quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

NEUZA MACHADO -  ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

Por este prisma fenomenológico, quem se percebe chorando, “no abandono e solidão”, é o criador ficcional da pós-modernidade, o escritor da narrativa O Amante das Amazonas. Foram dez anos de pesquisa para a elaboração de seu projeto literário. A caminhada foi longa. Ele teve de revolver o passado familiar, buscar as próprias origens nordestinas, peruanas, judaicas e francesas (como herdeiro de sobrenomes ─ nomes familiares ─ notáveis), leu os grandes clássicos, escritores famosos, lecionou em um respeitável curso universitário e produziu literatura técnica de qualidade. Desenvolveu inúmeros talentos além da escrita literária, como pintura e música, reconheceu a validade da computação e aceitou a novidade da Internet pós-moderna como veículo indispensável para a projeção intelectual. A trajetória (de Manaus para o Mundo) não foi um caminho suave. Muitos obstáculos surgiram. E, em sua narrativa extremamente elevada, o seu narrador-alter ego se defronta com “parentes” que não o reconhecem mais como tal, porque esses já não são mais de sua espécie, “tinham virado bichos”, e não lhe poderiam ensinar mais nada[i]. A “mala de amarrado”, no início da narrativa ─ mostrando-se repleta de suas próprias idéias originais, idéias que se entrelaçam, se ajustam, se repelem (repouso fervilhante), em meio a “duas mudas de roupa”[ii] ─ “escorrendo chuva”, teria de ser aberta de qualquer maneira. Seu primeiro narrador Ribamar de Sousa iniciara a viagem em seu lugar, “a família toda” (seus familiares, seus conterrâneos, seus pares intelectuais amazonenses ou não) o deixara sozinho “no horror de Deus”, retomar as regras ficcionais do passado, regras passadistas, naquele início narrativo, seria algo impossível. A “mala de amarrado” teria de ser aberta e re-arrumada várias vezes, por meio de novas e diferentes diretrizes ficcionais.
 
Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida no deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra.[iii]
 
Seus parentes, “os dois machos protagonistas do enigma de [seu] próprio silêncio e de [sua] angustiosa comunicação gestual”, terão de existir, temporariamente, a partir dali, “como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída”, “na prisão geográfica onde só recordar [será] possível sob pressão da materialidade selvagem e da solidariedade da guerra”. Tio Genaro e Antônio são importantes para o desenrolar ficcional, mas são representantes de mundos conceituais, o social e o mítico.
 
No meio da noite, súbita, acordo: toda a floresta está em chamas! Mas não era sonho não, conforme logo vi, e ouvi os disparos da arma de meu tio. Gritos e gritos. Na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça, meu irmão na contorcedura da grande dor, especado por flechas feito porco espinho ─ agulheiro de dor! E meu tio atrás das pélas, parecendo mal, morrendo. Os Numas nos atacavam no meio da noite, mas... eu ainda estava vivo e não ferido.
 
Foi aí que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou.[iv]
 
Os dois personagens jamais ultrapassarão as barreiras que separam o mundo conceitual do mundo amorfo (não-dito), e terão de findar suas vidas, socialmente e miticamente, por intermédio do fogo. Mas, como personagens mitificados, representantes da chave para um novo recontar ficcional, poderão renascer ou não, sair das cinzas ou não, a cada leitura, a cada leitor que obtiver o privilégio de interagir com o texto receptivo de Rogel Samuel. Enquanto houver leitores reflexivos, a oferecer-lhes vida ficcional, Genaro e Antônio partirão “para a estrada como para a morte”[v], e, páginas adiante, “no meio da noite, (...) toda a floresta em chamas, na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça”[vi], os dois terão de desaparecer (morrer) miticamente, e o personagem-narrador continuará “vivo e não ferido”, para (depois da extinção dos adjuvantes) modificar e amplificar o curso narrativo.
 
(...) o fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida. Neste caso, o devaneio é verdadeiramente empolgante e dramático; amplifica o destino humano; liga o que é pequeno ao que é grande, a lareira ao vulcão, a vida de uma acha à vida de um mundo. O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação.[vii]
 
 
Com o fogo tudo se modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O fenômeno inicial é não só o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos de vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponta do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência.[viii]
 
“O fogo sugere o desejo de mudança”. A morte dos dois personagens pelo fogo (arma-de-fogo, flechas incandescentes, fogo na floresta) possibilita a alteração no rumo da primeira seqüência narrativa (sedimentada em princípio pelo arcabouço histórico) para uma segunda etapa ficcional (“a outra vida” gerenciada pela forma do narrar mítico). Com esta atitude, o proprietário da arte de narrar orienta o primeiro narrador para uma segunda dimensão ficcional (auxiliado pelo conhecimento do mito). Submetido à fervura ígnea de seu cogito diferenciador, percebe-se impelido à uma significação calamitosa (tio Genaro e Antônio consumidos pelo fogo) que anime o desenrolar do narrado. O fogo mítico, circunstancial, promove uma espécie de liberdade transitória, em busca das inovações do imaginário-em-aberto da consciência singular, interativa, porque o elemento rigorosamente indispensável ao escritor da pós-modernidade, propulsor de renovados juízos de descoberta, é o ar. O Manixi, a Cidade de Manaus e todos os personagens rogelianos que por ali transitam exalando dinamismo, se refortaleceram ao longo daqueles muitos anos de pesquisa (revelados nas Entrevistas do escritor amazonense), e se animam de um jeito incomum pela “força de elevação psíquica”[ix] do escritor.


[i] Idem: 9.
[ii] Ibidem.
[iii] Idem: 30.
[iv] Idem: 35.
[v] Idem: 30
[vi] Idem: 35.
[vii] BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Tradução de Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral, 1989: 22.
[viii] Idem, 1990: 64.
[ix] BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 40.

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