sábado, 22 de fevereiro de 2014

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo

 
Se quisermos restituir ao seu nível primitivo todos os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais pela imagem da viagem pela água, compreenderemos melhor o significado do rio dos infernos e todas as lendas da fúnebre travessia. Costumes já racionalizados podem confiar os mortos ao túmulo ou à pira; o inconsciente marcado pela água sonhará, para além do túmulo, para além da pira, com uma partida sobre as ondas. Depois de ter atravessado a terra, depois de haver atravessado o fogo, a alma chegará à beira d’água. A imaginação profunda, a imaginação material quer que a água tenha sua parte na morte, ela tem necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte. Compreende-se assim, que, para esses devaneios infinitos, todas as almas, qualquer que seja o gênero dos funerais, devem subir na barca de Caronte.[i]
 
No capítulo anterior entrevi o poderoso personagem Pierre Bataillon avançando, na ficcional canoa carôntica, “na parte mais secreta da floresta, igarapé acima”, deixando “presentes, miçangas, facas e frutas” para os Numas, e os “Numas nunca tocavam naquilo”. “Onde há resistência, há poder”, afirmou o narrador de Rogel Samuel por via foucaultiana. O narrador-personagem, o Ribamar de Sousa, ainda está no comando do pós-moderno narrar mítico-ficcional. É ele, exclusivamente, que tem a permissão das substâncias conceituais passadistas para se penetrar, junto com o Caronte/Pierre, na floresta e, a partir dessa invasão, descobrir o refúgio dos Numas. Aqui vislumbro alguns avatares alegóricos. Por princípio, o segundo narrador utiliza-se do primeiro para desmistificar o antigo poder instalado na floresta real do Estado Federativo do Amazonas e, concomitantemente, interagir com a representação idealizada de uma floresta especial, mitificada, inquestionável, proveniente das antigas lendas indígenas, copiosas na ficção rogeliana. Simultaneamente, o personagem, que no momento centraliza o capítulo, no caso, o Pierre Bataillon, avança, “rio acima”, para oferecer a representação mental de um outro personagem (ou outros), muito bem dissimulado no teor narrativo. Este personagem camuflado poderá ser um representante mítico-histórico do barqueiro Caronte, aquele que levava as almas para o Hades grego (o rio infernal), mas, poderá ser também o plenipotenciário do próprio narrador oficial (do segundo narrador), enquanto personalidade indissoluvelmente participativa do lugar. Por este prisma bachelardiano diferenciado, e pensando exclusivamente pela segunda via, na verdade, quem está avançando de canoa “igarapé acima” é o “inconsciente” fervilhante (o bachelardiano “repouso ativado”) do segundo narrador, alter ego do escritor Rogel Samuel, “marcado” indelevelmente “pela água” lendária dos caudalosos rios amazonenses e pelos silenciosos, misteriosos, igarapés mitificados de sua cidade natal.
Para o entendimento de uma narrativa diferenciada, exige-se um pensamento interpretativo teoricamente não convencionado. Para a compreensão do Igarapé do Inferno rogeliano, há a exigência de se “restituir ao seu nível primitivo todos os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais pela imagem”, acoplados à “viagem pela água”, à moda mítica, transferindo energias múltiplas a cada dimensão espacial da história narrada. Assim, por um determinado ângulo interpretativo-reflexivo, a partir da História da região assinalada, nem sempre Oficial, há a exigência teórico-interpretativa de se descobrir a origem desse povo mitificado, ao longo do romance assinalado. Logo, surge a pergunta: como surgiu esta designação diferenciada, nesta obra ficcional, criativa, de Rogel Samuel, se não encontro referências históricas oficiais de tribos, com este nome genérico de “Numas”, mesmo de tribos já desaparecidas, nos anais da geografia e da história amazonense? Por tal motivo, busquei sondar a lanugem que recobre as diversas grafias de denominações de tribos brasileiras, do passado histórico e do presente, principalmente as que se localizaram/localizam por ali, nas imediações do Manixi narrado.
À vista disso, imponho-me declinar, por um ângulo extremo e interpretativo, a origem sócio-histórica e mítico-histórica dos Numas rogelianos, remexendo as nomenclaturas oficiais e não-oficiais que se referem aos nomes das diversas tribos indígenas do Brasil, incluindo algumas próximas às fronteiras do Peru e Bolívia, tribos estas historicamente misturadas com as tribos do lado brasileiro-amazonense, aquela superfície geográfica do Amazonas registrada por Rogel Samuel. Assim, por via não-oficial, (o que se constataria como informação perigosa, se este diálogo com a obra ficcional de Rogel Samuel fosse exclusivamente científico), repito, assim por via não-oficial, uma vez que me movimentei por um ano naquelas paragens amazonenses e escutei muitas histórias interessantes, os Numas rogelianos poderiam provir ficcionalmente de uma tribo afeita à guerra, possivelmente extinta desde o século XVIII, conhecida pelo nome de Náuas. Assim como os Numas/Numes rogelianos, os lendários Náuas habitavam a região onde atualmente se localiza o Estado do Acre, nas imediações da planície do Rio Juruá, rio este assinalado, entre muitos outros rios importantes do Amazonas, no romance de Rogel Samuel.
 
Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos.[ii]
 
Quando, em 1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia Caxinauá se esprimia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, (...).[iii]
 
Segundo informações locais, esses Náuas tornaram-se lendários, pois, aparentemente exterminados pelo branco colonizador, ao decorrer do tempo, os históricos aventureiros afirmaram, por via de oralidade, sem deixar registro escrito, que um grupo conseguira se refugiar em um lugar indeterminado da floresta e, dali, passara a exercitar o instinto da vingança contra os invasores de suas terras. De tal sorte, mesmo deixando de serem vistos historicamente, a fama guerreira dos Náuas continuou intacta, assombrando àqueles que se aventuravam nas imediações de sua antiga concentração geográfica. Os Náuas desaparecidos foram mitificados por intermédio das fábulas fantásticas da transmissão oral amazonense, representando alegoricamente a luta do homem primitivo e da natureza indômita contra os valores corrompidos do branco colonizador. Possivelmente, e informalmente, os índios Numas/Numes rogelianos ─ “imprevisíveis” ─, sejam eles mítico-ficcionais “parentes” desses lendários Náuas guerreiros, pois, temidos, são nomeados também, no romance, como agentes da morte.
 
As lembranças familiares me levam num aporte imaginativo. Minha mãe gostava de andar descalça. Desde que saí de Patos, no Natal de 97, não pensava tanto nela com tanta ternura. Há muito tempo estou aqui. Meu irmão e meu tio Genaro, mortos, se misturam às manchas inquietas do chão, à morte de todos, todos, do Laurie Costa à Maria queimada no ataque dos Numas, ao acampamento Caxinauá. A solidão do espaço vazio se disfarça. Sibilina sensação de que as portas não estão bem fechadas, de que os gonzos coniformes estão abertos, as partes de bode inscritas na coiceira sobre o batente duplo e os tridentes e cornijas riscando o quadrilongo das abas. Entro cautelosíssimo. Atravesso a área vazia na ponta dos pés. Na parede defronte descubro uma porta desconhecida para mim e como que disfarçada na decoração. Toco-a com o dedo, sentindo-a. Experimento a maçaneta oculta, a aba cede e soa como uma vaca desazeitada. Aparecem, espaçadas, cadeiras de vime escuro; soam morcegos de vento, estrídulos chiados nervosos estilhaçam o ar da noite, pequeninos. Estou no liminar do quarto. Alguém dorme no torpor da penumbra, semi-iluminado por uma lâmpada que se apaga. Vejo então, como um coice, a figura de tordo de metal caído, a variada, a dispersa figura de um homem que dorme, potestade, submerso, grande, pernas estendidas e abertas sobre a poltrona. É Paxiúba, ele, o corpo assustador, o visível, grande, bronze, estranho membro encurvado. Sim, ele dorme como um sonho do sangue de seus mortos.[iv]
 
A narrativa ficcional de Rogel Samuel, O Amante das Amazonas, é demonstrativa de “uma fúnebre travessia”, seja ela por caminhos sólidos, nas trilhas do pensamento da matéria terra ativada, ou em uma ficcional barca carontiana pós-moderna. Então, quem está no comando? Quem na verdade está no comando da travessia é o inconsciente fervilhante do dono do ato de narrar subjugado ao terceiro cogito de uma indiscutível consciência singular, transmutativa. Se o simbolismo da barca carontiana se sobressai, isto quer dizer que alguém irá morrer no decurso ficcional. Em verdade, muitos personagens irão morrer ao longo da narrativa. O próprio Seringal Manixi também perecerá, enquanto lugar de atividade extrativa da árvore da seringa, enquanto ocupação sócio-substancial. Se o Seringal permanecer vivo e atuante, não será pela via histórica do capitalismo selvagem de base familiar; permanecerá ativo graças ao poder ficcional deste escritor amazonense aqui realçado. A gloriosa cidade de Manaus do princípio do século XX, com a sua posterior e riquíssima Zona Franca, também perecerá, ao longo desta história incomum.


[i] BACHELARD, 1998: 78.
[ii] SAMUEL, Rogel, 2005: 11.
[iii] Idem: 24.
[iv] Idem: 76 - 77.

Nenhum comentário: