Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
(Foram dez
anos de pesquisa e reformulações, diz Rogel Samuel). Neste ínterim, “naquela
enseada de poço, piscoso e escuro, sob o cântico geral daqueles pássaros de
bico largo e penas coloridas”, o criativo escritor de O Amante das Amazonas
viu-se a coletar e a destruir paradigmas. Sim. Assim como o seu narrador
Ribamar de Sousa, ele, apenas o Rogel Samuel, escritor de origem manauara, não
tinha conseguido, “na loucura das buscas anteriores, a plenitude daquilo que
nele era só um desejo impulsionado, obscuro e sem nome”, ou seja, desmistificar
e esclarecer as fundamentações substanciais sócio-familiares replenas de
hipócritas motivações de como se apresentar ficcionalmente ao mundo.
Anteriormente e historicamente, o padrão institucionalizado ditou as normas da
escrita ficcional sobre “coisa” de difícil explicação. Naquele momento
criativo, o escritor Rogel Samuel estava a debater-se com a idéia da
formalização narrativa da mítica realidade Numa/Nume. E fora/(é ainda)
uma formalização que não se repetiu/se repetirá igual, seja em espécie ou
gênero literário. Os Numas (no caso, o nome e o ato de se nomear ficcionalmente
uma nação indígena brasileira) serão para sempre e indiscutivelmente uma
criação ficcional de Rogel Samuel, pois, graças à proposta ficcional
singularíssima deste escritor, continuarão “arredios, móveis, vigilantes,
foragidos dos Andes”, continuarão “empurrados por perigoso inverno”, e
“permaneceram perdidos e livres, animais persistentes”, [a se imporem] como
resistência. Não e não”. [Reagirão] ao pacto, ao toque, ao contato”, pois, como
diria Michel Foucault, pós-modernamente recuperado nas páginas rogelianas,
“onde há resistência, há poder”[i].
As grandes
obras trazem sempre um duplo signo: a psicologia encontra nelas um lar secreto,
a crítica literária um verbo original. A
língua de um grande poeta (...) é sem dúvida rica, mas tem uma hierarquia. Sob
suas mil formas, a imaginação oculta uma substância privilegiada, uma
substância ativa que determina a unidade e a hierarquia da expressão. Não nos
será difícil provar que (...) essa matéria privilegiada é a água ou, mais
exatamente, uma água especial, uma água pesada, mais profunda, mais
morta, mais sonolenta que todas as águas dormentes, que todas as águas paradas,
que todas as águas profundas que se encontram na natureza. A água, na
imaginação (...), é um superlativo, uma espécie de substância de substância,
uma substância-mãe.[ii]
Para
explicitar o poder dos Numas/Numes enquanto tribo não-nomeada ─
geográfica e literariamente ─, nesta narrativa ficcional de múltiplos sentidos,
será lícito interagir com o texto de Rogel Samuel, paralelamente às obras
filosóficas de Gaston Bachelard, Michel Foucault e outros pensadores da
pós-modernidade. Portanto, por ora, dialogando com alguns parágrafos
bachelardianos, nos quais o filósofo analisa/interpreta as obras de Edgard Alan
Poe e Paul Claudel, por minha parte, posso assegurar que a substância privilegiada,
em O Amante das Amazonas, como não poderia deixar de ser, é
igualmente a água. A água, na imaginação rogeliana também se superlativiza,
porque, assim como nos escritos de Poe e Claudel, o que se encontra oculto nela
é o lar secreto, aquático, do escritor de origem amazonense. Se para
Bachelard a língua de um grande poeta [de um grande ficcionista] tem uma
hierarquia, é justamente graças a essa hierarquia sui generis que os
Numas rogelianos apresentam uma força excepcional. Os Numas são Numes
(míticos seres alados) e provêem da “incerteza” e “não-saber” históricos,
“herméticos, multiplicados e fortes”. Afirmou/afirma Rogel Samuel: “Os Numas se
submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si”, “na multiplicidade de seus pontos
de força”, “no imprevisível espaço”, em outras palavras, não se revelaram
socialmente e historicamente.
Os Numas se submetiam a si
mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força,
insistindo em ser, no imprevisível espaço.[iii]
Estão, a princípio, em toda
parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da
dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios
limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se
dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela
invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio
de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado.
Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu.[iv]
“Estão, a
princípio, em toda parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede
florestal de fora da dominação”. Dominação de quem? De Pierre Bataillon? Ou das narrativas
substanciais preconceituosas que dominaram o século XX? Apego-me a Bachelard,
para compreender este trecho da obra de Rogel Samuel:
A água, por
seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador,
não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência
onírica.[v]
Os Numas
estão reduplicados a partir do imaginário incomum de Rogel Samuel, estão “na
rede florestal” do escritor, “fora da dominação” sócio-substancial, daquela
anterior forma/regência da técnica do “bem narrar”. O “seringal” das anosas
normas ficcionais, neste trecho sui generis, está cercado pela “expansão
desmesurada” dos Numas/Numes rogelianos, os quais serão decodificados
(se, no futuro intelectualizado, os analistas/intérpretes assim o quiserem) a
partir do simulacro do “bem narrar” à moda tradicional, mas indiscutivelmente alicerçado
pelo ato de “bem ver” e “bem repensar” a transitória realidade do século XX e
início do século XXI (naturalmente, no futuro, por intermédio de novas críticas
literárias, respaldadas por novíssimos juízos substanciais). Os Numas
insistindo em ser, porque aquele lar secreto, singular, no
momento, está ativamente duplicado (reduplicado, triplicado) pelos igarapés
singelos e/ou pelas águas volumosas dos caudalosos rios amazonenses, e esses
Numas/Numes, enquanto divindades aquáticas e/ou aéreas (“freqüentemente
se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu”), especialmente, fazem parte
da casa inesquecível do escritor de origem manauara: a Grande Floresta.
O Estado do Amazonas, Manaus e a mítica Floresta (árvores e pássaros) serão
sempre o lar primordial do escritor Rogel Samuel. Para o escritor, não importa
que as lembranças dessa casa inesquecível nem sempre sejam boas. O que
lhe atinge intimamente é que por ali existe um Igarapé do Inferno a poluir
a parte exterior “do poder do Seringal”, aquele espaço privilegiado e incomum
de seu “verbo original”. Dar vida mítico-ficcional aos Numas/Numes, é
uma “nova experiência onírica”, “imensurável”, para o seu narrador-personagem.
Eles não eram aparência, mas
imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na
ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e
fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima,
possíveis mas improváveis, mitificados, solitários, violentos,
irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar.
Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação
de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo
incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de
sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior
densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas
cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas,
deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas.[vi]
Mesmo
conhecendo um pouco da Amazônia, para compreender reflexivamente este
parágrafo, necessito de Bachelard a orientar-me:
Diante da água profunda,
escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem
ou o infinito; tens o direito ambíguo de ver e de não ver. (...) A fada das
águas, guardiã da miragem, detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça
contém um universo. Um instante de sonho contém uma alma inteira.[vii]
“Oh,
ruturas!” Aqueles “seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas”,
aqueles “deuses” desceram do Olimpo para “justiçar” o narrador-personagem
Ribamar de Sousa das “noturnas culpas” daquele seu outro alter ego ficcional, o
segundo e verdadeiro narrador, aquele que tem o poder de visualizar para além
de si mesmo. Oh, instante de sonhos a deter nas mãos “o direito ambíguo de ver
e de não-ver” (daquele que sente e possui o dom de narrar ficcionalmente tal
momento grandioso), um direito incerto sui generis auxiliado pelo
imaginário-em-aberto de uma própria, diferenciada e privilegiada consciência
singular.
Pois era como se fossem
olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas
estranhas criaturas. Às vezes deixavam-se entrever. Muitos seringueiros
tentaram caçá-los a tiros (e foram mortos dias ou meses depois, numa vingança
fria e exata). Eles se deslocavam rápidos, como um sopro, não estão lá,
transitórios.[viii]
E rompiam além, na nossa
frente. Nus, com gemido de fera ferida, de pássaro. Só som. Para se reagrupar
nos caminhos já passados, deixando propositais pegadas. Recortam o ar com
sibilantes flechas de vento, marcando seus traços em toda a parte, nas
irredutíveis casas do nosso medo.[ix]
Cruzam redes de relação
dentro do Seringal, infiltrados, atravessando, chegando no jardim do Palácio,
para afrontar. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa.[x]
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