Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do
Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
(...) são diferentes
as manhãs de domingo, no Seringal: os coletores vêm, por princípio, por
necessidade, por nada, por mecanismo de corda para a Sede ─ que é o barracão,
saiba bem, não o Palácio, residência isolada da família Bataillon, de onde
ninguém se aproxima ─ vêm eles aviar as pélas, trocar a produção por víveres,
pois poucos vêem a materialidade do dinheiro, buscar um quarto de cachaça fiada
para o beber solitário. Sinistros, pesadamente armados, passam homens do
Coronel. (...) Duas prostitutas peruanas chegam, de canoa. O movimento dos
homens, dos barcos e das máquinas dão vida ao lugar, que transborda de agitação
domingueira, que esta é uma manhã de domingo, apesar de tudo.[i]
Entretanto
(não obstante a comparação histórica), estou a referir-me ao apogeu e declínio
do Manixi amazônico ficcional, um lugar isolado ante o “novo” direcionamento do
capitalismo mundial, naqueles anos iniciais do século XX. Graças a esse
“isolamento” familiar, posteriormente, o poder político de Pierre Bataillon (a
face ficcional dos antigos políticos manauaras) sofreu/sofre sérias derrotas, a
partir das novas regras financeiras que já se avizinhavam. As multinacionais
estrangeiras, construtoras da idéia de galopante progresso para a região,
propiciaram a derrota do governante do Manixi, assentado que estava em uma arte
de governar dominada pela estrutura da soberania
individualista do poder patriarcal familiar.
Estamos a
3.100 km de Manaus. Gabriel Gonçalves da Cunha comprara o rio Jordão e toda a
margem esquerda do Igarapé Bom Jardim, até o Igarapé São João e um furo do
Igarapé Cruzeiro do Sul. Isolava o Seringal Manixi. A cotação da borracha
amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção dos pneumáticos. O
Amazonas, único produtor de látex do mundo. Manaus
rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de
cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes,
arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta.
Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura
art-nouveau do Palácio de Ernest Scholtz ─ depois Palácio Rio Negro, sede do
Governo. (...) Pequena Manaus, grande Paris! Lojas, magazines, charutarias,
livrarias, alfaiatarias, ourivesarias, Bissoc. Pâtisserie.
(...) a bela
Villa Fany, luxuosíssima. O Cais dos Bares, a Biblioteca Provincial (que
incendiou fraudulentamente, para destruir os Arquivos Públicos, nos fundos).
(...) em 1919 ao Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha
naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil
contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma
época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus, com
cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia,
Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de
francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino Nery. Encampa-se,
fraudulenta e inultilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de
réis ─ o preço do Teatro Amazonas.[ii]
A história
do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas. Lembremo-nos de que foi o
poder político do Barão de Mauá (dominado pelas técnicas de governo à
moda do século XVIII, oriundas da Revolução Industrial) que propiciou o
progresso daquela região da Floresta Amazônica nos anos iniciais do século XX.
O século XVIII foi o momento da passagem do regime dominado pela
estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, e
a “novidade” política européia, daquele século, atingiu a forma de governo dos
séculos XIX e XX no Brasil. As populações indígenas e caboclas do Alto Juruá,
naqueles anos finais, já republicanos, do século XIX e início do século
seguinte, tornaram-se, se me adéquo às palavras de Foucault, o ponto em torno
do qual se [organizou] aquilo que nos textos do século XVI se chamava de
paciência do soberano, no sentido em que a população [seria] o objeto
que o governo [brasileiro] [deveria] levar em consideração em
suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo
racional e planejado, uma vez que, a partir de então, o povo iria começar a
exercer (?) a sua soberania por meio de seus representantes legais.
(Entretanto, sabemos que o chamado “voto de cabresto” vigorou por aqui, durante
vários anos, no decorrer do século XX). Então, a paciência do soberano
[do governo republicano brasileiro], à época, valeu-se do conhecimento técnico
do Barão de Mauá e de seus engenheiros, capacitados que estavam para levarem
adiante as propostas republicanas de um governo racional e planejado.
A segunda parte do romance de Rogel Samuel, quando, no capítulo oito, aparecem
“ratos” na narrativa, propiciando as indagações do leitor atento (Quem está
despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Por que o sumiço do filho de
Pierre Bataillon?), surge para denunciar, sublinearmente, as frestas negras
da ambição desmedida (familiar) que proporcionou o declínio do
imperialismo da borracha, a partir de seu representante ficcional, Pierre Bataillon.
Revelo que
isso se passou naqueles anos, depois. Quando presenciei o processo de
decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os
ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. (...) os
ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem
quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os
cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos,
como se fosse o Juízo Final.[iii]
A “economia
política”[iv]
do Manixi, constituída a partir do momento em que, entre os diversos elementos
da riqueza, apareceu um novo objeto, a população
mestiça, oriunda do acasalamento entre brancos, negros e índios, ao longo do
século XX, conheceu o impasse da gritante desigualdade social (ratos/população
versus gatos/famílias poderosas). A “arte de governo” do imperador
Pierre Bataillon, tradicional, não suportou as inovações políticas da
pós-modernidade em andamento. O que ocorreu por ali, será relatado na terceira
parte (ficcional e pós-moderna) do romance de Rogel Samuel, a partir do momento
em que o segundo narrador, trasladando o espaço narrativo para Manaus, passa a
falar do fim do apogeu capitalista no Amazonas. Entretanto, antes, buscarei
retomar o plano mítico do Manixi.
IX – Os Brancos Europeus, os Mestiços, os Caxinauás e os Numas: O
Sócio-Substancial Capitalista em confronto com o Mítico-Substancial Ficcional
Quando, em 1876, Pierre
Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia
Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do
poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a
qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia
Caxinauá se esprimia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e
conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros
perdidos, gente ficada da expedição de 1852. os Caxinauás tiveram contato com
Romão de Oliveira. Os Numas não. Reagiram violentamente desde 1847, quando o
sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans
lês parties centrales de l’Amerique du Sud, raro exemplar na biblioteca de
Pierre Bataillon. Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere
àquelas lutas que tiveram contra os Numas. Em 1854, João da Cunha Correa, no
cargo de Diretor dos Índios, subiu o Tarauacá, descobrindo o Gregório e o Mu,
sem contato. Pierre Bataillon chegou em 1876. É o que digo. Naqueles anos os
Numas não estavam. Passaram-se vários anos sem eles. Pierre estabeleceu o seu
domínio com facilidade, sobre as terras dos Caxinauás pacíficos[v].
Recupero o
parágrafo acima do capítulo TRÊS: NUMAS, para referendar, ou seja, assinar, por minha vez,
as anteriores premissas de Michel Foucault, sobre as suas teses referentes ao
capitalismo primitivo de modelo familiar, da qual se originaram
(realçadas no capítulo anterior destas minhas reflexões
teórico-interpretativas, sobre este romance em especial) todas as questões de
domínio político-familiar do capitalismo selvagem, determinador
de regras trabalhistas desumanas, referentes ao Manixi da primeira etapa
ficcional do romance O Amante das Amazonas de Rogel Samuel. A retomada
do parágrafo será necessária, uma vez que, para repensar o conflito entre o
sócio-substancial (os brancos, os mestiços e os Caxinauás domesticados)
e o mítico-substancial (a singularíssima Nação Numa: nação indígena idealizada
ficcionalmente e miticamente por Rogel Samuel), situado no entroncamento
reflexivo-imaginativo de uma região fronteiriça ao Peru e Bolívia (Amazonas e
Acre), inacessível nos anos finais do século XIX, faz-se necessário uma
retrospectiva mítico-reflexiva (para a dimensão mítico-substancial do Manixi) e
histórico-reflexiva (para a dimensão sócio-substancial do mesmo Manixi), por
novas vias teóricas, evidentemente, mas nem por isto distantes das induções
político-filosóficas de Michel Foucault, sobre o capitalismo em estado inicial
e de base familiar, anterior ao século XX.
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