Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do
Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
Instigada
pela (e intrigada com a) criatividade ficcional de Rogel Samuel (lembremo-nos
do trecho: “Os Numas. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis
de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans lês parties
centrales de l’Amerique du Sud. (...). Também Travestin, em Le fleuve
Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas”) e pelo meu
limitado conhecimento pessoal e teórico da realidade manauara (uma vez que ali
me estabeleci, no decorrer do ano de 1996, como professora-substituta convidada
de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literatura Amazonense, na
Universidade Federal do Amazonas), procurei repensar fenomenologicamente o
título do romance, buscando uma ligação do mesmo com a mítica Nação Numa,
brilhantemente realçada nas certamente (e futuramente) imortais páginas
rogelianas desta diferenciada narrativa ficcional pós-moderna/pós-modernista de
Segunda Geração.
Nestes termos
reflexivo-interpretativos, a partir daí, surge uma pergunta: Castelnau
descreveu miticamente os Numas Indomáveis (possivelmente, uma das tribos ainda
hoje isoladas, desconhecidas) ou descreveu realmente mulheres índias belicosas,
comparadas com as lendárias amazonas guerreiras da Grécia Antiga? A verdade é
que, ao longo da busca teórico-histórica restrita à época assinalada pelo
escritor, não distingui nenhuma informação quanto à possibilidade de existência
desta aludida tribo indígena e o encontro da mesma com os aventureiros citados,
entre as muitas nações silvícolas da localidade apontada, inclusive, em relação
às tribos originárias dos Andes, tribos estas oriundas da dominação espanhola
(anos iniciais da Era Moderna) fronteiriça à região amazônica brasileira (Peru
e Bolívia). No entanto, sobre o mito de um grupo de índias brasileiras de ânimo
aguerrido, também conhecidas como amazonas guerreiras (inseridas no título do
romance de Rogel Samuel), existem muitas informações mítico-históricas. Por
conseguinte, depois das reflexões teórico-críticas, buscando solucionar o
assunto, pude perceber uma ligação dos Numas invisíveis com o título do
romance, uma vez que o escritor, por sua formação humanístico-literária, foi
certamente um circunspecto estudioso da mitologia indígena de sua região de
nascimento, incluso também o conhecimento de outros arcabouços míticos da
humanidade. Por este aspecto, percebo o romance O Amante das Amazonas
firmemente associado ao escritor-narrador Rogel Samuel, enquanto apreciador
(amante intelectual) das heróicas narrativas indígenas, as quais povoaram o seu
imaginário infanto-juvenil nos anos em que ali viveu, além de conhecedor
inconteste das inúmeras formações mítico-religiosas tanto do Oriente quanto do
Ocidente. Assim, pelo meu ponto de vista crítico-interpretativo, as “amazonas”
do título seriam os próprios índios Numas (homens e mulheres indistintamente),
criativamente desrealizados por seu apreciador ficcional. Entretanto,
tal afirmação será reinterpretada, a seguir, quando, por tal causa, buscarei
conhecimentos histórico / lendário esclarecedores a respeito do mito das gregas
amazonas guerreiras, plantado aqui no Brasil, por exploradores estrangeiros,
desde o início da colonização. Por esta via histórico-interpretativa,
manifesta-se o provável conceito de que os míticos Numas foram formalizados
ficcionalmente por Rogel Samuel a partir de anteriores relatos
lendário-familiares, relatos esses intensificados pelas doutrinações
totalitárias amazonenses, impositivas, e pelas intermitentes transmissões da
literatura oral e escrita, pois, segundo a ficção de Rogel Samuel, “não ficavam
visíveis, às claras, de frente, nítidos, senão de viés, difusamente entrevistos, só pressentidos na obliqüidade do olhar”.[i]
“Não ficavam visíveis, às claras”. Como posso
detectar o sentido oculto dos invisíveis e indomáveis Numas desta
narrativa? Que são os Numas rogelianos? Seriam eles, verdadeiramente e
geograficamente, por via de acomodamento fonético-vocabular, os inconfundíveis Iauanauas
(ou Yamináua ou Jaminaua ou Jamináwa) do Rio Gregório,
detectados etnograficamente? Ou seriam o subgrupo isolado também chamados de Iauanauas,
da cabeceira do Rio Acre, mas tribo diferente da população do Rio Gregório?
