Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Esses são os
Numas/Numes rogelianos que se confrontarão, intermitentes, aéreos,
com os Caxinauás, aquela tribo infausta que foi domesticada ficcionalmente por
Pierre Bataillon, nas páginas de O Amante das Amazonas, e,
historicamente, pelo branco europeu aventureiro, e que, ainda hoje (os que
sobraram) poderão ser visitados em suas indígenas reservas comunitárias. Assim,
do outro lado da competição entre os planos mítico-substancial e
sócio-substancial, nesta narrativa ficcional de Rogel Samuel, estão os índios
caxinauás, os quais foram realmente pacificados em meados do século XIX por
aventureiros e exploradores europeus. Os Caxinauás do sub-grupo Pano,
atualmente localizados próximos ao Igarapé São José, ainda hoje são uma
realidade, mesmo que pequena, na geografia do Estado do Amazonas.
Aquela era uma das inúmeras
aldeias Caxinauás da Amazônia. Pierre impôs a paz, a ordem. Destruiu a cultura
Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem
reclamos, quase alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás
se transformaram em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do
Coronel. E a pequena aldeia, empestada de tifo, malária, sarampo e sífilis
quase desapareceu: uma epidemia de gripe, em 91, dizimou um terço da população.
Os Caxinauás se reduziram a 84 viventes agricultores, servos da gleba do
Coronel.
Dez anos depois, voltando os
Numas das montanhas peruanas, o quadro mudou molecularmente.
Com os Numas não.[i]
Os Numas,
segundo Rogel Samuel, “dez anos” depois, voltaram “das montanhas peruanas”,
mudando “molecularmente” o cenário do Seringal Manixi. “Com os Numas não”.
Pierre Bataillon e seu exército de Caxinauás amansados não puderam
domesticá-los. Estes jamais se escravizaram, ou se escravizariam, ou se
transformariam em “objetos do Seringal”, assim como acontecera com os próprios
Caxinauás, ao longo da narrativa rogeliana e ao longo da história do Amazonas.
Os Numas, a
partir daqui, já não se revelarão assim tão mitificados. “Foram dez anos de
pesquisa”, diz Rogel Samuel. Ficaram imobilizados dez anos no arcabouço mítico
rogeliano, no entanto, vivos e oportunos. Não que o lendário arcabouço mítico
númico tenha desaparecido para sempre das linhas ficcionais rogelianas, apenas
ressurgiu, dez anos depois, transformado, a transmutar os Numas em “belos”
rapazes, com “os olhos amendoados e escuros” e os “grossos sexos expostos” em
seus “corpos de criança graúda”. Mas, ao longo do narrar rogeliano
pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração [os Numas/Numes],
continuavam/continuaram/continuam/(continuarão?), “sem revolta”, “puros
fantasmas”, pois “encantavam-se”/encantam-se em lendas inimagináveis, multiplicando-se,
ainda “sem revolta”, graças à “floresta pré-histórica” (o mito de ontem, de
hoje e de sempre) que “os neutralizava” e ainda os neutraliza. “Floresta de
ouro, de leite”, de temporário e aéreo contentamento mito-poético. “Oh,
ruturas!” Oh, violações! Oh, infrações pós-modernas/pós-modernistas de Segunda
Geração modificando o ato de narrar do diferenciado narrador do espectante e
entrópico momento pós-moderno. E como há ainda hoje poderosos
“seringalistas”/analistas tentando “caçá-los a tiros” com velhas espingardas,
resguardados por amansadas tribos e anosas críticas já em desuso. As lendárias
e intrépidas amazonas guerreiras, agora definitivamente pós-modernas,
deliberaram, em um certo momento narrativo-intuitivo, ostentar suas verdadeiras
formas masculinizadas.
Alguns meses sumiam,
desapareciam, pulverizados, sem unidades individuais, se acalmavam, tivessem
ido embora para sempre. Ou só vento, integrados nas folhas das árvores. Mas
logo uma seta rápida entrelaça no ar a sua curva a dizer que nunca se foram,
que sempre lá estiveram, belos, os olhos amendoados e escuros, grossos sexos
expostos, corpos de criança graúda... mas puros fantasmas, encantavam-se, a
floresta pré-histórica os neutralizava, floresta de ouro, de leite.[ii]
“Tivessem [os
Numas/Numes] ido embora para sempre”! “Ou [fossem] só vento integrado
nas árvores”! Se assim fosse, o regulamento que impõe esquecer os Numas/Numes
seria o triunfo das imposições do mercado ficcional ardiloso.
