Mapinguari
* Elson Martins
A figura
horripilante do Mapinguari está no imaginário dos povos da floresta. Vira e
mexe a gente ouve falar de alguém que em algum ponto remoto da Amazônia se
deparou com o bicho. Sua fama chegou até o Japão interessando a Television Broadcasting
Sistem (TBS) que mandou uma equipe filmá-lo nas matas do Acre. É claro que não
conseguiu: 10 técnicos transportando 40 volumes com uma tonelada de material de
filmagem passaram uma semana (em agosto de 1996) procurando o gigante lendário
sem ver nem o rastro do animal.
O biólogo
norte-americano David Oren, pesquisador do museu paraense Emílio Goëldi, em
cujos estudos a TV japonesa se baseou, andou bem perto de dar uma explicação
científica dos relatos de seringueiros e índios. Eu o entrevistei em 1996 em
Macapá, no Amapá, e ele disse estar convencido de que o Mapinguari é uma
preguiça terrestre que viveu há 10 mil anos em várias regiões do planeta e que
ainda pode ser encontrada em lugares isolados e impenetráveis da Amazônia.
Já o poeta
Amâncio Leite, de Cruzeiro do Sul, em 1930 publicou um poema mostrando o
estrupício em que se meteu o seringueiro João Tomé por conta do estrambótico
animal. A entrevista completa com o biólogo eu publiquei no jornal “Folha do
Amapá”, e em 2003 fiz um resumo dela para a revista “outraspalavras”, editada
pela Fundação Cultural Elias Mansour, do Acre. Para a revista eu juntei parte
do poema Mapinguari, do ex-seringueiro e poeta acreano Amâncio Leite, que viveu
no começo do século passado em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Esta é a
versão que decidi incluir no livro:
“As pessoas ficam embriagadas”
Os depoimentos
colhidos por David Oren, de seringueiros e índios que já viram ou pensam ter
visto o Mapinguari, são quase idênticos na descrição do bicho: “Eles o descrevem
como um animal que deixa rastros redondos, é cabeludo, fede muito e quem já o
viu uma vez não quer ver de novo”, disse Oren acrescentando: “Muitas pessoas
falaram para mim que deram de cara com o diabo. Quando ele fica de pé,
cambaleando, torna-se assustador. Uma coisa é você andar no mato e, de repente,
a Virgem Maria aparece para você. Outra é o diabo em carne e osso aparecer. As
pessoas ficam completamente perturbadas”.
Segundo o
pesquisador, uma explicação lendária para o Mapinguari é que ele seria um
índio, um pajé que descobriu o segredo da imortalidade, mas o preço que pagou
por isso foi se transformar num animal horrível e fedorento. Cerca de 100
pessoas disseram para Oren ter tido contato ou pelo menos ter ouvido o grito do
Mapinguari. Outras 60 são testemunhas que viram o animal. Algumas afirmam tê-lo
matado, mas não conseguiram chegar perto porque ficaram embriagadas,
desnorteadas e intoxicadas com o fedor.
Figura do Mapinguari no Parque Chico Mendes, em Rio Branco, no Acre. |
Um
seringalista chegou a oferecer uma recompensa para quem matasse o bicho, e um
seringueiro entrevistado por Oren afirma que o matou, mas não conseguiu chegar
perto para tirar uma amostra de cabelos e unhas para levar para o dono do
seringal. Ele tirou a camisa e a envolveu no pescoço, tapando o nariz, mesmo
assim ficou embriagado. A sorte dele é que estava acompanhado de um amigo que
havia corrido assim que o bicho apareceu. O amigo serviu de guia para abandonar
o local depois.
Onde pode ser encontrado
David Oren
afirma ter relatos de quase toda Amazônia, sempre com uma coisa em comum: o
Mapinguari aparece nos lugares mais longínquos, aonde quase ninguém vai. As
histórias são a de um seringueiro abrindo novo caminho (varadouro) mata adentro
por uma área onde ninguém andou antes. “Em todas as tribos indígenas que eu
conheço, os índios têm muito medo desse animal. Mesmo os Caiapós, que são mais
brabos, têm um tipo de zoneamento dentro da reserva deles. Onde o animal
aparece, eles não vão. É uma reserva para esse bicho, que consideram perigoso,
e não querem encontrar”, disse o biólogo.
Existem
evidências da presença do Mapinguari no Acre e no Amapá. Neste estado, que faz
limites com o Estado do Pará e a Guiana Francesa, o animal poderia ser
encontrado no alto Jarí. A lenda é recorrente entre os castanheiros do rio
Iratapuru, afluente do Jarí, que conhecem um relato semelhante ao dos
seringueiros do Acre. Três caçadores da região teriam sido contratados há
algumas décadas para matar o estranho bicho que vivia assustando madeireiros e
castanheiros. Eles prepararam um mutá (local de espera numa árvore) na mata,
onde dormiram três noites. Dois caçadores desistiram e o terceiro viveu a
terrível experiência na quarta noite. O animal aproximou-se com seu grito
apavorante na escuridão da mata, até aparecer no foco da lanterna do caçador.
Este disparou a arma num vulto cinzento, monstruoso, e não lembra de mais nada
até o dia seguinte, quando acordou do desmaio. Viu sangue e mato quebrado no
local e os mesmos rastros redondos. Tomado de pavor, procurou o caminho de
volta para nunca mais andar por aquela região.
“Nossa ignorância é mais abrangente...”
David Oren
está convencido de que o Mapinguari é uma preguiça terrestre: “Hoje em dia,
explica, a gente só conhece as preguiças que vivem em árvores, que são de médio
porte e pesam no máximo 5 quilos. Mas até aproximadamente 10 mil anos atrás
tinham 8 espécies de preguiça, aqui na Amazônia, que andavam somente no chão.
Uma dessas espécies era maior que um elefante”.
Segundo o
biólogo, existem fósseis da preguiça gigante no Museu Nacional do Rio de
Janeiro. Na Universidade do Acre, o professor Alceu Ranzi reuniu outros
fósseis, e na Universidade de Minas Gerais, o pesquisador Cartelli, com mais de
25 anos de experiência, possui acervo maior ainda. A preguiça terrestre é da
família do Tamanduá-bandeira, que fica de dois pés para se defender. “Esse
animal (a preguiça terrestre) quando fica de dois pés, cria uma relação entre a
cabeça, os braços e as pernas que se assemelha a do ser humano”, argumenta
Oren.
David Oren na selva amazônica: busca ao Mapinguari. |
Mas o problema
para a pesquisa, esclarece o biólogo, é que muitas pessoas que tiveram contato
com o bicho imaginam ter visto o diabo e não querem falar. Tem também o fato de
grande parte da população não acreditar nos relatos e as pessoas não querem ser
ridicularizadas. E mais: de tão terrível, as pessoas não gostam de lembrar a
experiência.
David Oren
esclarece que a ciência trabalha com o mundo físico e com o que pode ser
comprovado cientificamente, entretanto, ele se questiona se esse mundo material
que pesquisa é o único mundo que existe: “Tem várias coisas que não podem ser
explicadas pela minha ciência”, declarou.
“Nosso conhecimento sobre a Amazônia é uma coisa que fica muito clara
para qualquer cientista que anda por aqui. Eu gosto de repetir que nossa
ignorância é muito mais abrangente que nosso conhecimento. Estou tentando
aumentar um pouco os nossos conhecimentos para a sociedade como um todo
refletir sobre a nossa ignorância”, disse Oren.
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