terça-feira, 14 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO


(Foto de A. C. Araújo)

O Amante das Amazonas: Personagens-Narradores

O(s) Personagem(ns)-Narrador(es) Pós-Moderno(s)/Pós-Modernista(s) de Segunda Geração de Rogel Samuel

 

Hoje, nosso mundo está menos seguro de si mesmo, mais modesto talvez, uma vez que renunciou à pessoa todo-poderosa, mas também mais ambicioso, uma vez que olha para além. O culto exclusivo do “humano” cedeu lugar a uma tomada de consciência mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece vacilar, tendo perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói. Se não consegue pôr-se de pé novamente é porque sua vida estava ligada à vida de uma sociedade agora extinta. Se conseguir, pelo contrário, um novo caminho se abrirá para ele, com a promessa de novas descobertas.[i]

 

Por que o mundo já começa a enxergar o talento ficcional desse escritor pós-moderno, em especial, a partir desta instigante narrativa? Sem o receio dos prováveis contra-ataques (contra-ataques daqueles que não leram a obra e, por isso, dela não gostaram, ou leram mal), posso afirmar: o romance O Amante das Amazonas, enquanto forma literária diferenciada, não é somente a recriação ficcional de estratos múltiplos de realidades amazonenses (sociais, míticas e ficcionais). É muito mais. É uma narrativa que reflete a problemática do mundo, em seus aspectos dilatados. Os Narradores, a Floresta Amazônica, o Palácio Manixi, os Numas, os Caxinauás, Pierre Bataillon, Paxiúba, Zilda, Laurie Costa, o Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha e a filha Glorinha Lambisgóia, Ifigênia Vellarde, Zequinha Bataillon, Maria Caxinauá, João Beleza, Júlia, Frei Lothar, Benito Botelho, Estella de Sousa, Mirandinha, Leonildo Calaça, Sabá Vintém, Du Bará, Conchita Del Carmen, e todos os outros importantes personagens (porque são todos importantes e insubstituíveis), poderão ser reconhecidos por leitores de outras partes do mundo. (Certamente, o romance será traduzido em outras línguas, por meio de bons tradutores, os quais saberão respeitar a qualidade do texto ficcional de Rogel Samuel). As traduções, que certamente acontecerão, vão propiciar o reconhecimento desta criação literária-ficcional ímpar, porque os conflitos, ali revelados, são as altercações do homem pós-moderno, atribulado (herança da Era Moderna), suas tentativas de reconstrução sócio-cultural em um mundo globalizado em vias de perder importantes fronteiras culturais. Assim, percebo este romance de Rogel Samuel como criação ficcional ímpar, expondo interlinearmente o contemporâneo meio social, globalizado e caótico, entrópico, e, em se tratando do futuro, enxergo-o como refletor replicante de conflitos atemporais e universais.

Pelo meu ângulo visual interativo, o narrador pós-moderno/pós-modernista (e neste momento refiro-me ao escritor-ficcionista enquanto personalidade ativa adstrita ao seu momento histórico) sintetiza a união da forma de narrar tradicional com a forma de narrar modernista, paradigmática, insólita, dos anos trinta do século XX (início da segunda fase do modernismo no Brasil) ao final dos anos sessenta. (Tradicional aqui significa a forma de narrar sintagmática, linear, heróica, dos narradores antigos e medievais, até ao final do século XVI, e alguns posteriores, com aparecimentos esporádicos ─ sem criatividade ─ nas escolas literárias que foram surgindo. É importante o esclarecimento de que não estou a referir-me ao narrador da Era Moderna, das narrativas complexas, nascido a partir das páginas notáveis de Miguel de Cervantes, no início do século XVII, o qual vigorou até ao final do século XIX, com as variações próprias de cada momento histórico e suas respectivas estéticas literárias).

Reportando-me à tese de Anaxágoras de Clazomene, de que “o homem pensa porque tem mãos”[ii], revisitada por José Américo da Motta Pessanha, no Prefácio ao livro O Direito de Sonhar, de autoria do filósofo francês Gaston Bachelard, repenso esta assertiva de Anaxágoras, permitindo-me transferi-la ao aludido narrador tradicional, anterior à Era Moderna. Por este prisma, procuro reavaliar aquele narrador horizontal, que se esforçou por pensar a realidade (recopilando-a literariamente) resguardado por mãos trabalhadoras, ligadas ao prazeroso exercício de “bem narrar” (bem escrever), mas, ainda, preso a uma “perspectiva anulada”[iii], uma perspectiva exteriorizada, superficial, fenomênica. Assim, o pensar em profundidade ficou interditado, porque as “mãos trabalhadoras” dos narradores antigos e medievais, e dos novelistas eram mais poderosas e só alcançavam pensar as aparências (não me refiro aos romancistas das seguintes estéticas literárias da Era Moderna). Será importante recuperar o fato de que as novelas em prosa (sintagmáticas, sempre conceituais), diferentes dos romances paradigmáticos da Era Moderna, em seu caminhar histórico até ao momento, não lograram transformar-se em ficção-arte, continuaram lineares, e, aos poucos, perderam aquela graça própria dos narradores iniciais, das novelas ou romances de cavalaria em versos, atualmente, reconhecidos como narradores épico-medievais.
Entretanto, o narrador moderno descobriu que pensava porque tinha “olhos” e mão poderosa (e, aqui, repito, refiro-me aos criadores excepcionais de um tipo de ficção que começou com Miguel de Cervantes, no início do século XVII), aquele narrador da Era Moderna que instaurou, nos meios intelectuais de então, um gênero literário estreante atualmente conhecido por “narrativa em prosa” ou “narrativa ficcional”, para diferenciá-lo da epopéia (Gênero Épico) e das novelas medievais de cavalaria (lineares), escritas primitivamente em versos (posteriormente, adaptadas em prosa, para o gosto dos nascentes burgueses).


[i] ROBBE-GRILLET, Alain. 1969: 23.
[ii] ANAXÁGORAS DE CLAZOMENE. In: BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar.  3. ed. Tradução: José Américo Motta Pessanha, Jacqueline Raas, Maria Lúcia de Carvalho Monteiro, Maria Isabel Raposo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991: XIV.
[iii] BACHELARD, Gaston, 1991: 9.

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