sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico


Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico


Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

 

 

(Foram dez anos de pesquisa e reformulações, diz Rogel Samuel). Neste ínterim, “naquela enseada de poço, piscoso e escuro, sob o cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas”, o criativo escritor de O Amante das Amazonas viu-se a coletar e a destruir paradigmas. Sim. Assim como o seu narrador Ribamar de Sousa, ele, apenas o Rogel Samuel, escritor de origem manauara, não tinha conseguido, “na loucura das buscas anteriores, a plenitude daquilo que nele era só um desejo impulsionado, obscuro e sem nome”, ou seja, desmistificar e esclarecer as fundamentações substanciais sócio-familiares replenas de hipócritas motivações de como se apresentar ficcionalmente ao mundo. Anteriormente e historicamente, o padrão institucionalizado ditou as normas da escrita ficcional sobre “coisa” de difícil explicação. Naquele momento criativo, o escritor Rogel Samuel estava a debater-se com a idéia da formalização narrativa da mítica realidade Numa/Nume. E fora/(é ainda) uma formalização que não se repetiu/se repetirá igual, seja em espécie ou gênero literário. Os Numas (no caso, o nome e o ato de se nomear ficcionalmente uma nação indígena brasileira) serão para sempre e indiscutivelmente uma criação ficcional de Rogel Samuel, pois, graças à proposta ficcional singularíssima deste escritor, continuarão “arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes”, continuarão “empurrados por perigoso inverno”, e “permaneceram perdidos e livres, animais persistentes”, [a se imporem] como resistência. Não e não”. [Reagirão] ao pacto, ao toque, ao contato”, pois, como diria Michel Foucault, pós-modernamente recuperado nas páginas rogelianas, “onde há resistência, há poder”[i].

 

As grandes obras trazem sempre um duplo signo: a psicologia encontra nelas um lar secreto, a crítica literária um verbo original.  A língua de um grande poeta (...) é sem dúvida rica, mas tem uma hierarquia. Sob suas mil formas, a imaginação oculta uma substância privilegiada, uma substância ativa que determina a unidade e a hierarquia da expressão. Não nos será difícil provar que (...) essa matéria privilegiada é a água ou, mais exatamente, uma água especial, uma água pesada, mais profunda, mais morta, mais sonolenta que todas as águas dormentes, que todas as águas paradas, que todas as águas profundas que se encontram na natureza. A água, na imaginação (...), é um superlativo, uma espécie de substância de substância, uma substância-mãe.[ii]

 

Para explicitar o poder dos Numas/Numes enquanto tribo não-nomeada ─ geográfica e literariamente ─, nesta narrativa ficcional de múltiplos sentidos, será lícito interagir com o texto de Rogel Samuel, paralelamente às obras filosóficas de Gaston Bachelard, Michel Foucault e outros pensadores da pós-modernidade. Portanto, por ora, dialogando com alguns parágrafos bachelardianos, nos quais o filósofo analisa/interpreta as obras de Edgard Alan Poe e Paul Claudel, por minha parte, posso assegurar que a substância privilegiada, em O Amante das Amazonas, como não poderia deixar de ser, é igualmente a água. A água, na imaginação rogeliana também se superlativiza, porque, assim como nos escritos de Poe e Claudel, o que se encontra oculto nela é o lar secreto, aquático, do escritor de origem amazonense. Se para Bachelard a língua de um grande poeta [de um grande ficcionista] tem uma hierarquia, é justamente graças a essa hierarquia sui generis que os Numas rogelianos apresentam uma força excepcional. Os Numas são Numes (míticos seres alados) e provêem da “incerteza” e “não-saber” históricos, “herméticos, multiplicados e fortes”. Afirmou/afirma Rogel Samuel: “Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si”, “na multiplicidade de seus pontos de força”, “no imprevisível espaço”, em outras palavras, não se revelaram socialmente e historicamente.

