Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
O mito das
amazonas guerreiras da América do Sul ativou o imaginário europeu, desde o
início dos domínios coloniais, a partir do século XVI (domínios europeus estes
diversificados: Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Alemanha e Holanda), os
quais movimentaram as viagens exploratórias desses diversos reinos da Europa
Ocidental. Evidentemente, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil,
no início do século XIX, ansiosa por transformar o sub-reino em local de
importância e em um patamar de grandeza, a lenda se tornou pertinente (não
apenas esta, como também outras, incluindo a lenda do Eldorado, região
desconhecida de infinitas riquezas, região jamais visualizada, pelo menos pelo
ponto de vista da narrativa amplificada pelo imaginário coletivo da tradição
oral), instigando os aventureiros europeus, de outros reinos vizinhos a
Portugal, a saírem em busca da solução de tais mistérios. É quase certo que as
expedições exploratórias, como as que revelaram-nos os nomes de Castelnau
(1847) e Travestin (1854), não estavam aqui em busca da descoberta das
lendárias mulheres, guerreiras, fossem elas homens ou mulheres, ou muito menos,
a proposta era estudar a fauna e flora da região. Sob a missão de estudar a
cultura material da Colônia, escondia-se o desejo de apropriação das
localidades distanciadas do domínio português. Foi o que aconteceu com a região
da Amazônia Ocidental, próxima ao Peru e Bolívia. Poucos aventureiros
portugueses ali se instalaram, nos anos finais do século XIX e iniciais do
século XX. O descuido dos portugueses deveu-se à impossibilidade de locomoção e
dificuldade de comunicação com a Casa Real (e, posteriormente, com a Casa Imperial)
localizada no Rio de Janeiro. Os estudiosos da fauna e flora e aventureiros
europeus, que para ali se dirigiram, os mais audazes, não eram exatamente
portugueses. Historicamente, há a informação de que a Casa Imperial se
preocupou com a parte isolada da região amazonense, inclusive fundando o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Entretanto, a preocupação
portuguesa limitou-se a se fixar na parte oriental do Amazonas, próxima ao
Pará, onde as condições de navegação e comunicação com o Império eram mais
facilitadas. Nesse ínterim, os mitos amazonenses, como o mito das amazonas
guerreiras e do Eldorado, conhecidos desde a descoberta do Brasil, via domínio
espanhol, foram se solidificando gradativamente. Enquanto alguns poucos
portugueses procuraram se aventurar por ali, no decorrer da história da
Colônia, os exploradores de outras partes da Europa foram se aclimatando àquela
realidade indócil e, ao mesmo tempo, espalhando notícias sem confirmações sobre
intrigantes relatos míticos. O que, na verdade, esses estrangeiros ─ franceses,
alemães e de outros reinos europeus ─ pretendiam era descobrir as ricas jazidas
de ouro e pedras preciosas, assinaladas pelo mito do Eldorado e,
naturalmente, tomá-las para seus governantes reinóis. Esses viajantes-estudiosos
estavam aqui em missão nitidamente especulativa.
Não por
acaso, a região amazonense, assinalada por Rogel Samuel, ainda hoje,
geograficamente, reflete as influências culturais dessas nações européias. Não
por acaso, os referentes sexuais do homossexualismo (homens se relacionando
sexualmente com homens) estão dissimulados, no decorrer do romance rogeliano,
transformados em lesbianismo (fêmea/Numa relacionando-se com fêmea/Numa),
porque a sociedade brasileira, originariamente patriarcal, em sentido
diacrônico e sincrônico, inclusive a atual, não receberia a idéia de índios
homossexuais (masculinos, evidentemente) com bons olhos. Ainda hoje, em nossa
sociedade, historicamente miscigenada, há a necessidade de colocar miticamente
as tribos indígenas em um patamar viril, valoroso, heroicizado, ainda que
poucos grupos isolados tenham sobrevivido ao nosso próprio ímpeto histórico de
exterminá-los (ou seja, mesmo com a complacente e alienada adesão do
miscigenado branco brasileiro neste consentido extermínio histórico).
Entretanto,
há pistas inconfundíveis da troca de papéis homossexuais no romance de Rogel
Samuel, assim como há pistas reveladoras da “quase certeza homossexual” de
Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
A diferença é que a “quase certeza” teórico-crítica do amor homossexual entre
Riobaldo e Reinaldo/Diadorim, transmutado, no final, em Maria Deodorina da Fé
Bitencourt Marins (personagem modificado), por exigências sócio-culturais
(meados do século XX) substancialmente intransponíveis e exemplares, ao longo
da ficção roseana, repito, “a quase certeza” ficou interditada. Aqui, não.
Nesta narrativa distinta, diferenciada, de Rogel Samuel, “nada é/[será]
absoluto”.
