segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mapinguari

Mapinguari




* Elson Martins


A figura horripilante do Mapinguari está no imaginário dos povos da floresta. Vira e mexe a gente ouve falar de alguém que em algum ponto remoto da Amazônia se deparou com o bicho. Sua fama chegou até o Japão interessando a Television Broadcasting Sistem (TBS) que mandou uma equipe filmá-lo nas matas do Acre. É claro que não conseguiu: 10 técnicos transportando 40 volumes com uma tonelada de material de filmagem passaram uma semana (em agosto de 1996) procurando o gigante lendário sem ver nem o rastro do animal.

O biólogo norte-americano David Oren, pesquisador do museu paraense Emílio Goëldi, em cujos estudos a TV japonesa se baseou, andou bem perto de dar uma explicação científica dos relatos de seringueiros e índios. Eu o entrevistei em 1996 em Macapá, no Amapá, e ele disse estar convencido de que o Mapinguari é uma preguiça terrestre que viveu há 10 mil anos em várias regiões do planeta e que ainda pode ser encontrada em lugares isolados e impenetráveis da Amazônia.

Já o poeta Amâncio Leite, de Cruzeiro do Sul, em 1930 publicou um poema mostrando o estrupício em que se meteu o seringueiro João Tomé por conta do estrambótico animal. A entrevista completa com o biólogo eu publiquei no jornal “Folha do Amapá”, e em 2003 fiz um resumo dela para a revista “outraspalavras”, editada pela Fundação Cultural Elias Mansour, do Acre. Para a revista eu juntei parte do poema Mapinguari, do ex-seringueiro e poeta acreano Amâncio Leite, que viveu no começo do século passado em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Esta é a versão que decidi incluir no livro:


“As pessoas ficam embriagadas”


Os depoimentos colhidos por David Oren, de seringueiros e índios que já viram ou pensam ter visto o Mapinguari, são quase idênticos na descrição do bicho: “Eles o descrevem como um animal que deixa rastros redondos, é cabeludo, fede muito e quem já o viu uma vez não quer ver de novo”, disse Oren acrescentando: “Muitas pessoas falaram para mim que deram de cara com o diabo. Quando ele fica de pé, cambaleando, torna-se assustador. Uma coisa é você andar no mato e, de repente, a Virgem Maria aparece para você. Outra é o diabo em carne e osso aparecer. As pessoas ficam completamente perturbadas”.

Segundo o pesquisador, uma explicação lendária para o Mapinguari é que ele seria um índio, um pajé que descobriu o segredo da imortalidade, mas o preço que pagou por isso foi se transformar num animal horrível e fedorento. Cerca de 100 pessoas disseram para Oren ter tido contato ou pelo menos ter ouvido o grito do Mapinguari. Outras 60 são testemunhas que viram o animal. Algumas afirmam tê-lo matado, mas não conseguiram chegar perto porque ficaram embriagadas, desnorteadas e intoxicadas com o fedor.


Figura do Mapinguari no Parque Chico Mendes, em Rio Branco, no Acre.


Um seringalista chegou a oferecer uma recompensa para quem matasse o bicho, e um seringueiro entrevistado por Oren afirma que o matou, mas não conseguiu chegar perto para tirar uma amostra de cabelos e unhas para levar para o dono do seringal. Ele tirou a camisa e a envolveu no pescoço, tapando o nariz, mesmo assim ficou embriagado. A sorte dele é que estava acompanhado de um amigo que havia corrido assim que o bicho apareceu. O amigo serviu de guia para abandonar o local depois.



Onde pode ser encontrado


David Oren afirma ter relatos de quase toda Amazônia, sempre com uma coisa em comum: o Mapinguari aparece nos lugares mais longínquos, aonde quase ninguém vai. As histórias são a de um seringueiro abrindo novo caminho (varadouro) mata adentro por uma área onde ninguém andou antes. “Em todas as tribos indígenas que eu conheço, os índios têm muito medo desse animal. Mesmo os Caiapós, que são mais brabos, têm um tipo de zoneamento dentro da reserva deles. Onde o animal aparece, eles não vão. É uma reserva para esse bicho, que consideram perigoso, e não querem encontrar”, disse o biólogo.

Existem evidências da presença do Mapinguari no Acre e no Amapá. Neste estado, que faz limites com o Estado do Pará e a Guiana Francesa, o animal poderia ser encontrado no alto Jarí. A lenda é recorrente entre os castanheiros do rio Iratapuru, afluente do Jarí, que conhecem um relato semelhante ao dos seringueiros do Acre. Três caçadores da região teriam sido contratados há algumas décadas para matar o estranho bicho que vivia assustando madeireiros e castanheiros. Eles prepararam um mutá (local de espera numa árvore) na mata, onde dormiram três noites. Dois caçadores desistiram e o terceiro viveu a terrível experiência na quarta noite. O animal aproximou-se com seu grito apavorante na escuridão da mata, até aparecer no foco da lanterna do caçador. Este disparou a arma num vulto cinzento, monstruoso, e não lembra de mais nada até o dia seguinte, quando acordou do desmaio. Viu sangue e mato quebrado no local e os mesmos rastros redondos. Tomado de pavor, procurou o caminho de volta para nunca mais andar por aquela região.


“Nossa ignorância é mais abrangente...”


David Oren está convencido de que o Mapinguari é uma preguiça terrestre: “Hoje em dia, explica, a gente só conhece as preguiças que vivem em árvores, que são de médio porte e pesam no máximo 5 quilos. Mas até aproximadamente 10 mil anos atrás tinham 8 espécies de preguiça, aqui na Amazônia, que andavam somente no chão. Uma dessas espécies era maior que um elefante”.

Segundo o biólogo, existem fósseis da preguiça gigante no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Na Universidade do Acre, o professor Alceu Ranzi reuniu outros fósseis, e na Universidade de Minas Gerais, o pesquisador Cartelli, com mais de 25 anos de experiência, possui acervo maior ainda. A preguiça terrestre é da família do Tamanduá-bandeira, que fica de dois pés para se defender. “Esse animal (a preguiça terrestre) quando fica de dois pés, cria uma relação entre a cabeça, os braços e as pernas que se assemelha a do ser humano”, argumenta Oren.


David Oren na selva amazônica: busca ao Mapinguari.


Mas o problema para a pesquisa, esclarece o biólogo, é que muitas pessoas que tiveram contato com o bicho imaginam ter visto o diabo e não querem falar. Tem também o fato de grande parte da população não acreditar nos relatos e as pessoas não querem ser ridicularizadas. E mais: de tão terrível, as pessoas não gostam de lembrar a experiência.


David Oren esclarece que a ciência trabalha com o mundo físico e com o que pode ser comprovado cientificamente, entretanto, ele se questiona se esse mundo material que pesquisa é o único mundo que existe: “Tem várias coisas que não podem ser explicadas pela minha ciência”, declarou.  “Nosso conhecimento sobre a Amazônia é uma coisa que fica muito clara para qualquer cientista que anda por aqui. Eu gosto de repetir que nossa ignorância é muito mais abrangente que nosso conhecimento. Estou tentando aumentar um pouco os nossos conhecimentos para a sociedade como um todo refletir sobre a nossa ignorância”, disse Oren.




 

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