sábado, 1 de fevereiro de 2014

Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 
 
 
 
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador
 
A fenomenologia do ser efetivamente mascarado, inteiramente travestido, é então pura negatividade de seu próprio ser. Pode adormecer nessa negatividade e mesmo perder a consciência de sua vontade de máscara. Tudo é feito de um só golpe: mascarar-se ou ser desmascarado é uma nítida alternativa lógica sem qualquer valor existencial.
 
A fenomenologia do ser que dissimula, mesmo do ser que desejaria alcançar a segurança total da máscara, somente poderá ser determinada em suas nuanças por intermédio das máscaras de algum modo parciais, inacabadas, fugidias, incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas. A dissimulação é então uma conduta intermediária, uma conduta oscilante entre os dois pólos do oculto e do mostrado. Não há dissimulação hábil sem ostentação.
 
É necessário, portanto, penetrar na zona onde os acordos são incessantes, no próprio centro de uma verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, juntar de alguma maneira a máscara inerte e o rosto vivo. O rosto visto nas manchas de tinta [nas palavras escritas] deve fornecer os traços decisivos da fisionomia. A máscara virtual é então um verdadeiro esquema para a análise. Interpretar a máscara virtual é penetrar na própria zona em que a ideação e a imagética permutam indefinidamente suas ações. Como diz justamente Georges Buraud em seu livro As Máscaras: “As máscaras são sonhos fixados” e, correlativamente, “os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem”.(...). O psiquiatra deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente. Se o psiquiatra se adaptar à máscara que o paciente extrai da mancha, ele lerá, nessa máscara esquemática, pensamentos secretos do enfermo, os pensamentos que querem se esconder sob a máscara. Lerá, por assim dizer, no interior da máscara.[i]
 
