sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
 
Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
 
Instigada pela (e intrigada com a) criatividade ficcional de Rogel Samuel (lembremo-nos do trecho: “Os Numas. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans lês parties centrales de l’Amerique du Sud. (...). Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas”) e pelo meu limitado conhecimento pessoal e teórico da realidade manauara (uma vez que ali me estabeleci, no decorrer do ano de 1996, como professora-substituta convidada de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literatura Amazonense, na Universidade Federal do Amazonas), procurei repensar fenomenologicamente o título do romance, buscando uma ligação do mesmo com a mítica Nação Numa, brilhantemente realçada nas certamente (e futuramente) imortais páginas rogelianas desta diferenciada narrativa ficcional pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração.
Nestes termos reflexivo-interpretativos, a partir daí, surge uma pergunta: Castelnau descreveu miticamente os Numas Indomáveis (possivelmente, uma das tribos ainda hoje isoladas, desconhecidas) ou descreveu realmente mulheres índias belicosas, comparadas com as lendárias amazonas guerreiras da Grécia Antiga? A verdade é que, ao longo da busca teórico-histórica restrita à época assinalada pelo escritor, não distingui nenhuma informação quanto à possibilidade de existência desta aludida tribo indígena e o encontro da mesma com os aventureiros citados, entre as muitas nações silvícolas da localidade apontada, inclusive, em relação às tribos originárias dos Andes, tribos estas oriundas da dominação espanhola (anos iniciais da Era Moderna) fronteiriça à região amazônica brasileira (Peru e Bolívia). No entanto, sobre o mito de um grupo de índias brasileiras de ânimo aguerrido, também conhecidas como amazonas guerreiras (inseridas no título do romance de Rogel Samuel), existem muitas informações mítico-históricas. Por conseguinte, depois das reflexões teórico-críticas, buscando solucionar o assunto, pude perceber uma ligação dos Numas invisíveis com o título do romance, uma vez que o escritor, por sua formação humanístico-literária, foi certamente um circunspecto estudioso da mitologia indígena de sua região de nascimento, incluso também o conhecimento de outros arcabouços míticos da humanidade. Por este aspecto, percebo o romance O Amante das Amazonas firmemente associado ao escritor-narrador Rogel Samuel, enquanto apreciador (amante intelectual) das heróicas narrativas indígenas, as quais povoaram o seu imaginário infanto-juvenil nos anos em que ali viveu, além de conhecedor inconteste das inúmeras formações mítico-religiosas tanto do Oriente quanto do Ocidente. Assim, pelo meu ponto de vista crítico-interpretativo, as “amazonas” do título seriam os próprios índios Numas (homens e mulheres indistintamente), criativamente desrealizados por seu apreciador ficcional. Entretanto, tal afirmação será reinterpretada, a seguir, quando, por tal causa, buscarei conhecimentos histórico / lendário esclarecedores a respeito do mito das gregas amazonas guerreiras, plantado aqui no Brasil, por exploradores estrangeiros, desde o início da colonização. Por esta via histórico-interpretativa, manifesta-se o provável conceito de que os míticos Numas foram formalizados ficcionalmente por Rogel Samuel a partir de anteriores relatos lendário-familiares, relatos esses intensificados pelas doutrinações totalitárias amazonenses, impositivas, e pelas intermitentes transmissões da literatura oral e escrita, pois, segundo a ficção de Rogel Samuel, “não ficavam visíveis, às claras, de frente, nítidos, senão de viés, difusamente entrevistos, pressentidos na obliqüidade do olhar”.[i]
 “Não ficavam visíveis, às claras”. Como posso detectar o sentido oculto dos invisíveis e indomáveis Numas desta narrativa? Que são os Numas rogelianos? Seriam eles, verdadeiramente e geograficamente, por via de acomodamento fonético-vocabular, os inconfundíveis Iauanauas (ou Yamináua ou Jaminaua ou Jamináwa) do Rio Gregório, detectados etnograficamente? Ou seriam o subgrupo isolado também chamados de Iauanauas, da cabeceira do Rio Acre, mas tribo diferente da população do Rio Gregório? Segundo dados governamentais, existe também um grupo indígena, peruano e boliviano, chamado Iauana, não reconhecido pelos governos de lá, mas incluído na relação de índios brasileiros do subconjunto pano setentrional, isolado, dos Rios Jandiatuba e Jataí. No âmbito das suposições teórico-interpretativas, os Numas rogelianos, mítico-ficcionais, poderiam provir dessas tribos isoladas, as quais viviam, e ainda vivem em menor número, em jurisdições estabelecidas na região interregno do Estado do Acre com o Departamento Ucayali, no Peru.
Entretanto, de acordo com a narrativa mítico-ficcional de Rogel Samuel, os Numas “não ficavam visíveis, às claras”. Seriam eles os míticos Numes de passados relatos simbólicos, aquelas aéreas divindades mitológicas que se elevavam no ar por meio de influição divinizadora? Seriam eles os antigos gênios alados, só perceptíveis por meio de espiritualíssima intuição? Ou foram germinados e multiplicados, simbolicamente e criativamente, por Rogel Samuel, a partir da deusa suméria Inanna, protetora da guerra e do prazer sexual, associada ao vento, enquanto divindade mítica? Se por vezes penso nas genealogias dos diversos arcabouços míticos-religiosos da humanidade, percebo sempre uma espécie de confluência, aproximando os relatos.
“Não ficavam visíveis”: repenso a informação reflexivamente, porque esta fase do romance de Rogel Samuel se desenvolverá por intermédio do patrocínio de reminiscências caprichosas de seu imaginário mítico-familiar, todas interligadas aos diversos narrares tradicionais da realidade mítico-indígena-e-social manauara. Tais narrativas poderosas, heroicamente/simbolicamente personificadas por criaturas aladas extraordinárias, foram, são e sempre serão representativas das potências da natureza e das incríveis incomuns qualidades do ser humano. Em outras palavras, os Numas rogelianos ascendem, ficcionalmente e miticamente, por intermédio do poderoso tronco familiar, primitivo e ímpar, do índio amazonense, oriundo das altas e inóspitas regiões andinas. O mencionado tronco, certamente, no meio dos infindáveis inter-relacionamentos sócio-culturais, foi realçado como fundamento sanguíneo intercambiável, digno de ser aceito como altamente proveitoso no âmbito da real miscigenação da sociedade manauara, altiva e historicamente preconceituosa, uma vez que o glorioso mito do ativo exercício do poder estará sempre e indissoluvelmente interligado às grandes alturas, pouco hospitaleiras.
Contudo, são os mítico-ficcionais Numas rogelianos que estão aqui, nas páginas deste meu artigo teórico-interpretativo, como assunto de comentários reflexivos. E se, como diz o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, “a vida é um caminho que de repente se bifurca”, observo a seguir outras informações estimáveis:
 
Mas a vida é um caminho que de repente se bifurca. E passa que, um dia, naquele dia ─ e eram certamente três horas da tarde, de tarde calma, quente e sobretudo verde entre árvores ─ estando eu sentado no tronco de espera que na Curva do Tucumã havia ─ bem defronte à curva plena do rio: o lugar era de pesca porque o igarapé, naquela altura, projetava-se numa rápida e solta volta quase em sacado, enseada de poço, piscoso e escuro, encobriria um homem alto logo sobre a margem, debaixo do cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas ─ quando, acintosamente, surpreendentes, de modo escandaloso e palerma, apareceram aquelas duas indiazinhas nuas.[ii]
 
São duas minúsculas meninas, índias, nuas, no outro lado do rio, entre as árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno estão, vejo-as entre as colunas das árvores, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia de aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, começo afirmando que as imagens dos seus lábios são, elas mesmas, somente belas. Pois o que faz a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento de realização, lá, no inesperado, e surpresa. Quê! E elas vieram de lá. Estão na minha frente. São duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. Desafio. Indução. Paixão e banho clássico. Estão lá, em movimento lento. Silenciosíssimas. Que uma é menina. Outra, adolescente. Perfumam o ar em que se movem. Balanço. As pernas longas. Descendo esguias, virgens, na arqueologia da margem, o delicado encanto, e cuidado. (...). O rio geme, corda retesada, tocado. O rio está cheio de óleos negros. Melpone num plinto de coluna de terraço. Naquele movimento de mínimas precipitações, qualquer erro é fulminante. (...) A vista cerrada, não as consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. (...). O vento me encobre, elas não se alertam de mim.[iii]
 


[i] Idem: 31.
[ii] Ibidem.
[iii] Idem: 22 - 23.

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