Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
“Nessa
matéria nada é absoluto” (ou seja, pela via do dicionário português-brasileiro,
“não tem limites”, “não sofre restrição de espécie alguma”, “não enuncia um
sentido completo”, “não é narrativa autoritária”, “não é um narrar despótico,
imperioso, soberano, incondicional, incontestável”, qualquer que seja a
definição do termo “absoluto”), diz Rogel Samuel, reafirmando, por via ficcional,
o que, reflexiva e teoricamente, procuro assegurar, pela diretriz do
conhecimento fenomenológico, como narrativa pós-moderna/pós-modernista de
Segunda Geração. “Nada é absoluto”, porque, para criar um texto narrativo,
diferenciado das narrativas exemplares, lineares e absolutas, e para interagir
com o arcabouço mítico-indígena da realidade sócio-mítica amazonense (que
diligencia elevar a figura do índio de sexo masculino, forte, destemido,
possuidor de “grosso falo” como símbolo de “dinâmica sexualidade”), o escritor,
de origem manauara, obrigou-se criativamente e ficcionalmente a recuperar os
traços do conhecimento coletivo e abrangente (formal e impositivo) de seu (do
autor) anterior meio social citadino, por questões substanciais ainda
relacionados com a história primitiva do homem brasileiro civilizado.
Se nada, ao
longo desta fase da narrativa rogeliana, poderá ser interpretado como
“absoluto”, começo eu, a intérprete teórico-reflexiva destas páginas
não-absolutas, a refletir fenomenologicamente o fato de que a cena do rio, onde
nadam as duas indiazinhas Numas, poderá ser interpretada, sublinearmente,
partindo-se do princípio lendário de que os Numas eram/são seres mitológicos e
aéreos (aparições voláteis), por conseguinte, passíveis de tomarem a forma
conceitual que quiserem, mesmo que seja em matéria teórico-crítica não-absoluta.
As divindades míticas, desde o princípio de suas modelações conceituais, lá
pelos idos da pré-fase do conhecimento humano, apresentaram formas incomuns
(humanas, animalescas, imaginárias, etc.), inclusive, formas andróginas
(mítico/cristão). Então, ainda apoiando-me na afirmação de Rogel Samuel, penso
que o olhar do narrador-personagem Ribamar de Sousa, naquele momento, estava
ativado pela aparição mental (volátil) do mito das gregas amazonas guerreiras,
belas, sensuais e andróginas, ou seja, possuidoras das características dos dois
sexos (não obstante o ritual lésbico da cena ficcional rogeliana). Seria
possível então um engano, quanto a incomum sexualidade das duas indiazinhas?
São elas, diz Rogel Samuel, “duas índias Numas, inconfundivelmente Numas”.
Sim. São,
inconfundivelmente, Numas e oriundas do mito das amazonas guerreiras,
andróginas e sensuais. Por este aspecto, penso que o narrador-personagem
Ribamar ter-se-ia enganado quanto ao sexo das duas indiazinhas, “vistas de
longe”, assim como os exploradores antigos se enganaram, quando da aparição
das/dos anteriores amazonas, as/os quais, segundo, outras fontes
histórico-míticas, eram em verdade homens guerreiros ao invés de mulheres
guerreiras. O equívoco histórico-mítico se propagou, no decorrer de nossa
formação cultural, graças aos longos cabelos desses índios audazes e suas faces
imberbes e joviais. Ainda por este prisma interpretativo, empenho-me em
resguardar e defender aqui o propósito de observar algumas pistas que favorecem
ao meu pensar diferenciado sobre a sexualidade das indiazinhas Numas, imposta
sublinearmente pelo narrador rogeliano.
Como, ao
longo do romance, “nada é absoluto”, a minha apreciação reflexiva poderá também
não possuir um valor absoluto, uma vez que se sedimenta a partir de
argumentações e questionamentos que poderão ser reputados depreciativamente por
outros estudiosos-críticos de orientação explicitamente formalista. No entanto,
desenvolvendo meu parecer crítico-reflexivo a começar das próprias afirmações
ficcionais esclarecedoras ou sublineares de Rogel Samuel, submeto-me ao risco
de uma desconexa contra-afirmação metodológica.
Assim e por
tal motivo, não sendo “nada absoluto” no plano da ficção rogeliana,
possivelmente o narrador-personagem Ribamar de Sousa, alter ego do escritor
ficcional amazonense Rogel Samuel, houvesse tido a intenção de apresentar a
seus leitores uma questão, ainda hoje, repleta de preconceito, no Brasil e no
mundo: o homossexualismo masculino, repudiado ostensivamente em nosso meio
social. A verdade é que (generalizando, bem entendido!) a reprimida sociedade
brasileira não se altera, preconceitualmente, contra o homossexualismo feminino
conhecido por lesbianismo, mas, quando o relacionamento amoroso se revela entre
dois homens, as íntimas opiniões pré-concebidas ficam patenteadas.
Possivelmente, o primeiro narrador rogeliano, ainda submetido ao imperativo
modelo sócio-familiar manauara, preferiu dar ênfase, para contemporizar sobre o
assunto, ao ato lésbico das indiazinhas Numas, ao invés de expor (ou revelar) o
homossexualismo masculino, nas guerreiras hostes da mítica e reverenciada nação
Numa. Mesmo assim, reponho as informações, retiradas naturalmente do romance de
Rogel Samuel, lembrando aos leitores desta obra ficcional, que o grande
escritor Guimarães Rosa, escritor de renomada fama, aqui no Brasil e em outros
países, obrigou-se também, a camuflar a questão homossexual entre Riobaldo e
Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, por nítidas imposições
preconceituosas da sociedade dita intelectualizada da época, que, certamente,
não teria reconhecido o valor do romance, se tal assunto controvertido fosse
detectado visivelmente.
Repenso, por
conseqüência do anteriormente refletido, e por induções lendário-esotéricas
e/ou analítico-fenomenológicas, aquela reservada conotação ficcional da citação
anterior: “Pássaros de bico largo e penas coloridas”. Não é o bico um
referente sexual masculino, se for pensado pelo ponto de vista da psicocrítica
literária? Não seriam, portanto, as indomáveis (aéreas, invisíveis) amazonas
guerreiras a representação poético-ficcional dos índios amazonenses,
conceituados, literariamente, como “pássaros de bico largo” (órgão sexual) e
“penas coloridas” (vestimentas e adornos)?
Reavaliando,
primeiramente, o nome amazonas, descobre-se que este origina-se do grego
a-mazon (a-mazôn), cujo significado expressa
a idéia de mulheres sem seios, míticas mulheres gregas, impávidas,
masculinizadas, ignorantes quanto às politizadas leis da antiga Grécia.
Reconsiderando, logo a seguir, o mito das audaciosas mulheres guerreiras da
América do Sul (as quais, desde o início da colonização do Brasil, em seus três
segmentos ─ portuguesa, espanhola e novamente portuguesa ─ foram detectadas, em
diversos momentos temporais e em várias localidades da Amazônia brasileira, por
viajantes-aventureiros, exploradores da fauna, da flora e dos metais preciosos
da região), assinala-se a influência mítico-renascentista, via Portugal e Espanha,
em relação à propagação do mito grego das mulheres guerreiras do norte do
Brasil (influência agregada naturalmente ao arcabouço lendário das walkírias
germânicas, também mulheres masculinizadas e aguerridas) em nossas plagas
coloniais tupiniquins. Entretanto, por meio de outras informações, chega-se à
reflexão de que as referidas mulheres eram possivelmente homens de longos
cabelos e faces imberbes.
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