Ribamar de Sousa: Narrador-Personagem Exemplar?
Um personagem, todo mundo
sabe o que a palavra significa. Não é um ele qualquer, anônimo e translúcido,
simples sujeito da ação expressa pelo verbo. Um personagem deve ter um nome
próprio, composto se possível: nome de família e prenome. Deve ter parentes,
uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver bens, melhor ainda. Enfim,
deve possuir um “caráter”, um passado que tenha modelado este e aquele. Seu
caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma determinada maneira a cada
acontecimento. Seu caráter permite que o leitor o julgue, que goste dele ou o
odeie. É graças a esse caráter que, um dia, ele legará seu nome a um tipo
humano que aguardava, seria possível dizer, a consagração desse batismo.
Pois é necessário ao mesmo
tempo que o personagem seja único e que se eleve à altura de uma categoria.
Precisa de muita particularidade para se tornar insubstituível, e suficiente
generalidade para se tornar universal. Variando um pouco, a fim de dar uma
certa impressão de liberdade, seria possível escolher um herói que parece
transgredir uma dessas regras: uma criança achada, um desocupado, um louco, um
homem cujo caráter incerto apronta aqui e ali uma pequena surpresa...
entretanto, não haverá exageros neste caminho: é o da perdição, aquele que
conduz diretamente ao romance moderno.
Com efeito, em relação a
este ponto nenhuma das grandes obras contemporâneas corresponde às normas da
crítica. Quantos leitores ainda se lembram do nome do narrador em A Náusea ou
no Estrangeiro? Há aí tipos humanos? Pelo contrário, não seria o maior absurdo
considerar esses livros como sendo estudos de caráter? E Voyage au bout de la
nuit descreve um personagem? Por outro lado, acredita-se que foi por acaso que
esses três romances foram escritos na primeira pessoa? Beckett muda o nome e a
forma de seu herói no decorrer de uma mesma narrativa. Faulkner, de propósito,
dá o mesmo nome a duas pessoas diferentes. Quanto ao K. do Castelo, ele se
contentará com uma inicial, não possui nada, não tem família, não tem rosto;
provavelmente não é nem mesmo agrimensor.
Seria possível multiplicar
os exemplos. De fato, os criadores de personagens, no sentido tradicional da
palavra, só conseguem nos propor fantoches em que eles mesmos já deixaram de
acreditar. O romance de personagens pertence inteiramente ao passado,
caracteriza uma época: a que marcou o apogeu do indivíduo.[i]
Pois que esta narrativa ─
paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia
confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa,
aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia
dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de
improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais
(...)[ii]
Mesmo compreendendo a posição despojada do criador
ficcional pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, do próprio
escritor de O Amante das Amazonas, a instigar o leitor ao desnudamento
de sua obra ficcional, não posso deixar, servindo-me das palavras de
Robbe-Grillet, de contrastar-me às suas palavras. Seu personagem-narrador
Ribamar de Sousa não imita os escritores amazonenses do período do auge da
borracha. Esses escritores certamente imitaram Euclides da Cunha, uma vez que
temporalmente ainda estavam próximos dele. O Ribamar, enquanto alter ego do
narrador/ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, ultrapassa
as barreiras do “semelhante” (característica de plágios mal formulados) e
aventura-se no plano das invenções literárias maiores. Como narrador restrito a
um determinado momento estético-social diferenciado (final do século XX),
inicialmente como voz representativa do imigrante nordestino a fugir da seca e
da fome intermitentes, o Ribamar de Sousa jamais poderia “imitar” o estilo ou
mesmo o discurso de um narrador que se configurou nos primórdios do século XX. Mesmo
que o narrador de Rogel Samuel se apropriasse de frases inteiras, explícitas,
de outros escritores que se preocuparam com os assuntos da Grande Floresta
Amazonense, de outros momentos estéticos do passado, ainda assim esses
pensamentos já se posicionariam renovados, pois os mesmos já estariam
submetidos ao imaginário de sua própria contemporaneidade. Se o texto ficcional
de Rogel se revelasse como obra sem valor, como reformulações de outros textos
(ficcionais ou não) de outros autores, de épocas passadas, não ofereceria
espaço para uma fértil mediação crítica.
Pois, se as normas do
passado servem para medir o presente, servem também para construí-lo. O próprio
escritor, a despeito de sua vontade de independência, está em situação numa
civilização mental, numa literatura que só pode ser a do passado. É-lhe
impossível escapar de um só dia para o outro dessa tradição em que se originou.
Às vezes, mesmo, os elementos que ele mais tentou combater parecerão, pelo
contrário, desabrochar mais vigorosamente do que nunca na mesma obra com a qual
ele acreditava assestar-lhe um golpe decisivo; e, bem entendido, será
felicitado com alívio por tê-los cultivado com tanto zelo.[iii]
As citações ao
longo dos textos ficcionais pós-modernistas, inclusive as não nomeadas, sustentam
o fluxo narrativo diferenciado do escritor da Era Pós-Moderna. Augusto
Abelaira, ficcionista português, revelado para o mundo a partir dos anos
cinqüenta do século XX, valeu-se de uns versos de Carlos de Oliveira,
intitulado “Bolor”, para escrever o seu diferente romance pós-modernista
português, inclusive, apropriando-se criativamente do título. O romance Bolor,
publicado em 1968, exibe, na página inicial, o poema de Carlos de Oliveira,
colocando-o como parte integrante da ficção. Ali, segundo Theodor Adorno (que
faz a apresentação da edição brasileira de 1999 da Editora Lacerda, leia-se
Editora Nova Aguillar), observa-se “um livro inteligente”[iv].
Para Theodor Adorno, conceituado crítico literário, “Bolor exibe à tona
do enredo uma armadilha: quem escreve o diário? Pois de um diário se trata,
embora não se paute exatamente pelas convenções do gênero”[v]. O
ficcionista mineiro Roberto Drummond, escritor que passou a ser conhecido no
início dos anos 70, ao editar a sua coletânea de contos A Morte de D. J. em
Paris, contos que procuravam “derrubar padrões pré-estabelecidos”, segundo
palavras do autor, inaugura a coletânea com versos de Bob Dylan: Os grandes
livros foram escritos / os grandes ditos foram ditos / e eu só quero tentar
pintar um quadro / ainda que não entenda bem o que se passa / sei que
morreremos algum dia / e que nenhuma morte deterá o mundo. Naquele momento,
o Brasil vivia o período da ditadura militar e as mortes políticas não poderiam
ser contestadas por meio da palavra. A criatividade ficcional de Roberto
Drummond permanecerá dinâmica, graças à sua diferenciada infração
narrativa ao se apropriar ativamente dos versos de Bob Dylan,
colocando-os de forma duradoura em seu livro e, com esta atitude, denunciando,
com arte e sutileza, as “crueldades” das normas ditatoriais de seu momento
histórico. E os versos de Bob Dylan se perpetuarão como parte integrante destas
nomeadas e diferentes narrativas ficcionais de Roberto Drummond.
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