NEUZA
MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO
AMAZÔNICO
Por este prisma fenomenológico, quem se percebe
chorando, “no abandono e solidão”, é o criador ficcional da pós-modernidade, o
escritor da narrativa O Amante das Amazonas. Foram dez anos de pesquisa
para a elaboração de seu projeto literário. A caminhada foi longa. Ele teve de
revolver o passado familiar, buscar as próprias origens nordestinas, peruanas,
judaicas e francesas (como herdeiro de sobrenomes ─ nomes familiares ─
notáveis), leu os grandes clássicos, escritores famosos, lecionou em um
respeitável curso universitário e produziu literatura técnica de qualidade.
Desenvolveu inúmeros talentos além da escrita literária, como pintura e música,
reconheceu a validade da computação e aceitou a novidade da Internet
pós-moderna como veículo indispensável para a projeção intelectual. A
trajetória (de Manaus para o Mundo) não foi um caminho suave. Muitos obstáculos
surgiram. E, em sua narrativa extremamente elevada, o seu narrador-alter ego se
defronta com “parentes” que não o reconhecem mais como tal, porque esses já não
são mais de sua espécie, “tinham virado bichos”, e não lhe poderiam ensinar
mais nada[i]. A
“mala de amarrado”, no início da narrativa ─ mostrando-se repleta de suas
próprias idéias originais, idéias que se entrelaçam, se ajustam, se repelem
(repouso fervilhante), em meio a “duas mudas de roupa”[ii] ─
“escorrendo chuva”, teria de ser aberta de qualquer maneira. Seu primeiro
narrador Ribamar de Sousa iniciara a viagem em seu lugar, “a família toda”
(seus familiares, seus conterrâneos, seus pares intelectuais amazonenses ou
não) o deixara sozinho “no horror de Deus”, retomar as regras ficcionais do
passado, regras passadistas, naquele início narrativo, seria algo impossível. A
“mala de amarrado” teria de ser aberta e re-arrumada várias vezes, por meio de
novas e diferentes diretrizes ficcionais.
Pois do lado de cá
ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois
machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação
gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida no deserto por
resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão
geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade
selvagem e da solidariedade de guerra.[iii]
Seus parentes, “os dois machos protagonistas do
enigma de [seu] próprio silêncio e de [sua] angustiosa
comunicação gestual”, terão de existir,
temporariamente, a partir dali, “como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída”, “na prisão geográfica onde só recordar [será] possível sob pressão da
materialidade selvagem e da solidariedade da guerra”. Tio Genaro e Antônio são importantes
para o desenrolar
ficcional, mas são representantes de mundos conceituais, o social
e o mítico.
No meio
da noite, súbita, acordo: toda a floresta está em chamas! Mas não era sonho
não, conforme logo vi, e ouvi os disparos da arma de meu tio. Gritos e gritos.
Na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça, meu irmão na
contorcedura da grande dor, especado por flechas feito porco espinho ─
agulheiro de dor! E meu tio atrás das pélas, parecendo mal, morrendo. Os Numas
nos atacavam no meio da noite, mas... eu ainda estava vivo e não ferido.
Foi aí
que não soube de mais nada do que se passou pois não sei como fugi e mergulhei
na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e fui levado e me afastei
dali. De longe, os tiros silenciaram de vez, não vi mais o fogo da labareda da
serpente, e uma correnteza negra me abraçou, me envolveu, me levou.[iv]
Os dois personagens jamais ultrapassarão as barreiras
que separam o mundo conceitual do mundo amorfo (não-dito), e terão de findar
suas vidas, socialmente e miticamente, por intermédio do fogo. Mas, como
personagens mitificados, representantes da chave para um novo recontar
ficcional, poderão renascer ou não, sair das cinzas ou não, a cada leitura, a
cada leitor que obtiver o privilégio de interagir com o texto receptivo de
Rogel Samuel. Enquanto houver leitores reflexivos, a oferecer-lhes vida
ficcional, Genaro e Antônio partirão “para a estrada como para a morte”[v],
e, páginas adiante, “no meio da noite, (...) toda a floresta em chamas, na
claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça”[vi],
os dois terão de desaparecer (morrer) miticamente, e o personagem-narrador
continuará “vivo e não ferido”, para (depois da extinção dos adjuvantes)
modificar e amplificar o curso narrativo.
(...) o fogo sugere o
desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar
imediatamente ao
termo da vida, à outra vida. Neste caso, o devaneio é verdadeiramente
empolgante e dramático; amplifica o destino humano; liga o que é pequeno ao que é grande, a lareira ao vulcão, a vida
de uma acha à vida de um mundo. O ser fascinado escuta o apelo
do braseiro.
Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação.[vii]
Com o fogo tudo se
modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O
fenômeno inicial é não só o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda
a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O
fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos de
vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponta do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência.[viii]
“O fogo sugere o desejo de mudança”. A morte dos dois
personagens pelo fogo (arma-de-fogo, flechas incandescentes, fogo na floresta)
possibilita a alteração no rumo da primeira seqüência narrativa (sedimentada em
princípio pelo arcabouço histórico) para uma segunda etapa ficcional (“a outra
vida” gerenciada pela forma do narrar mítico). Com esta atitude, o proprietário
da arte de narrar orienta o primeiro narrador para uma segunda dimensão
ficcional (auxiliado pelo conhecimento do mito). Submetido à fervura ígnea de
seu cogito diferenciador, percebe-se impelido à uma significação calamitosa
(tio Genaro e Antônio consumidos pelo fogo) que anime o desenrolar do
narrado. O fogo mítico, circunstancial, promove uma espécie de liberdade
transitória, em busca das inovações do imaginário-em-aberto da consciência
singular, interativa, porque o elemento rigorosamente indispensável ao
escritor da pós-modernidade, propulsor de renovados juízos de descoberta,
é o ar. O Manixi, a Cidade de Manaus e todos os personagens rogelianos que por
ali transitam exalando dinamismo, se refortaleceram ao longo daqueles muitos
anos de pesquisa (revelados nas Entrevistas do escritor amazonense), e se animam
de um jeito incomum pela “força de elevação psíquica”[ix]
do escritor.
[vii] BACHELARD, Gaston. A
Psicanálise do Fogo. Tradução de Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral, 1989:
22.
[ix] BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. Tradução de Antônio de
Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 40.
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