Agora ─ e que sorriso se
desenha nos seus olhos ... ─ está tocando a maior a ponta do rio, na delicadeza
do pé. Experimenta a água, e goza. Eletrizada. Arranca do corpo a substância, e
a transmite à vida da superfície. O rio geme, corda retesada, tocado. O rio
está cheio de óleos negros. Melpone num plinto de coluna de terraço. (...). Ato
terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido.
(...). Excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue.[i]
Pois se nada
no romance rogeliano poderá constar-se como “absoluto”, quem “arranca do corpo
a substância e a transmite à vida da superfície” (do rio) não é absolutamente
uma fêmea Numa, é um macho Numa. Se fosse uma fêmea, não arrancaria a
substância sexual do próprio corpo, projetando-a em uma superfície. A substância
sexual, advinda do orgasmo feminino, produz-se em espécie de interna umidade
viscosa, e assim permanece. Percebo esta cena não-absoluta como uma questão a
ser exaustivamente repensada. O verdadeiro narrador rogeliano (o dono do ato de
narrar) colocou o narrador-personagem Ribamar de Sousa em uma encruzilhada
entrópica pós-moderna/pós-modernista. E graças a esta entropia narrativa, e aos
enclaves do texto ficcional (espaços em branco, os quais não deverão ser
desconsiderados futuramente, em outras edições do romance), os leitores poderão
repensar o grave estigma do preconceito, em nosso atual momento histórico, seja
ele de que natureza for.
Entretanto,
continuo submetendo-me aos riscos teórico-reflexivos. Reflito a cena: “Ato
terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido.
(...) excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue”. Busco
os referentes estruturalistas/semiológicos basilares, propiciadores de meu
repensar fenomenológico: “Excreção brusca”: função fisiológica que expulsa (no
caso, bruscamente) para o exterior alguma matéria excrementícia, como, por
exemplo, o sêmen. “Humor”: qualquer líquido que atue no corpo dos vertebrados,
como, por exemplo, o sêmen. Estes, por acaso, não seriam índices de uma sexualidade
masculina? O líquido viscoso sexual feminino é interiorizado e não se revela em
“excreções bruscas”.
A vista cerrada, não as
consigo ver. Nuvem branca primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas,
estreitas. Elas não me vêem. Não me sabem. Só desaparecem. Uma na outra. Se
acariciam. Se tocam. Se introduzem no ar. O vento me encobre, elas não se
alertam de mim.
Não sentem meu cheiro. Mas
as vejo. Pois fui o primeiro a ver uma fêmea Numa.[ii]
Como já disse
o sermonista barroco português-brasileiro Padre Antônio Vieira, as palavras
têm mistérios. “Partes sólidas, estreitas”. As indiazinhas Numas rogelianas
não possuem as partes exuberantes das vitalizadas e jovens mulheres índias. As
índias joviais (pelo menos as que interagem atualmente com miscigenada sociedade
manauara, como trabalhadoras domésticas ou não) possuem formas arredondadas,
sensuais, femininas. As indiazinhas Numas rogelianas, assim como as lendárias
amazonas guerreiras da antiguidade greco-romana, são masculinizadas. As
indiazinhas do texto ficcional de Rogel Samuel “desaparecem uma na outra”.
Penso que, se o ato fosse realmente lésbico (homossexualismo feminino), as
indiazinhas Numas não desapareceriam uma na outra, pelo menos, por meio dos
órgãos sexuais considerados tradicionalmente como normais. Em se tratando de
relacionamento sexual entre duas mulheres, não há como uma se introduzir na
outra, no ar. De sorte que, por interferência do alargadíssimo
imaginário-em-aberto de quem realmente narra, o vento mítico (associado
à água mítica, transformadora) encobre o narrador Ribamar de Sousa e faz “o
morno rio [sexual-imaginário] [ressurgir], como látex do sangue aquecido”,
sacralizando o ato sexual-amoroso (diferenciado) das duas divindades númicas.
“O morno rio
ressurge, como látex do sangue aquecido”. “Rio”, “látex” e “sangue”. Recorro a
Bachelard:
Sobre o
“liquido valorizado”, na obra literária de Edgar Alan Poe, Gordon Pym,
diz Gaston Bachelard:
Explica-se,
pois, que, para um psiquismo tão acentuado, tudo o que, na natureza, corre
pesadamente, dolorosamente, misteriosamente seja como um sangue maldito, como
um sangue que transporta a morte. Quando um líquido se valoriza, aparenta-se a
um líquido orgânico. Há, portanto, uma poética do sangue. É uma poética do
drama e da dor, pois o sangue nunca é feliz.[iii]
Nenhum comentário:
Postar um comentário