NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do
Segundo Narrador
A fenomenologia do ser
efetivamente mascarado, inteiramente travestido, é então pura negatividade de
seu próprio ser. Pode adormecer nessa negatividade e mesmo perder a consciência
de sua vontade de máscara. Tudo é feito de um só golpe: mascarar-se ou ser
desmascarado é uma nítida alternativa lógica sem qualquer valor existencial.
A fenomenologia do ser que
dissimula, mesmo do ser que desejaria alcançar a segurança total da máscara,
somente poderá ser determinada em suas nuanças por intermédio das máscaras de
algum modo parciais, inacabadas, fugidias, incessantemente tomadas e retomadas,
sempre incoativas. A dissimulação é então uma conduta intermediária, uma
conduta oscilante entre os dois pólos do oculto e do mostrado. Não há
dissimulação hábil sem ostentação.
É necessário, portanto,
penetrar na zona onde os acordos são incessantes, no próprio centro de uma
verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, juntar de alguma
maneira a máscara inerte e o rosto vivo. O rosto visto nas manchas de tinta
[nas palavras escritas] deve fornecer os traços decisivos da fisionomia. A
máscara virtual é então um verdadeiro esquema para a análise. Interpretar a
máscara virtual é penetrar na própria zona em que a ideação e a imagética
permutam indefinidamente suas ações. Como diz justamente Georges Buraud em seu
livro As Máscaras: “As máscaras são sonhos fixados” e, correlativamente, “os
sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem,
representam sua comédia ou seu drama, e morrem”.(...). O psiquiatra deve
viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente. Se o psiquiatra
se adaptar à máscara que o paciente extrai da mancha, ele lerá, nessa máscara
esquemática, pensamentos secretos do enfermo, os pensamentos que querem se
esconder sob a máscara. Lerá, por assim dizer, no interior da máscara.[i]
Nestas
modificadas deduções reflexivas, a partir do capítulo intitulado SEIS: JÚLIA (alusão à
entrada de um novo personagem no fluxo narrativo), e reconsiderando inclusive
as diversas vozes narrativas recônditas que se interligam no todo da ficção
rogeliana (em verdade, há outras vozes narrativas no romance, vozes ocultas, pari
passu com os dois narradores visíveis), não distingo mais o personagem
Ribamar de Sousa como narrador repleto de força e autoridade concretamente
representativa, aquela face histórico-ficcional em primeira pessoa,
exteriorizada (aquela diferente máscara narrativa ficcional pós-moderna de
narrador exemplar à moda tradicional) dos primeiros capítulos. No
início, o Ribamar de Sousa representa ficcionalmente e historicamente o
imigrante nordestino, fugindo da seca e da fome, buscando uma nova perspectiva
existencial no Amazonas, lugar de muita água e, conseqüentemente, pelo ponto de
vista da gratuidade da natureza, de muita fartura alimentar. Posteriormente,
ainda em primeira pessoa, a voz narrativa apresenta-se como um ex-imigrante que
alcança o podium requisitadíssimo da burguesia manauara pós-borracha. Pelo fim
do romance, o Ribamar-narrador se submeterá a um segundo narrador, para que
este conte a sua trajetória vitoriosa até alcançar, politicamente, o cargo de
Senador da República do Brasil. Respaldada pelo segundo narrador (em terceira
pessoa) e seguindo o desenrolar desta ficção que me movimenta, avançando em
meus exames reflexivos, percebo-o, na terceira fase do romance, como personagem
ativado, poderoso, submetido às induções criativas de outro narrador, porta-voz
do escritor-ficcionista dos anos finais do século XX, Rogel Samuel. A partir
dali, um outro narrador (de onisciência ficcional) contará o trajeto
existencial do primeiro narrador Ribamar de Sousa: da lama do Manixi, da
primeira fase do “capitalismo selvagem” (exploração do trabalho diário em horas
a mais, inumanas), à riqueza sem freios, pessoal (sem estruturas confiáveis),
de um capitalismo em fase de transição, simplesmente político, para uma segunda
etapa do próprio capitalismo, aquele conhecido também por “capitalismo
selvagem” (o domínio das grandes empresas estrangeiras com o consentimento dos
poderosos da região).