 

 

Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser, no imprevisível espaço.[iii]

 

Estão, a princípio, em toda parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado. Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu.[iv]

 

“Estão, a princípio, em toda parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação”. Dominação de quem? De Pierre Bataillon? Ou das narrativas substanciais preconceituosas que dominaram o século XX? Apego-me a Bachelard, para compreender este trecho da obra de Rogel Samuel:

 

A água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência onírica.[v]

 

Os Numas estão reduplicados a partir do imaginário incomum de Rogel Samuel, estão “na rede florestal” do escritor, “fora da dominação” sócio-substancial, daquela anterior forma/regência da técnica do “bem narrar”. O “seringal” das anosas normas ficcionais, neste trecho sui generis, está cercado pela “expansão desmesurada” dos Numas/Numes rogelianos, os quais serão decodificados (se, no futuro intelectualizado, os analistas/intérpretes assim o quiserem) a partir do simulacro do “bem narrar” à moda tradicional, mas indiscutivelmente alicerçado pelo ato de “bem ver” e “bem repensar” a transitória realidade do século XX e início do século XXI (naturalmente, no futuro, por intermédio de novas críticas literárias, respaldadas por novíssimos juízos substanciais). Os Numas insistindo em ser, porque aquele lar secreto, singular, no momento, está ativamente duplicado (reduplicado, triplicado) pelos igarapés singelos e/ou pelas águas volumosas dos caudalosos rios amazonenses, e esses Numas/Numes, enquanto divindades aquáticas e/ou aéreas (“freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu”), especialmente, fazem parte da casa inesquecível do escritor de origem manauara: a Grande Floresta. O Estado do Amazonas, Manaus e a mítica Floresta (árvores e pássaros) serão sempre o lar primordial do escritor Rogel Samuel. Para o escritor, não importa que as lembranças dessa casa inesquecível nem sempre sejam boas. O que lhe atinge intimamente é que por ali existe um Igarapé do Inferno a poluir a parte exterior “do poder do Seringal”, aquele espaço privilegiado e incomum de seu “verbo original”. Dar vida mítico-ficcional aos Numas/Numes, é uma “nova experiência onírica”, “imensurável”, para o seu narrador-personagem.

 

Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima, possíveis mas improváveis, mitificados, solitários, violentos, irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar. Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas.[vi]

 

Mesmo conhecendo um pouco da Amazônia, para compreender reflexivamente este parágrafo, necessito de Bachelard a orientar-me:

 

Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito; tens o direito ambíguo de ver e de não ver. (...) A fada das águas, guardiã da miragem, detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça contém um universo. Um instante de sonho contém uma alma inteira.[vii]

 

“Oh, ruturas!” Aqueles “seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas”, aqueles “deuses” desceram do Olimpo para “justiçar” o narrador-personagem Ribamar de Sousa das “noturnas culpas” daquele seu outro alter ego ficcional, o segundo e verdadeiro narrador, aquele que tem o poder de visualizar para além de si mesmo. Oh, instante de sonhos a deter nas mãos “o direito ambíguo de ver e de não-ver” (daquele que sente e possui o dom de narrar ficcionalmente tal momento grandioso), um direito incerto sui generis auxiliado pelo imaginário-em-aberto de uma própria, diferenciada e privilegiada consciência singular.

 

Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Às vezes deixavam-se entrever. Muitos seringueiros tentaram caçá-los a tiros (e foram mortos dias ou meses depois, numa vingança fria e exata). Eles se deslocavam rápidos, como um sopro, não estão lá, transitórios.[viii]

 

E rompiam além, na nossa frente. Nus, com gemido de fera ferida, de pássaro. Só som. Para se reagrupar nos caminhos já passados, deixando propositais pegadas. Recortam o ar com sibilantes flechas de vento, marcando seus traços em toda a parte, nas irredutíveis casas do nosso medo.[ix]

 

Cruzam redes de relação dentro do Seringal, infiltrados, atravessando, chegando no jardim do Palácio, para afrontar. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa.[x]





[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 25 - 26.


[ii] BACHELARD, Gaston, 1998: 47 - 48.


[iii] SAMUEL, Rogel, 2005: 26.


[iv] Idem: 26.


[v] BACHELARD, Gaston, 1998: 51.


[vi] SAMUEL, Rogel, 2005: 26 - 27.


[vii] BACHELARD, Gaston, 1998: 53.


[viii] SAMUEL, Rogel, 2005: 27.


[ix] Ibidem.


[x] Ibidem.

Nenhum comentário: