sábado, 15 de fevereiro de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Nessa matéria nada é absoluto” (ou seja, pela via do dicionário português-brasileiro, “não tem limites”, “não sofre restrição de espécie alguma”, “não enuncia um sentido completo”, “não é narrativa autoritária”, “não é um narrar despótico, imperioso, soberano, incondicional, incontestável”, qualquer que seja a definição do termo “absoluto”), diz Rogel Samuel, reafirmando, por via ficcional, o que, reflexiva e teoricamente, procuro assegurar, pela diretriz do conhecimento fenomenológico, como narrativa pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração. “Nada é absoluto”, porque, para criar um texto narrativo, diferenciado das narrativas exemplares, lineares e absolutas, e para interagir com o arcabouço mítico-indígena da realidade sócio-mítica amazonense (que diligencia elevar a figura do índio de sexo masculino, forte, destemido, possuidor de “grosso falo” como símbolo de “dinâmica sexualidade”), o escritor, de origem manauara, obrigou-se criativamente e ficcionalmente a recuperar os traços do conhecimento coletivo e abrangente (formal e impositivo) de seu (do autor) anterior meio social citadino, por questões substanciais ainda relacionados com a história primitiva do homem brasileiro civilizado.
Se nada, ao longo desta fase da narrativa rogeliana, poderá ser interpretado como “absoluto”, começo eu, a intérprete teórico-reflexiva destas páginas não-absolutas, a refletir fenomenologicamente o fato de que a cena do rio, onde nadam as duas indiazinhas Numas, poderá ser interpretada, sublinearmente, partindo-se do princípio lendário de que os Numas eram/são seres mitológicos e aéreos (aparições voláteis), por conseguinte, passíveis de tomarem a forma conceitual que quiserem, mesmo que seja em matéria teórico-crítica não-absoluta. As divindades míticas, desde o princípio de suas modelações conceituais, lá pelos idos da pré-fase do conhecimento humano, apresentaram formas incomuns (humanas, animalescas, imaginárias, etc.), inclusive, formas andróginas (mítico/cristão). Então, ainda apoiando-me na afirmação de Rogel Samuel, penso que o olhar do narrador-personagem Ribamar de Sousa, naquele momento, estava ativado pela aparição mental (volátil) do mito das gregas amazonas guerreiras, belas, sensuais e andróginas, ou seja, possuidoras das características dos dois sexos (não obstante o ritual lésbico da cena ficcional rogeliana). Seria possível então um engano, quanto a incomum sexualidade das duas indiazinhas? São elas, diz Rogel Samuel, “duas índias Numas, inconfundivelmente Numas”.
Sim. São, inconfundivelmente, Numas e oriundas do mito das amazonas guerreiras, andróginas e sensuais. Por este aspecto, penso que o narrador-personagem Ribamar ter-se-ia enganado quanto ao sexo das duas indiazinhas, “vistas de longe”, assim como os exploradores antigos se enganaram, quando da aparição das/dos anteriores amazonas, as/os quais, segundo, outras fontes histórico-míticas, eram em verdade homens guerreiros ao invés de mulheres guerreiras. O equívoco histórico-mítico se propagou, no decorrer de nossa formação cultural, graças aos longos cabelos desses índios audazes e suas faces imberbes e joviais. Ainda por este prisma interpretativo, empenho-me em resguardar e defender aqui o propósito de observar algumas pistas que favorecem ao meu pensar diferenciado sobre a sexualidade das indiazinhas Numas, imposta sublinearmente pelo narrador rogeliano.
Como, ao longo do romance, “nada é absoluto”, a minha apreciação reflexiva poderá também não possuir um valor absoluto, uma vez que se sedimenta a partir de argumentações e questionamentos que poderão ser reputados depreciativamente por outros estudiosos-críticos de orientação explicitamente formalista. No entanto, desenvolvendo meu parecer crítico-reflexivo a começar das próprias afirmações ficcionais esclarecedoras ou sublineares de Rogel Samuel, submeto-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica.
Assim e por tal motivo, não sendo “nada absoluto” no plano da ficção rogeliana, possivelmente o narrador-personagem Ribamar de Sousa, alter ego do escritor ficcional amazonense Rogel Samuel, houvesse tido a intenção de apresentar a seus leitores uma questão, ainda hoje, repleta de preconceito, no Brasil e no mundo: o homossexualismo masculino, repudiado ostensivamente em nosso meio social. A verdade é que (generalizando, bem entendido!) a reprimida sociedade brasileira não se altera, preconceitualmente, contra o homossexualismo feminino conhecido por lesbianismo, mas, quando o relacionamento amoroso se revela entre dois homens, as íntimas opiniões pré-concebidas ficam patenteadas. Possivelmente, o primeiro narrador rogeliano, ainda submetido ao imperativo modelo sócio-familiar manauara, preferiu dar ênfase, para contemporizar sobre o assunto, ao ato lésbico das indiazinhas Numas, ao invés de expor (ou revelar) o homossexualismo masculino, nas guerreiras hostes da mítica e reverenciada nação Numa. Mesmo assim, reponho as informações, retiradas naturalmente do romance de Rogel Samuel, lembrando aos leitores desta obra ficcional, que o grande escritor Guimarães Rosa, escritor de renomada fama, aqui no Brasil e em outros países, obrigou-se também, a camuflar a questão homossexual entre Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, por nítidas imposições preconceituosas da sociedade dita intelectualizada da época, que, certamente, não teria reconhecido o valor do romance, se tal assunto controvertido fosse detectado visivelmente.
Repenso, por conseqüência do anteriormente refletido, e por induções lendário-esotéricas e/ou analítico-fenomenológicas, aquela reservada conotação ficcional da citação anterior: “Pássaros de bico largo e penas coloridas”. Não é o bico um referente sexual masculino, se for pensado pelo ponto de vista da psicocrítica literária? Não seriam, portanto, as indomáveis (aéreas, invisíveis) amazonas guerreiras a representação poético-ficcional dos índios amazonenses, conceituados, literariamente, como “pássaros de bico largo” (órgão sexual) e “penas coloridas” (vestimentas e adornos)?
Reavaliando, primeiramente, o nome amazonas, descobre-se que este origina-se do grego a-mazon (a-mazôn), cujo significado expressa a idéia de mulheres sem seios, míticas mulheres gregas, impávidas, masculinizadas, ignorantes quanto às politizadas leis da antiga Grécia. Reconsiderando, logo a seguir, o mito das audaciosas mulheres guerreiras da América do Sul (as quais, desde o início da colonização do Brasil, em seus três segmentos ─ portuguesa, espanhola e novamente portuguesa ─ foram detectadas, em diversos momentos temporais e em várias localidades da Amazônia brasileira, por viajantes-aventureiros, exploradores da fauna, da flora e dos metais preciosos da região), assinala-se a influência mítico-renascentista, via Portugal e Espanha, em relação à propagação do mito grego das mulheres guerreiras do norte do Brasil (influência agregada naturalmente ao arcabouço lendário das walkírias germânicas, também mulheres masculinizadas e aguerridas) em nossas plagas coloniais tupiniquins. Entretanto, por meio de outras informações, chega-se à reflexão de que as referidas mulheres eram possivelmente homens de longos cabelos e faces imberbes.

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