na lâmina de aço da imagem duplicada e interior, aquilo que libertava a atenta direção do salto da novidade.[iv]






[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 12.


[ii] Idem: 14.


[iii] Idem: 15


[iv] Idem: 30

 

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