segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 Ribamar de Sousa: Narrador-Personagem Exemplar?
 
Um personagem, todo mundo sabe o que a palavra significa. Não é um ele qualquer, anônimo e translúcido, simples sujeito da ação expressa pelo verbo. Um personagem deve ter um nome próprio, composto se possível: nome de família e prenome. Deve ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um “caráter”, um passado que tenha modelado este e aquele. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite que o leitor o julgue, que goste dele ou o odeie. É graças a esse caráter que, um dia, ele legará seu nome a um tipo humano que aguardava, seria possível dizer, a consagração desse batismo.
 
Pois é necessário ao mesmo tempo que o personagem seja único e que se eleve à altura de uma categoria. Precisa de muita particularidade para se tornar insubstituível, e suficiente generalidade para se tornar universal. Variando um pouco, a fim de dar uma certa impressão de liberdade, seria possível escolher um herói que parece transgredir uma dessas regras: uma criança achada, um desocupado, um louco, um homem cujo caráter incerto apronta aqui e ali uma pequena surpresa... entretanto, não haverá exageros neste caminho: é o da perdição, aquele que conduz diretamente ao romance moderno.
 
Com efeito, em relação a este ponto nenhuma das grandes obras contemporâneas corresponde às normas da crítica. Quantos leitores ainda se lembram do nome do narrador em A Náusea ou no Estrangeiro? Há aí tipos humanos? Pelo contrário, não seria o maior absurdo considerar esses livros como sendo estudos de caráter? E Voyage au bout de la nuit descreve um personagem? Por outro lado, acredita-se que foi por acaso que esses três romances foram escritos na primeira pessoa? Beckett muda o nome e a forma de seu herói no decorrer de uma mesma narrativa. Faulkner, de propósito, dá o mesmo nome a duas pessoas diferentes. Quanto ao K. do Castelo, ele se contentará com uma inicial, não possui nada, não tem família, não tem rosto; provavelmente não é nem mesmo agrimensor.
 
Seria possível multiplicar os exemplos. De fato, os criadores de personagens, no sentido tradicional da palavra, só conseguem nos propor fantoches em que eles mesmos já deixaram de acreditar. O romance de personagens pertence inteiramente ao passado, caracteriza uma época: a que marcou o apogeu do indivíduo.[i]
 
Pois que esta narrativa ─ paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais (...)[ii]
 
Mesmo compreendendo a posição despojada do criador ficcional pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, do próprio escritor de O Amante das Amazonas, a instigar o leitor ao desnudamento de sua obra ficcional, não posso deixar, servindo-me das palavras de Robbe-Grillet, de contrastar-me às suas palavras. Seu personagem-narrador Ribamar de Sousa não imita os escritores amazonenses do período do auge da borracha. Esses escritores certamente imitaram Euclides da Cunha, uma vez que temporalmente ainda estavam próximos dele. O Ribamar, enquanto alter ego do narrador/ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, ultrapassa as barreiras do “semelhante” (característica de plágios mal formulados) e aventura-se no plano das invenções literárias maiores. Como narrador restrito a um determinado momento estético-social diferenciado (final do século XX), inicialmente como voz representativa do imigrante nordestino a fugir da seca e da fome intermitentes, o Ribamar de Sousa jamais poderia “imitar” o estilo ou mesmo o discurso de um narrador que se configurou nos primórdios do século XX. Mesmo que o narrador de Rogel Samuel se apropriasse de frases inteiras, explícitas, de outros escritores que se preocuparam com os assuntos da Grande Floresta Amazonense, de outros momentos estéticos do passado, ainda assim esses pensamentos já se posicionariam renovados, pois os mesmos já estariam submetidos ao imaginário de sua própria contemporaneidade. Se o texto ficcional de Rogel se revelasse como obra sem valor, como reformulações de outros textos (ficcionais ou não) de outros autores, de épocas passadas, não ofereceria espaço para uma fértil mediação crítica.
 
Pois, se as normas do passado servem para medir o presente, servem também para construí-lo. O próprio escritor, a despeito de sua vontade de independência, está em situação numa civilização mental, numa literatura que só pode ser a do passado. É-lhe impossível escapar de um só dia para o outro dessa tradição em que se originou. Às vezes, mesmo, os elementos que ele mais tentou combater parecerão, pelo contrário, desabrochar mais vigorosamente do que nunca na mesma obra com a qual ele acreditava assestar-lhe um golpe decisivo; e, bem entendido, será felicitado com alívio por tê-los cultivado com tanto zelo.[iii]
 
As citações ao longo dos textos ficcionais pós-modernistas, inclusive as não nomeadas, sustentam o fluxo narrativo diferenciado do escritor da Era Pós-Moderna. Augusto Abelaira, ficcionista português, revelado para o mundo a partir dos anos cinqüenta do século XX, valeu-se de uns versos de Carlos de Oliveira, intitulado “Bolor”, para escrever o seu diferente romance pós-modernista português, inclusive, apropriando-se criativamente do título. O romance Bolor, publicado em 1968, exibe, na página inicial, o poema de Carlos de Oliveira, colocando-o como parte integrante da ficção. Ali, segundo Theodor Adorno (que faz a apresentação da edição brasileira de 1999 da Editora Lacerda, leia-se Editora Nova Aguillar), observa-se “um livro inteligente”[iv]. Para Theodor Adorno, conceituado crítico literário, “Bolor exibe à tona do enredo uma armadilha: quem escreve o diário? Pois de um diário se trata, embora não se paute exatamente pelas convenções do gênero”[v]. O ficcionista mineiro Roberto Drummond, escritor que passou a ser conhecido no início dos anos 70, ao editar a sua coletânea de contos A Morte de D. J. em Paris, contos que procuravam “derrubar padrões pré-estabelecidos”, segundo palavras do autor, inaugura a coletânea com versos de Bob Dylan: Os grandes livros foram escritos / os grandes ditos foram ditos / e eu só quero tentar pintar um quadro / ainda que não entenda bem o que se passa / sei que morreremos algum dia / e que nenhuma morte deterá o mundo. Naquele momento, o Brasil vivia o período da ditadura militar e as mortes políticas não poderiam ser contestadas por meio da palavra. A criatividade ficcional de Roberto Drummond permanecerá dinâmica, graças à sua diferenciada infração narrativa ao se apropriar ativamente dos versos de Bob Dylan, colocando-os de forma duradoura em seu livro e, com esta atitude, denunciando, com arte e sutileza, as “crueldades” das normas ditatoriais de seu momento histórico. E os versos de Bob Dylan se perpetuarão como parte integrante destas nomeadas e diferentes narrativas ficcionais de Roberto Drummond.


[i] ROBBE-GRILLET, Alain. 1969: 21-22.
[ii] SAMUEL, Rogel, 2005: 16.
[iii] ROBBE-GRILLET, Alain. 1969: 15.
[iv] ADORNO, Theodor. In.: ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de Janeiro: Lacerda: 1999.
[v] Idem: 5.

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