Seria mais compensador, pelo ponto de vista da ficção linear, se os Numas
fossem apenas personagens de uma narrativa singela, cumprimentada por todos os
leitores massificados, personagens-referentes aos tempos heróicos da humanidade
guerreira, ou mesmo respeitantes a heróis incríveis, utópicos, irreais? Mas,
não é/será exatamente assim que a narrativa rogeliana prosseguirá. Eles
continuam/continuarão a surgir, ao longo desta ficção pluri-dimensional,
“pulverizados, sem unidades individuais”, reprovados, simulacradora e
sublinearmente pelo próprio narrador-personagem Ribamar de Sousa, por enquanto,
ainda propenso à representação exteriorizada do narrar histórico, ainda meio
que reverente aos preconceituosos dogmas de sua realidade sócio-substancial.
Não. Assim não terei, como teoricamente me impulsiono, uma resposta
pós-moderna/pós-modernista, esclarecedora e satisfatória, aos meus argumentos
crítico-reflexivos. Eles não foram embora, e retornaram, intermitentes e
aéreos, mas, por enquanto, “puros fantasmas”, aguçando a minha reflexão
interrogativa, dissimuladamente travestida em crítica literária. Eles
retornaram e invadiram a “casa inesquecível”, primordial, do escritor
amazonense Rogel Samuel. E esta “casa inesquecível” ─ a Floresta Amazônica ─
está muito bem sedimentada nas lembranças e nas recordações deste
anti-convencional escritor.
“Oh, ruturas”
rogelianas! Como posso deixar de reverenciar
fenomenologicamente/reflexivamente/criticamente a entrópica realidade ficcional
de algumas excepcionais narrativas desta minha realidade
sócio-histórico-cultural, substancial, e pós-moderna/pós-modernista de Segunda
Geração? Como posso deixar de honrar e respeitar esta incomum narrativa de
Rogel Samuel, se constato aqui o desprendimento de seu narrador, a revelar-me
os mais recônditos cômodos de sua “casa inesquecível”? Como posso deixar de
acusar e demonstrar o valor imensurável desta obra ficcional, que será,
certamente, muito bem avaliada pelos analistas e/ou intérpretes literários do
futuro?
Poderíamos
realmente descrever um passado sem imagens de profundidade? E jamais teremos
uma imagem da profundidade plena se não tivermos meditado à
margem de uma água profunda? O passado de nossa alma é uma água profunda.[iii]
A crítica
literária fenomenológica e interativa, interdisciplinar, como a desejou
Bachelard, destravou os “impulsos divergentes” atuais, suplantando notavelmente
a anterior crítica de base cientificista, propiciando-me a participação nas
“sublimações variadas” e levando-me a perceber “as imagens distantes” que deram
“impulso à imaginação” multifacetada e aberta de Rogel Samuel,
nesta sua obra-prima, inegavelmente original. Se os narradores do passado se
submeteram às trilhas ficcionais já abonadas pelas normas lingüísticas afins,
o(s) narrador(es) rogeliano(s) buscou/(buscaram) os caminhos não-conhecidos da
intrincada Floresta Amazônica. “Oh, ruturas” rogelianas! Oh, infrações nietzschianas,
bachelardianas, deleuzianas e seguintes! Oh, necessárias
infrações para a eliminação definitiva, neste início de Terceiro Milênio
inovador, do narrador ficcional tradicional! Oh, necessárias transgressões para
o estabelecimento de um próximo narrador diferenciado, trazido pela correnteza
das águas do pensamento puro, tal qual aconteceu com o rogeliano “Moisés do
Egito”, o Ribamar de Sousa, alter ego ficcional do verdadeiro narrador
pós-moderno.
E, por
intermédio desta interação reflexiva, terminarei este capítulo a repensar as
informações ficcionais de Rogel Samuel, agregadas conscientemente aos notáveis
pensadores da entrópica fase de transição entre a modernidade e a
pós-modernidade.
Bataillon avançara na parte
mais secreta da floresta, igarapé acima. Agora costeava os limites imprecisos
da morte. Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma
reciprocidade tática de respeito e de raivas.[iv]
Pierre deixava presentes,
miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira. Os Numas nunca tocavam
naquilo. Entre o Seringal e os Numas não havia canal. O Seringal, à espera. Os
Numas, na observação, proscrevendo limites que quebravam.[v]
Pierre evitava a guerra,
buscava a solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seu
princípio único, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte.[vi]
Pierre
Bataillon avança “na parte mais secreta da floresta, igarapé acima”.
Pierre Bataillon está penetrando a região dos Numas, evidentemente, de barco
(mesmo que seja um barco imaginário), “costeando os limites imprecisos da
morte”. Esta imagem revelará, no meu próximo capítulo sobre a ficção de Rogel
Samuel, assessorada pelo pensamento bachelardiano, que uma nova modificação
narrativa se fará necessária. Pierre Bataillon, no momento, se transmuta em
Caronte, apresentando-se como barqueiro-guardião do mistério númico.
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