Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo
Se quisermos restituir ao
seu nível primitivo todos os valores inconscientes acumulados em torno dos
funerais pela imagem da viagem pela água, compreenderemos melhor o significado
do rio dos infernos e todas as lendas da fúnebre travessia. Costumes já
racionalizados podem confiar os mortos ao túmulo ou à pira; o inconsciente
marcado pela água sonhará, para além do túmulo, para além da pira, com uma
partida sobre as ondas. Depois de ter atravessado a terra, depois de haver
atravessado o fogo, a alma chegará à beira d’água. A imaginação profunda, a
imaginação material quer que a água tenha sua parte na morte, ela tem
necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte. Compreende-se
assim, que, para esses devaneios infinitos, todas as almas, qualquer que seja o
gênero dos funerais, devem subir na barca de Caronte.[i]
No capítulo
anterior entrevi o poderoso personagem Pierre Bataillon avançando, na ficcional
canoa carôntica, “na parte mais secreta da floresta, igarapé acima”,
deixando “presentes, miçangas, facas e frutas” para os Numas, e os “Numas nunca
tocavam naquilo”. “Onde há resistência, há poder”, afirmou o narrador de Rogel
Samuel por via foucaultiana. O narrador-personagem, o Ribamar de Sousa, ainda
está no comando do pós-moderno narrar mítico-ficcional. É ele, exclusivamente,
que tem a permissão das substâncias conceituais passadistas para se penetrar,
junto com o Caronte/Pierre, na floresta e, a partir dessa invasão, descobrir o
refúgio dos Numas. Aqui vislumbro alguns avatares alegóricos. Por princípio, o
segundo narrador utiliza-se do primeiro para desmistificar o antigo poder
instalado na floresta real do Estado Federativo do Amazonas e,
concomitantemente, interagir com a representação idealizada de uma floresta
especial, mitificada, inquestionável, proveniente das antigas lendas indígenas,
copiosas na ficção rogeliana. Simultaneamente, o personagem, que no momento
centraliza o capítulo, no caso, o Pierre Bataillon, avança, “rio acima”,
para oferecer a representação mental de um outro personagem (ou outros), muito
bem dissimulado no teor narrativo. Este personagem camuflado poderá
ser um representante mítico-histórico do barqueiro Caronte, aquele que levava
as almas para o Hades grego (o rio infernal), mas, poderá ser também o
plenipotenciário do próprio narrador oficial (do segundo narrador), enquanto
personalidade indissoluvelmente participativa do lugar. Por este prisma
bachelardiano diferenciado, e pensando exclusivamente pela segunda via, na
verdade, quem está avançando de canoa “igarapé acima” é o
“inconsciente” fervilhante (o bachelardiano “repouso ativado”) do
segundo narrador, alter ego do escritor Rogel Samuel, “marcado”
indelevelmente “pela água” lendária dos caudalosos rios amazonenses e pelos
silenciosos, misteriosos, igarapés mitificados de sua cidade natal.
Para o
entendimento de uma narrativa diferenciada, exige-se um pensamento
interpretativo teoricamente não convencionado. Para a compreensão do Igarapé do
Inferno rogeliano, há a exigência de se “restituir ao seu nível primitivo todos
os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais pela imagem”, acoplados
à “viagem pela água”, à moda mítica, transferindo energias múltiplas a cada
dimensão espacial da história narrada. Assim, por um determinado ângulo
interpretativo-reflexivo, a partir da História da região assinalada, nem sempre
Oficial, há a exigência teórico-interpretativa de se descobrir a origem desse
povo mitificado, ao longo do romance assinalado. Logo, surge a pergunta: como
surgiu esta designação diferenciada, nesta obra ficcional, criativa, de Rogel
Samuel, se não encontro referências históricas oficiais de tribos, com este
nome genérico de “Numas”, mesmo de tribos já desaparecidas, nos anais da
geografia e da história amazonense? Por tal motivo, busquei sondar a lanugem
que recobre as diversas grafias de denominações de tribos brasileiras, do passado
histórico e do presente, principalmente as que se localizaram/localizam por
ali, nas imediações do Manixi narrado.
À vista
disso, imponho-me declinar, por um ângulo extremo e interpretativo, a origem
sócio-histórica e mítico-histórica dos Numas rogelianos, remexendo as
nomenclaturas oficiais e não-oficiais que se referem aos nomes das diversas
tribos indígenas do Brasil, incluindo algumas próximas às fronteiras do Peru e
Bolívia, tribos estas historicamente misturadas com as tribos do lado
brasileiro-amazonense, aquela superfície geográfica do Amazonas registrada por
Rogel Samuel. Assim, por via não-oficial, (o que se constataria como informação
perigosa, se este diálogo com a obra ficcional de Rogel Samuel fosse
exclusivamente científico), repito, assim por via não-oficial, uma vez que me
movimentei por um ano naquelas paragens amazonenses e escutei muitas histórias
interessantes, os Numas rogelianos poderiam provir ficcionalmente de uma tribo
afeita à guerra, possivelmente extinta desde o século XVIII, conhecida pelo
nome de Náuas. Assim como os Numas/Numes rogelianos, os lendários
Náuas habitavam a região onde atualmente se localiza o Estado do Acre,
nas imediações da planície do Rio Juruá, rio este assinalado, entre muitos
outros rios importantes do Amazonas, no romance de Rogel Samuel.
Porém
embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas
por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava
na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões
mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim)
não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas
pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá
chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila
bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não
prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de
canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e
destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais
longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé
do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua
surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias
depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de
Patos.[ii]
Quando, em
1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma
pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e
mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam,
temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e
exterminar. A aldeia Caxinauá se esprimia entre os Numas imprevisíveis e a
parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar
seringueiros perdidos, (...).[iii]
Segundo
informações locais, esses Náuas tornaram-se lendários, pois,
aparentemente exterminados pelo branco colonizador, ao decorrer do tempo, os
históricos aventureiros afirmaram, por via de oralidade, sem deixar registro
escrito, que um grupo conseguira se refugiar em um lugar indeterminado da
floresta e, dali, passara a exercitar o instinto da vingança contra os
invasores de suas terras. De tal sorte, mesmo deixando de serem vistos
historicamente, a fama guerreira dos Náuas continuou intacta,
assombrando àqueles que se aventuravam nas imediações de sua antiga
concentração geográfica. Os Náuas desaparecidos foram mitificados por
intermédio das fábulas fantásticas da transmissão oral amazonense,
representando alegoricamente a luta do homem primitivo e da natureza indômita
contra os valores corrompidos do branco colonizador. Possivelmente, e
informalmente, os índios Numas/Numes rogelianos ─ “imprevisíveis” ─,
sejam eles mítico-ficcionais “parentes” desses lendários Náuas
guerreiros, pois, temidos, são nomeados também, no romance, como agentes da
morte.
As lembranças
familiares me levam num aporte imaginativo. Minha mãe gostava de andar descalça.
Desde que saí de Patos, no Natal de 97, não pensava tanto nela com tanta
ternura. Há muito tempo estou aqui. Meu irmão e meu tio Genaro, mortos, se
misturam às manchas inquietas do chão, à morte de todos, todos, do Laurie Costa
à Maria queimada no ataque dos Numas, ao acampamento Caxinauá. A solidão do
espaço vazio se disfarça. Sibilina sensação de que as portas não estão bem
fechadas, de que os gonzos coniformes estão abertos, as partes de bode
inscritas na coiceira sobre o batente duplo e os tridentes e cornijas riscando
o quadrilongo das abas. Entro cautelosíssimo. Atravesso a área vazia na ponta
dos pés. Na parede defronte descubro uma porta desconhecida para mim e como que
disfarçada na decoração. Toco-a com o dedo, sentindo-a. Experimento a maçaneta
oculta, a aba cede e soa como uma vaca desazeitada. Aparecem, espaçadas,
cadeiras de vime escuro; soam morcegos de vento, estrídulos chiados nervosos
estilhaçam o ar da noite, pequeninos. Estou no liminar do quarto. Alguém dorme
no torpor da penumbra, semi-iluminado por uma lâmpada que se apaga. Vejo então,
como um coice, a figura de tordo de metal caído, a variada, a dispersa figura
de um homem que dorme, potestade, submerso, grande, pernas estendidas e abertas
sobre a poltrona. É Paxiúba, ele, o corpo assustador, o visível, grande,
bronze, estranho membro encurvado. Sim, ele dorme como um sonho do sangue de
seus mortos.[iv]
A narrativa
ficcional de Rogel Samuel, O Amante das Amazonas, é demonstrativa de
“uma fúnebre travessia”, seja ela por caminhos sólidos, nas trilhas do
pensamento da matéria terra ativada, ou em uma ficcional barca carontiana
pós-moderna. Então, quem está no comando? Quem na verdade está no comando da travessia
é o inconsciente fervilhante do dono do ato de narrar subjugado ao
terceiro cogito de uma indiscutível consciência singular, transmutativa.
Se o simbolismo da barca carontiana se sobressai, isto quer dizer que alguém
irá morrer no decurso ficcional. Em verdade, muitos personagens irão morrer ao
longo da narrativa. O próprio Seringal Manixi também perecerá, enquanto lugar
de atividade extrativa da árvore da seringa, enquanto ocupação
sócio-substancial. Se o Seringal permanecer vivo e atuante, não será pela via
histórica do capitalismo selvagem de base familiar; permanecerá ativo graças
ao poder ficcional deste escritor amazonense aqui realçado. A gloriosa cidade
de Manaus do princípio do século XX, com a sua posterior e riquíssima Zona
Franca, também perecerá, ao longo desta história incomum.
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