Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do
Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
No decorrer
do século XX, o capitalismo primitivo, originário da Revolução Industrial do
século XVIII, conhecido por “capitalismo selvagem” (dezesseis horas de trabalho
por dia, ou mais), foi se modificando gradativamente, e, já nos anos finais do
referido século passado, conheceu uma nova forma de ser entendido em termos
mundiais. Antes, no Brasil especialmente, era a escravidão explícita ou
camuflada do trabalhador assalariado: horas de trabalho além do normal e dívida
permanente para com o empregador, uma vez que o “patrão” era também o dono dos
postos de venda de mercadorias necessárias à sobrevivência de seus empregados
(carne-seca, farinha de mandioca, açúcar, sal, etc.). Eis o que diz Rogel
Samuel, sobre a fortuna de seu personagem, Pierre Bataillon:
Aquela fortuna tinha uma
fonte, que era o trabalho escravo da inteira nação Caxinauá, que produzia a
alimentação que Pierre trocava pela produção de seringueiros que raramente
recebiam dinheiro.[i]
Posteriormente,
o “capitalismo primitivo” passou a ser reconhecido mundialmente como o
capitalismo da “selvagem” rivalidade entre poderosas multinacionais,
provenientes dos vários mercados internacionais e, principalmente, dos chamados
“países progressistas”. No Brasil, esta praga capitalista alastrou-se,
ao longo da segunda metade do século XX (incluindo também os vinte anos de
Ditadura Militar, de 1964 a 1984) com a conivência dos governantes afiliados
aos chamados Partidos de Direita, submissos às decisões das políticas
estrangeiras do Primeiro Mundo. Entretanto, neste início de século XXI, as
diretivas políticas brasileiras tendem para uma saudável forma mediadora entre
o capitalismo e o socialismo, ou seja, uma orientação governamental firmada em
conceitos socialistas, mas que não abomina as boas coisas públicas
herdadas do capitalismo já em vias de decadência. A grande verdade é que, neste
início de século e de milênio, os grandes troncos políticos familiares,
os quais direcionaram por anos e anos a política brasileira, já estão
vivenciando o momento do declínio. Os herdeiros políticos destes antigos
“coronéis” invencíveis já não têm a mesma força de seus antecessores. Neste
aspecto, repenso as palavras de Michel Foucault: Se a “população desbloquear a
arte de governar”, à moda do século XVIII, e “eliminar o modelo de família”,
A população aparecerá como o
objetivo final do governo. Pois qual pode ser o objetivo do governo? Não
certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza,
sua duração de vida, sua saúde, etc. E quais são os instrumentos que o governo
utilizará para alcançar estes fins, que em certo sentido são imanentes à
população? Campanhas, através das quais se age diretamente sobre a população, e
técnicas que vão agir indiretamente sobre ela e que permitirão aumentar, sem
que as pessoas se dêem conta, a taxa de natalidade ou dirigir para uma
determinada região ou para uma determinada atividade os fluxos da população,
etc. A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que
como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de
aspirações, mas também como objeto na mão do governo; como consciente, frente
ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer
que ela faça. O interesse individual ─ como consciência de cada indivíduo
constituinte da população ─ e o interesse geral ─ como interesse da população
quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a
compõem ─ constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da
população. Nascimento portanto de uma arte ou, em todo caso, de táticas e
técnicas absolutamente novas.[ii]
Penso que,
nos anos finais do século XX, no Brasil, os governantes de direita se viram
obrigados, historicamente, mesmo atrelados às formas governamentais do capitalismo
selvagem, a agirem (talvez inconscientemente ou, quem sabe, propensos à
chamada egolatria) submetidos às exigências da população (do povo),
ansiosa por desbloquear a arte de governar capitalista primitiva, respaldada
aqui pelos troncos políticos familiares. As novas exigências do capitalismo
selvagem ─ para sobreviver e progredir ─ propiciaram a transformação em nível
nacional, pois estavam necessitadas do combustível da troca monetária. Se o
poder monetário, um poço mais alargado, pode favorecer o ressurgimento de novos
apelidos, os quais originaram/originarão novíssimos troncos familiares, isto
prova uma retomada consciente do povo ante seus “interesses individuais” e
“gerais”. Ante ao nascimento de uma nova tática e técnica
administrativa governamental, as anteriores ondas capitalistas
tiveram/terão certamente de se curvar.
E se houver o
“nascimento de uma nova arte” de governar ou “de táticas e técnicas
absolutamente novas”, afirma Michel Foucault:
A população será o ponto em
torno do qual se organizará aquilo que nos textos do século XVI se chamava de
paciência do soberano, no sentido em que a população será o objeto que o
governo deverá levar em consideração em suas observações, em seu saber, para
conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de
um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber
sobre todos os processos referentes à população em sentido lato, daquilo que
chamamos precisamente de “economia”. A economia política pode se constituir a partir
do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo
objeto, a população. Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre
a população, o território, a riqueza, etc., se constituirá uma ciência, que se
chamará economia política, e ao mesmo tempo um tipo de intervenção
característico do governo: a intervenção no campo da economia e da população.
Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um
regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas
técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da
economia política[iii].
Pelo prisma
foucaultiano, e neste caso, reconsiderando o poder político no Brasil, na
segunda metade do século XIX, repenso o poder inicial, ficcional, do personagem
rogeliano Pierre Bataillon sobre a população indígena do Alto Juruá, região que
se localiza próxima à fronteira entre o Brasil e o Peru. Recuperando,
diacrônica e sincronicamente, o processo histórico daquela já passada parte
intransitável da região amazônica, próxima às fronteiras dos países que ficam
ao norte da América do Sul, em princípio, o poder governamental da localidade
estava (e sublinearmente sempre esteve) em poder das famílias estrangeiras que
ali residiam e prosperavam, adeptas que eram dos regimes governamentais familiares.
Nas páginas iniciais do romance, o poder capitalista do personagem Pierre
Bataillon seguiu as regras de uma economia entendida como gestão de família.
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