quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo


Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo


 

 

 

De Maria Caxinauá, assim como de Paxiúba, há muito para refletir. Entretanto, lembro-me, neste instante dinamizado (à moda bachelardiana) de que há outros personagens importantes, sitiados naquele “limite do fim do mundo”. Dali, todos escaparam para a “ilimitação” da esfera universal, um deles foi o Benito Botelho, filho de Isaura, a cozinheira do Palácio. Pelo altíssimo valor ficcional de Benito, busco a importância da cozinheira Isaura, no entrelaçar narrativo:

 

Os curumins brincam na ubá atracada. Fecham o nariz com dois dedos, pulam de pé. Depois correm pela margem. Estrídulos, incessantes, como um bando de periquitos. Mundico, o maior, é filho de Isaura, cozinheira do Palácio. Ela tem dois filhos de pais diversos. O segundo filho não está ali. Chama-se Benito Botelho e está em Manaus. Benito foi o maior intelectual amazonense. Quando menino, atacado de varíola, Benito foi levado por Frei Lothar, que se afeiçoou a ele. Acabou criado no Vassourinha, orfanato do Padre Pereira, pois Frei Lothar nunca parava muito tempo em Manaus.[i]

 

Eis a grande importância da cozinheira Isaura: ser a mãe do maior intelectual de Manaus, a Isaura cozinheira, aquela que também residiu nas delimitações do Igarapé do Inferno. Benito nasceu ali, dentro dos limites do Seringal Manixi, enquanto lugar infernal. Mas, no preciso momento narrativo, o Benito, aquele que “foi o maior intelectual amazonense”, estava a residir em Manaus, longe das terras de Pierre Bataillon e de seu Igarapé do Inferno. Mas, quem é o Benito Botelho? Como Pierre Bataillon pode permitir a saída do filho de sua escrava-cozinheira dos limites de suas terras e, com isto, propenso a se tornar “o maior intelectual de Manaus”? Comentarei a sua importante atuação posteriormente. Por ora, outro habitante ficcional do Manixi e seu Igarapé infernal exige a minha atenção. Necessito conhecer um outro digno morador da prisão-reserva de Pierre Bataillon: o índio Arimoque.

O índio Arimoque ─ possivelmente, um passageiro personagem ficcional ─ é citado apenas uma vez na extensão geográfico-narrativa do Seringal Manixi, mas sua presença lendária realça-se imensuravelmente, alcançando o plano ilimitado das palavras não-ditas. A sua rápida aparição põe-se em evidência justamente porque, assim como um meteoro brilhantíssimo passando pela terra, a lembrança de seu halo monumental continua a iluminar o espaço narrado. Por que um índio lendário, poderoso, se tornou “prisioneiro” dos fúnebres limites do Seringal? Seria ele também um representante da tribo dos Caxinauás pacificados? Se existiu realmente, sua fama ficou reservada por via oral apenas para privilegiados amazonenses. Nas lendas indígenas, conhecidas textualmente, não há o nome deste índio, assinalado rapidamente no romance de Rogel Samuel.

 

 Lá estava também eu, o ainda jovem Ribamar de Souza, que viera de Patos em busca de seu irmão Antônio e de seu tio Genaro ─ ambos agora mortos. Também o índio Arimoque, cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região.[ii]

 

O índio Arimoque só aparece neste parágrafo. No entanto, posso afiançar que sua rápida menção possui importância capital no desenrolar narrativo. Diz Rogel Samuel: “Suas histórias fantásticas circulam até hoje pela região”. Com a permissão do relato, vou buscá-las por meio de uma aproximação histórica intuitiva, não autorizada cientificamente.

Examinando informações generalizadas sobre os diversos nomes de tribos da região amazônica mencionadas na obra de Rogel Samuel ─ principalmente das que se assemelhassem à possibilidade de o nome do índio Arimoque ser um patronímico, denunciando assim a sua origem genética ─ e procurando semelhanças fonéticas entre as grafias encontradas, avistei alhures uma referência aos índios Aruaques (comedores de farinha), também conhecidos por Kali’na ou Caraíbas. Esses Aruaques (ou Aruakes ou Arahuaco em espanhol), mesmo fazendo parte dos grupos indígenas do Brasil, são oriundos de outras localidades tais como Flórida (atualmente, região comandada pelos Estados Unidos da América do Norte), Porto Rico, Cuba, Antilhas, Bahamas, na cadeia secundária da Cordilheira dos Andes, e outros tantos e inúmeros locais da América do Sul. Os Aruaques são lendários, por isto obriguei-me a sinalizar uma aproximação genética deles com o índio Arimoque, da narrativa ficcional de Rogel Samuel. Possivelmente, o escritor optou por espécie de corruptela semântica para nomeá-lo rapidamente, em um criativo simulacro lingüístico. Não é a ficção pós-modernista a arte de imaginar o real? E, por ventura, a crítica literária não deveria se posicionar de acordo com o objeto estudado?

Os Aruaques, historicamente, foram os primeiros silvícolas que tiveram contato com o branco europeu. Eram índios pacíficos e, ao longo da história da colonização européia, das três Américas, desde a incursão de Colombo, em terras americanas do norte e da colonização dos espanhóis e portugueses, em terras americanas do Sul e América Central, foram transformados em cativos e muitos foram exterminados, por vias de genocídios e doenças do homem branco invasor. Entretanto, por meio de diáspora gentílica, tornaram-se lendários ao longo do segundo milênio. Assim reflito o personagem Arimoque de Rogel Samuel, “cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região”: por intermédio de corruptela lingüística, os variados nomes indígenas Aruaque, Aryauak, Arimaque poderiam significar também o Arimoque rogeliano, ou seja, o apelido fixado no romance, e, interativamente, se associarem ao patronímico aqui realçado. Eis uma nomeação ficcional de capital importância. Por intermédio dela, busquei o reconhecimento de um dos maiores ramais indígenas do Brasil e adjacências.



[i] Idem: 58.
[ii] Idem: 86.

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