segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 
NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
 
 
 
No segmento narrativo-ficcional do capítulo CINCO: FERREIRA,  (não confundir com narrativa épica), a chamada narrativa de acontecimento (marca das narrativas do século XX), diferente das narrativas de personagem do romantismo e das narrativas de espaço do realismo-naturalismo, se faz visível. Para penetrar no Palácio de Pierre Bataillon, o narrador-personagem Ribamar de Sousa utiliza-se da técnica ficcional do acontecimento fantástico, uma vez que não há nada que explique como Ribamar se salvou, depois do incêndio da Floresta, onde pereceram seus “parentes”, o tio e o irmão. Pelo ponto de vista dos estudos semiológicos do texto ficcional (de segunda geração), tal impasse narrativo é denominado como narrativa de acontecimento, modalidade fantástica, justamente porque não há as tais explicações lineares, e o personagem se recupera no plano das probabilidades existenciais sem se lembrar dos detalhes do acontecimento insólito. Entretanto, ainda de acordo com a semiologia de segunda geração (Greimás, Roland Barthes, Anazildo Vasconcelos), o personagem se restaura de uma forma diferente da anterior, ou seja, o Ribamar não mostrará mais a face do retirante nordestino, assumindo, por outro lado, as feições do político manauara. Recuperando aqui as diretivas foucaultianas: se antes faltou ao estudioso francês o “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios do jogo enunciativo, para teorizar sobre as palavras e as coisas, em seu livro do mesmo nome, preso que estava, à época, às normas do poder estruturalista, atualmente, já há como desenvolver um pensamento interpretativo, mesmo que este se volatilize a partir do próprio estruturalismo. Para repensar este capítulo do romance de Rogel Samuel, não há como sistematizá-lo em um só paradigma teórico. A própria escrita telegráfica do primeiro parágrafo assim o impõe. São períodos curtos, são flashes instantâneos, como bem explica o narrador Ribamar de Sousa: “Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa”[i]. Nestes aparentes flashes fracos (flashes fortes), o narrador-personagem sintetiza uma cena cinematográfica que poderia preencher páginas e páginas de escrita paraliterária. No entanto, com poucas e criativas palavras, o alter ego ficcional do narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conduz os leitores a uma cena ímpar: o aparecimento de Ribamar, depois da interseção ígnea, no cais fluvial de Pierre Bataillon, trazido pelas águas, como Moisés do Egito.
Sobre a questão do poder das diretrizes analíticas, daquele momento, questão mobilizada aguerridamente por Michel Foucault, Alexandre Fontana interroga:
 
Alexandre Fontana: Creio que se pode dizer tranqüilamente que você foi o primeiro a colocar ao discurso a questão do poder; colocá-la no momento em que reinava um tipo de análise que passava pelo conceito de texto, pelo texto com a metodologia que o acompanha, isto é, a semiologia, o estruturalismo, etc.[ii]
 
Eis a resposta de Michel Foucault:
 
Michel Foucault: Não acho que fui o primeiro a colocar esta questão. Pelo contrário, me espanta a dificuldade que tive para formulá-la. Quando agora penso nisto, pergunto-me de que podia ter falado, na História da loucura ou no Nascimento da Clínica, senão do poder. Ora, tenho perfeita consciência de não ter praticamente usado a palavra e de não ter  tido este campo de análise à minha disposição.  Posso dizer que certamente houve uma incapacidade que estava sem dúvida ligada à situação política em que nos achávamos. Não vejo quem ─ na direita ou na esquerda ─ poderia ter colocado este problema do poder. Pela direita, estava somente colocado em termos de constituição, de soberania, etc., portanto em termos jurídicos; e, pelo marxismo, em termos de aparelho do Estado. Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, sua técnicas e suas táticas. Contentava-se em denunciá-lo no “outro”, no adversário, de uma maneira ao mesmo tempo polêmica e global.: o poder no socialismo soviético era chamado por seus adversários de totalitarismo; no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classe; mas a mecânica do poder nunca era analisada. Só se pode começar a fazer este trabalho depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais finas da rede do poder. Foi aí que apareceu a concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possível destas análises do poder, que tinham como objetivo dar conta destas coisas que até então tinham ficado à margem do campo da análise política. Para dizer as coisas mais simplesmente: o internamento psiquiátrico, a normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm, sem dúvida, uma importância muito limitada se se procura somente sua significação econômica. Em contrapartida, no funcionamento geral das engrenagens do poder, eles são sem dúvida essenciais. Enquanto se colocava a questão do poder subordinando-o à instância econômica e ao sistema de interesse que garantia, se dava pouca importância a estes problemas.[iii]
 
Se Michel Foucault se viu embaraçado, lá pelos anos sessenta do século passado, pelo “regime discursivo” de seu momento histórico-intelectivo, o meu excurso teórico-crítico anterior continua válido. Para falar do “capitalismo selvagem” (horas dilatadas de trabalho escravo) introduzido aqui no Brasil no século XIX, e que permaneceu atuante até depois de meados do século XX, camuflado sob a aparência de um progresso galopante, não condizente com a realidade atrasada de um país de terceiro mundo, necessito do apoio da filosofia bachelardiana firmemente acoplada a foucaultiana. Sem querer igualar-me e já me igualando aos filósofos franceses, aqui realçados, afirmo: falta-me hoje o “regime discursivo” teórico-crítico adequado, regime único e próprio, uma vez que me vejo prisioneira dos “efeitos dos poderes próprios do jogo enunciativo” intelectivo, da pós-modernidade globalizada, prisioneira dos diversos jogos enunciativos teórico-críticos que se digladiam em nosso interno e pretensioso meio intelectual.


[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 48.
[ii] Idem: 5.
[iii] FOUCAULT, 1990: 5 - 6.

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