Segundo dados governamentais, existe também um grupo indígena, peruano e
boliviano, chamado Iauana, não reconhecido pelos governos de lá, mas incluído
na relação de índios brasileiros do subconjunto pano setentrional, isolado, dos
Rios Jandiatuba e Jataí. No âmbito das suposições teórico-interpretativas, os
Numas rogelianos, mítico-ficcionais, poderiam provir dessas tribos isoladas, as
quais viviam, e ainda vivem em menor número, em jurisdições estabelecidas na
região interregno do Estado do Acre com o Departamento Ucayali, no Peru.
Entretanto,
de acordo com a narrativa mítico-ficcional de Rogel Samuel, os Numas “não
ficavam visíveis, às claras”. Seriam eles os míticos Numes de passados
relatos simbólicos, aquelas aéreas divindades mitológicas que se elevavam no ar
por meio de influição divinizadora? Seriam eles os antigos gênios alados, só
perceptíveis por meio de espiritualíssima intuição? Ou foram germinados e
multiplicados, simbolicamente e criativamente, por Rogel Samuel, a partir da
deusa suméria Inanna, protetora da guerra e do prazer sexual, associada
ao vento, enquanto divindade mítica? Se por vezes penso nas genealogias dos
diversos arcabouços míticos-religiosos da humanidade, percebo sempre uma
espécie de confluência, aproximando os relatos.
“Não ficavam
visíveis”: repenso a informação reflexivamente, porque esta fase do romance de
Rogel Samuel se desenvolverá por intermédio do patrocínio de reminiscências
caprichosas de seu imaginário mítico-familiar, todas interligadas aos diversos
narrares tradicionais da realidade mítico-indígena-e-social manauara. Tais
narrativas poderosas, heroicamente/simbolicamente personificadas por criaturas
aladas extraordinárias, foram, são e sempre serão representativas das potências
da natureza e das incríveis incomuns qualidades do ser humano. Em outras
palavras, os Numas rogelianos ascendem, ficcionalmente e miticamente, por
intermédio do poderoso tronco familiar, primitivo e ímpar, do índio amazonense,
oriundo das altas e inóspitas regiões andinas. O mencionado tronco, certamente,
no meio dos infindáveis inter-relacionamentos sócio-culturais, foi realçado
como fundamento sanguíneo intercambiável, digno de ser aceito como altamente
proveitoso no âmbito da real miscigenação da sociedade manauara, altiva e
historicamente preconceituosa, uma vez que o glorioso mito do ativo exercício
do poder estará sempre e indissoluvelmente interligado às grandes alturas, pouco
hospitaleiras.
Contudo, são
os mítico-ficcionais Numas rogelianos que estão aqui, nas páginas deste meu
artigo teórico-interpretativo, como assunto de comentários reflexivos. E se,
como diz o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, “a vida é
um caminho que de repente se bifurca”, observo a seguir outras informações
estimáveis:
Mas a vida é um caminho que
de repente se bifurca. E passa que, um dia, naquele dia ─ e eram certamente
três horas da tarde, de tarde calma, quente e sobretudo verde entre árvores ─
estando eu sentado no tronco de espera que na Curva do Tucumã havia ─ bem
defronte à curva plena do rio: o lugar era de pesca porque o igarapé, naquela
altura, projetava-se numa rápida e solta volta quase em sacado, enseada de
poço, piscoso e escuro, encobriria um homem alto logo sobre a margem, debaixo
do cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas ─ quando,
acintosamente, surpreendentes, de modo escandaloso e palerma, apareceram
aquelas duas indiazinhas nuas.[ii]
São duas minúsculas meninas,
índias, nuas, no outro lado do rio, entre as árvores. Na outra margem do
Igarapé do Inferno estão, vejo-as entre as colunas das árvores, vêm da curva
descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia de
aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, começo afirmando
que as imagens dos seus lábios são, elas mesmas, somente belas. Pois o que faz
a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento de realização, lá, no
inesperado, e surpresa. Quê! E elas vieram de lá. Estão na minha frente. São
duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. Desafio. Indução.
Paixão e banho clássico. Estão lá, em movimento lento. Silenciosíssimas. Que
uma é menina. Outra, adolescente. Perfumam o ar em que se movem. Balanço. As
pernas longas. Descendo esguias, virgens, na arqueologia da margem, o delicado
encanto, e cuidado. (...). O rio geme, corda retesada, tocado. O rio está cheio
de óleos negros. Melpone num plinto de coluna de terraço. Naquele movimento de
mínimas precipitações, qualquer erro é fulminante. (...) A vista cerrada, não
as consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas,
estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. (...). O vento me encobre, elas não
se alertam de mim.[iii]
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