Mesmo supondo
que um narrador onisciente, um demiurgo ficcional, estivesse sempre presente,
desde o início, assessorando a fala do primeiro senhor do procedimento
narrativo, reconhecido pelos leitores pelo nome de Ribamar de Sousa, posso
adiantar que o segundo só se manifestou/manifestar-se-á explicitamente no capítulo
seis.
Anteriormente,
no capítulo intitulado: CINCO:
FERREIRA, os dois narradores se vincularam dinamicamente, pois
necessitavam da união em seus interesses ficcionais (distanciados dos registros
históricos), das forças criadoras do ato de narrar em defesa do prosseguimento
do relato. E o relato ficcional rogeliano, para a manifestação de suas idéias
diferenciadas sobre o espaço epo-social-ficcional do Seringal Manixi e a
respeito dos personagens-agentes que por ali transitaram/transitam, não se
desenvolveu e não se desenvolverá pelas vias normais do tempo vital.
Dialeticamente,
pois me vejo instigada pelo tempo do pensar criativo de Rogel Samuel, dou um
passo atrás, para descobrir o nó da questão que me orienta. No capítulo
intitulado QUATRO:
PAXIÚBA, no qual o personagem mítico se presentifica, em pleno século XX
desestabilizado, século determinante de mudanças temporais, o primeiro
narrador, comprometido com a sua atuação de sinalizador das exigências
conceituais do histórico-ficcional e do mítico-ficcional, é temporariamente o
dono do ato de narrar. Ribamar de Sousa, neste capítulo e nos próximos,
sofre/sofrerá uma transformação em seu modo de vida, adquirindo gradativamente
uma nova atitude ficcional, como ativado personagem submetido a um outro narrador.
Mas, por enquanto, continua/continuará a se construir visivelmente como
poderoso auxiliar do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração
(porta-voz do escritor Rogel Samuel) em sua diferente proposta de criação
literária. Neste caso específico (no quarto capítulo), sua presença se fez/se
faz necessária, como uma espécie de intermediário das narrativas tradicionais
exemplares, para que o segundo páginas adiante possa interagir, com a chamada
narrativa insólita, uma variegada e entrópica inovação ficcional da Era
Pós-Moderna, respaldada pelos desordenados e inúmeros modelos sócio-históricos
e literários do final do segundo milênio das inevitáveis incertezas
existenciais.
Se os leitores
de Rogel Samuel acompanharam até o momento o meu raciocínio interpretativo,
lembrar-se-ão do primeiro personagem-narrador Ribamar de Sousa, logo depois do
fogo mítico, agente ígneo providencial ao desaparecimento dos personagens tio
Genaro e Antônio, a mergulhar “na invisível água do igarapé de treva fria e
rápida” e “[sendo] levado e se [afastando] dali”. Foi nesse momento que a
apresentação do arcabouço histórico-ficcional se “dissolveu” para ceder o
espaço ao mediador do relato mítico, onde se sobressaiu/se sobressai, conforme
já foi refletido, a poderosa figura do bugre Paxiúba, iluminado pelo interregno
simbólico do rogeliano relato pós-moderno da Segunda Geração. Esta segunda fase
de O Amante das Amazonas, relacionada ao bugre Paxiúba, resguardada,
como já foi assinalado, pela construção do recontar mítico indígena, também
revelará, seguidamente, um novo momento de impasse ficcional, na busca dos
valores ficcionais da pós-modernidade. Para referendar minhas deduções
reflexivas, auxiliadas pela Crítica Cientificista Analítica, retomo o trecho da
página 35 (op. cit.), no qual o narrador fundamental (oculto, disfarçado de
Ribamar de Sousa) anuncia reptadoramente, sublinearmente, por intermédio de seu
próprio sonho (“sonho de meia-noite psíquica, onde germinam virtudes de
origem”[ii]),
que, dali por diante, a narrativa não prosseguirá pelo mesmo procedimento
inicial.
Foi aí que não soube de mais
nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do
igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi
mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me
abraçou, me envolveu, me levou. Eu batia em paus e pedras, mas prosseguia e
prossegui, noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem
pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento do meu
sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa,
continuando assim
por muitas horas entre sombras, segredos e lágrimas de tudo se dissolvendo... Sim.[iii]
[i] BACHELARD, Gaston.
O Direito de
Sonhar. 3.
ed. Tradução de José Américo Motta Peçanha et alli. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1991: 166-167.
Nenhum comentário:
Postar um comentário