Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo
De Maria
Caxinauá, assim como de Paxiúba, há muito para refletir. Entretanto, lembro-me,
neste instante dinamizado (à moda bachelardiana) de que há outros
personagens importantes, sitiados naquele “limite do fim do mundo”. Dali, todos
escaparam para a “ilimitação” da esfera universal, um deles foi o Benito
Botelho, filho de Isaura, a cozinheira do Palácio. Pelo altíssimo valor
ficcional de Benito, busco a importância da cozinheira Isaura, no entrelaçar
narrativo:
Os curumins brincam na ubá
atracada. Fecham o nariz com dois dedos, pulam de pé. Depois correm pela
margem. Estrídulos, incessantes, como um bando de periquitos. Mundico, o maior,
é filho de Isaura, cozinheira do Palácio. Ela tem dois filhos de pais diversos.
O segundo filho não está ali. Chama-se Benito Botelho e está em Manaus. Benito
foi o maior intelectual amazonense. Quando menino, atacado de varíola, Benito
foi levado por Frei Lothar, que se afeiçoou a ele. Acabou criado no
Vassourinha, orfanato do Padre Pereira, pois Frei Lothar nunca parava muito
tempo em Manaus.[i]
Eis a grande
importância da cozinheira Isaura: ser a mãe do maior intelectual de Manaus, a
Isaura cozinheira, aquela que também residiu nas delimitações do Igarapé do
Inferno. Benito nasceu ali, dentro dos limites do Seringal Manixi, enquanto
lugar infernal. Mas, no preciso momento narrativo, o Benito, aquele que “foi o
maior intelectual amazonense”, estava a residir em Manaus, longe das terras de
Pierre Bataillon e de seu Igarapé do Inferno. Mas, quem é o Benito Botelho?
Como Pierre Bataillon pode permitir a saída do filho de sua escrava-cozinheira
dos limites de suas terras e, com isto, propenso a se tornar “o maior
intelectual de Manaus”? Comentarei a sua importante atuação posteriormente. Por
ora, outro habitante ficcional do Manixi e seu Igarapé infernal exige a minha
atenção. Necessito conhecer um outro digno morador da prisão-reserva de Pierre
Bataillon: o índio Arimoque.
O índio
Arimoque ─ possivelmente, um passageiro personagem ficcional ─ é citado apenas
uma vez na extensão geográfico-narrativa do Seringal Manixi, mas sua presença
lendária realça-se imensuravelmente, alcançando o plano ilimitado das palavras
não-ditas. A sua rápida aparição põe-se em evidência justamente porque, assim
como um meteoro brilhantíssimo passando pela terra, a lembrança de seu halo
monumental continua a iluminar o espaço narrado. Por que um índio lendário,
poderoso, se tornou “prisioneiro” dos fúnebres limites do Seringal? Seria ele
também um representante da tribo dos Caxinauás pacificados? Se existiu
realmente, sua fama ficou reservada por via oral apenas para privilegiados
amazonenses. Nas lendas indígenas, conhecidas textualmente, não há o nome deste
índio, assinalado rapidamente no romance de Rogel Samuel.
Lá estava também eu, o ainda jovem Ribamar de
Souza, que viera de Patos em busca de seu irmão Antônio e de seu tio Genaro ─
ambos agora mortos. Também o índio Arimoque, cujas estórias fantásticas ainda
circulam até hoje pela região.[ii]
O índio
Arimoque só aparece neste parágrafo. No entanto, posso afiançar que sua rápida
menção possui importância capital no desenrolar narrativo. Diz Rogel Samuel:
“Suas histórias fantásticas circulam até hoje pela região”. Com a permissão do
relato, vou buscá-las por meio de uma aproximação histórica intuitiva, não
autorizada cientificamente.
Examinando
informações generalizadas sobre os diversos nomes de tribos da região amazônica
mencionadas na obra de Rogel Samuel ─ principalmente das que se assemelhassem à
possibilidade de o nome do índio Arimoque ser um patronímico, denunciando assim
a sua origem genética ─ e procurando semelhanças fonéticas entre as grafias
encontradas, avistei alhures uma referência aos índios Aruaques (comedores de
farinha), também conhecidos por Kali’na ou Caraíbas. Esses
Aruaques (ou Aruakes ou Arahuaco em espanhol), mesmo fazendo
parte dos grupos indígenas do Brasil, são oriundos de outras localidades tais
como Flórida (atualmente, região comandada pelos Estados Unidos da América do
Norte), Porto Rico, Cuba, Antilhas, Bahamas, na cadeia secundária da
Cordilheira dos Andes, e outros tantos e inúmeros locais da América do Sul. Os
Aruaques são lendários, por isto obriguei-me a sinalizar uma aproximação
genética deles com o índio Arimoque, da narrativa ficcional de Rogel Samuel.
Possivelmente, o escritor optou por espécie de corruptela semântica para
nomeá-lo rapidamente, em um criativo simulacro lingüístico. Não é a ficção
pós-modernista a arte de imaginar o real? E, por ventura, a crítica literária
não deveria se posicionar de acordo com o objeto estudado?
Os Aruaques,
historicamente, foram os primeiros silvícolas que tiveram contato com o branco
europeu. Eram índios pacíficos e, ao longo da história da colonização européia,
das três Américas, desde a incursão de Colombo, em terras americanas do norte e
da colonização dos espanhóis e portugueses, em terras americanas do Sul e
América Central, foram transformados em cativos e muitos foram exterminados,
por vias de genocídios e doenças do homem branco invasor. Entretanto, por meio
de diáspora gentílica, tornaram-se lendários ao longo do segundo milênio. Assim
reflito o personagem Arimoque de Rogel Samuel, “cujas estórias fantásticas
ainda circulam até hoje pela região”: por intermédio de corruptela lingüística,
os variados nomes indígenas Aruaque, Aryauak, Arimaque
poderiam significar também o Arimoque rogeliano, ou seja, o apelido fixado no
romance, e, interativamente, se associarem ao patronímico aqui realçado. Eis
uma nomeação ficcional de capital importância. Por intermédio dela, busquei o
reconhecimento de um dos maiores ramais indígenas do Brasil e adjacências.
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