Nestas modificadas deduções reflexivas, a partir do capítulo intitulado SEIS: JÚLIA (alusão à entrada de um novo personagem no fluxo narrativo), e reconsiderando inclusive as diversas vozes narrativas recônditas que se interligam no todo da ficção rogeliana (em verdade, há outras vozes narrativas no romance, vozes ocultas, pari passu com os dois narradores visíveis), não distingo mais o personagem Ribamar de Sousa como narrador repleto de força e autoridade concretamente representativa, aquela face histórico-ficcional em primeira pessoa, exteriorizada (aquela diferente máscara narrativa ficcional pós-moderna de narrador exemplar à moda tradicional) dos primeiros capítulos. No início, o Ribamar de Sousa representa ficcionalmente e historicamente o imigrante nordestino, fugindo da seca e da fome, buscando uma nova perspectiva existencial no Amazonas, lugar de muita água e, conseqüentemente, pelo ponto de vista da gratuidade da natureza, de muita fartura alimentar. Posteriormente, ainda em primeira pessoa, a voz narrativa apresenta-se como um ex-imigrante que alcança o podium requisitadíssimo da burguesia manauara pós-borracha. Pelo fim do romance, o Ribamar-narrador se submeterá a um segundo narrador, para que este conte a sua trajetória vitoriosa até alcançar, politicamente, o cargo de Senador da República do Brasil. Respaldada pelo segundo narrador (em terceira pessoa) e seguindo o desenrolar desta ficção que me movimenta, avançando em meus exames reflexivos, percebo-o, na terceira fase do romance, como personagem ativado, poderoso, submetido às induções criativas de outro narrador, porta-voz do escritor-ficcionista dos anos finais do século XX, Rogel Samuel. A partir dali, um outro narrador (de onisciência ficcional) contará o trajeto existencial do primeiro narrador Ribamar de Sousa: da lama do Manixi, da primeira fase do “capitalismo selvagem” (exploração do trabalho diário em horas a mais, inumanas), à riqueza sem freios, pessoal (sem estruturas confiáveis), de um capitalismo em fase de transição, simplesmente político, para uma segunda etapa do próprio capitalismo, aquele conhecido também por “capitalismo selvagem” (o domínio das grandes empresas estrangeiras com o consentimento dos poderosos da região).
Mesmo supondo que um narrador onisciente, um demiurgo ficcional, estivesse sempre presente, desde o início, assessorando a fala do primeiro senhor do procedimento narrativo, reconhecido pelos leitores pelo nome de Ribamar de Sousa, posso adiantar que o segundo só se manifestou/manifestar-se-á explicitamente no capítulo seis.
Anteriormente, no capítulo intitulado: CINCO: FERREIRA, os dois narradores se vincularam dinamicamente, pois necessitavam da união em seus interesses ficcionais (distanciados dos registros históricos), das forças criadoras do ato de narrar em defesa do prosseguimento do relato. E o relato ficcional rogeliano, para a manifestação de suas idéias diferenciadas sobre o espaço epo-social-ficcional do Seringal Manixi e a respeito dos personagens-agentes que por ali transitaram/transitam, não se desenvolveu e não se desenvolverá pelas vias normais do tempo vital.
Dialeticamente, pois me vejo instigada pelo tempo do pensar criativo de Rogel Samuel, dou um passo atrás, para descobrir o nó da questão que me orienta. No capítulo intitulado QUATRO: PAXIÚBA, no qual o personagem mítico se presentifica, em pleno século XX desestabilizado, século determinante de mudanças temporais, o primeiro narrador, comprometido com a sua atuação de sinalizador das exigências conceituais do histórico-ficcional e do mítico-ficcional, é temporariamente o dono do ato de narrar. Ribamar de Sousa, neste capítulo e nos próximos, sofre/sofrerá uma transformação em seu modo de vida, adquirindo gradativamente uma nova atitude ficcional, como ativado personagem submetido a um outro narrador. Mas, por enquanto, continua/continuará a se construir visivelmente como poderoso auxiliar do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração (porta-voz do escritor Rogel Samuel) em sua diferente proposta de criação literária. Neste caso específico (no quarto capítulo), sua presença se fez/se faz necessária, como uma espécie de intermediário das narrativas tradicionais exemplares, para que o segundo páginas adiante possa interagir, com a chamada narrativa insólita, uma variegada e entrópica inovação ficcional da Era Pós-Moderna, respaldada pelos desordenados e inúmeros modelos sócio-históricos e literários do final do segundo milênio das inevitáveis incertezas existenciais.
Se os leitores de Rogel Samuel acompanharam até o momento o meu raciocínio interpretativo, lembrar-se-ão do primeiro personagem-narrador Ribamar de Sousa, logo depois do fogo mítico, agente ígneo providencial ao desaparecimento dos personagens tio Genaro e Antônio, a mergulhar “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida” e “[sendo] levado e se [afastando] dali”. Foi nesse momento que a apresentação do arcabouço histórico-ficcional se “dissolveu” para ceder o espaço ao mediador do relato mítico, onde se sobressaiu/se sobressai, conforme já foi refletido, a poderosa figura do bugre Paxiúba, iluminado pelo interregno simbólico do rogeliano relato pós-moderno da Segunda Geração. Esta segunda fase de O Amante das Amazonas, relacionada ao bugre Paxiúba, resguardada, como já foi assinalado, pela construção do recontar mítico indígena, também revelará, seguidamente, um novo momento de impasse ficcional, na busca dos valores ficcionais da pós-modernidade. Para referendar minhas deduções reflexivas, auxiliadas pela Crítica Cientificista Analítica, retomo o trecho da página 35 (op. cit.), no qual o narrador fundamental (oculto, disfarçado de Ribamar de Sousa) anuncia reptadoramente, sublinearmente, por intermédio de seu próprio sonho (“sonho de meia-noite psíquica, onde germinam virtudes de origem”[ii]), que, dali por diante, a narrativa não prosseguirá pelo mesmo procedimento inicial.
 
Foi aí que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou. Eu batia em paus e pedras, mas prosseguia e prossegui, noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento do meu sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre sombras, segredos e lágrimas de tudo se dissolvendo... Sim.[iii]


[i] BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. 3. ed. Tradução de José Américo Motta Peçanha et alli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991: 166-167.
[ii] Idem: 160.
[iii] SAMUEL, Rogel, 2005: 35-36.

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