Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
“O galho
quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a
árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros
de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma
documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal
poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria
construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros
benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método
severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.
Foi a partir
da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde
elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes rogelianos se infiltraram,
avançaram e atravessaram as leis preconceituosas da história do
homem ocidental, premiando os leitores de Rogel Samuel com uma númica e
criativa cena homossexual/lesbiana: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso
à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado a construir
monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si
mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto
divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e
a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do escritor
e o texto que seria apresentado aos leitores).
Necessito de
uma explicação: Em um primeiro momento, refleti o assunto pelo ponto de vista
da interpretação primária, respaldada pelo próprio texto ficcional de Rogel
Samuel. Com esta atitude, reconheço, submeti-me ao risco de uma desconexa
contra-afirmação metodológica, como proclamei anteriormente. Para uma
interpretação reflexivo-fenomenológica e explícita do mítico
homossexualismo/androginismo das indiazinhas Numas/Numes rogelianas,
interpretação esta que seja respeitada pelos meus pares intelectuais, submissos
às teorias literárias estrangeiras (a maior parte, pelo menos), exige-se, para
o esclarecimento do assunto, um repensar à moda do fim da modernidade (Era
Moderna) e o início da pós-modernidade (do século XX para cá).
Até meados do
século passado, a questão, no âmbito da criação ficcional, não poderia ser
exposta nitidamente. Os pensadores fenomenólogos, como, por exemplo, Nietzsche,
Heidegger, Deleuze, Foucault, Vattimo, perceberam que a artística interpretação
literária da realidade (arte literária), teria de acompanhar a situação real de
quem a produzisse. O escritor, fosse ele ficcionista ou poeta, teria de mostrar
uma de suas faces ao mundo ─ neste romance de Rogel Samuel, por exemplo, a de
criador literário ─, ou seja, o seu modo de estar no mundo. O escritor-ficcionista
do século XX sofreu esta exigência cogitativa e cognitiva ao ver-se obrigado a
abandonar a forma exemplar dos narradores ficcionais tradicionais em proveito
de um diferenciado propósito narrativo-ficcional. Os narradores do século XX
(não confundi-los jamais com os narradores épicos), narradores do caos
vivencial do homem em transição, secular e milenar, exigiram, para si mesmos (e
para os pósteros) uma renovada forma de expressão literária/ficcional (sem
absolutismo), que os representasse, orientando-os para uma não-convencionada
atitude ante as regras imperialistas, cerceadoras, do mundo moderno. Por
exemplo, neste romance de Rogel Samuel, esta idéia de uma renovada literatura
ficcional já se revela sublinearmente. Senão, vejamos:
No quarto dia não apareceram.
O rio era um deserto. Eu não
tinha conseguido, na loucura do dia anterior, a plenitude daquilo que, há
tempo, em mim, era só desejo impulso obscuro e sem nome: eu tinha arriscado a
vida. Tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade, o que valia a pena, o
que valia a vida, na equivalência surpreendente torcionária ─ a vida não é de
caminhos retos ─, mas na iniciação às Parcas, esboço de serpentes, nome de
demônio. Minha verdade. Tampo do tempo. Última verdade a ser implantada, cabeça
a dentro, no elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva
imaginação do terror e da violência ─ amá-las para mim seria desmistificar: As
meninas fugidias, no mais rápido do ato, no átimo, não as pude pegar, na
desiderabilidade do aceno, do acerto de contas.[i]
“O rio era um
deserto”. Penso, extratexto narrativo, o que esta informação ficcional
rogeliana quer dizer, ou seja, não havia como transformar em palavras as
íntimas lembranças. No entanto, existia o desejo, “um impulso obscuro e sem
nome” de oferecer “plenitude” aos pensamentos diferenciados. O
narrador-personagem “tinha arriscado a vida” para, enfim, dar forma ficcional
às suas lembranças. Ele “tinha sido
capaz de cambiar a vida pela verdade”. O que seria esta verdade? Seria uma
verdade deleuziana?
O que seria a
verdade do narrador-personagem de Rogel Samuel. Seria aquela imposta pelas
anteriores regras ficcionais, substanciais, regras essas que tanto incomodaram
o escritor Alain Robbe-Grillet, Jules Deleuze, Michel Foucault e outros, em
meados do século XX, regras imperialistas, preconceituosas, que impunham ao
escritor um modelo, à moda de grandes romances do passado, modelo este para
o qual o jovem escritor deveria manter os olhos voltados, como
afirmou Robbe-Grillet? Ou tal personagem-narrador-inovador deveria buscar sua
verdade no fundo do poço dos juízos de descoberta (Bachelard),
distanciado das regras ficcionais substanciais de seu momento-histórico e
encarregar-se por sua vez de lutar titanicamente com as palavras diferenciadas,
originárias de novíssimos princípios e restritas ao alargadíssimo
imaginário-em-aberto do repouso fervilhante do escritor?
Os
fundamentos substanciais daquelas regras anteriores ao pós-modernismo, se as
penso pela ótica de Gianni Vattimo[ii],
àquela época, não poderiam ser criticados e, muito menos, reformulados, ou
mesmo refundamentados, pois eram fundamentos considerados absolutos,
consagrados, inquestionáveis. Assim, a ficção do século XX final, entrópica,
sinalizou-se como a ficção do não-fundamento. Aqui, repenso aquela informação perfeita,
artística, sucinta de Rogel Samuel, citada páginas atrás: “Como nessa matéria
nada é absoluto”. Esta afirmação endossa o meu texto reflexivo-interpretativo,
sobre o diferenciado narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, o
narrador-personagem Ribamar de Sousa de Rogel Samuel, este meu texto
teórico-interpretativo, conscientemente fragilizado, porque se coloca
conscientemente como pioneiro, e que, certamente, sofrerá repetidas investidas,
contrárias, das hostes intelectuais, brasileiras ou não, proprietárias das
eternas verdades teórico-críticas institucionalizadas.
Contudo,
voltando à ficção do século XX, nitidamente entrópica, reafirmo, pela minha
própria forma de entender o pensamento de Gianni Vattimo, que esta se sinalizou
como a ficção do não-fundamento. Os ficcionistas-criadores de uns anos para cá
não instituíram os chamados fundamentos corretos, não estabeleceram verdades
absolutas, negaram uma disposição e distribuição do fazer narrativo pelo modelo
tradicional, desenvolveram um diferenciado exame da realidade de suas propostas
ficcionais. Esses ficcionistas do século XX, extremamente não-convencionais,
procuraram uma adequação ao estado entrópico de suas realidades existenciais.
Já que não possuíam mais a confiança e firmeza do substancialmente instituído,
valeram-se de suas dúvidas diárias, vazias, desenvolvendo gradativamente suas
lutas titânicas com as palavras ainda não-substancialmente formalizadas.
A verdade
do narrador-personagem Ribamar de Sousa, foi o estabelecimento da não-verdade
do criador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração Rogel
Samuel, pois este não possuía um fundamento histórico sobre os Numas,
substancial, confiável ─ em virtude de ser o escritor originário de uma criação
social preconceituosa ─ para se posicionar sobre o problema da homossexualidade
(masculina) nas hostes indígenas. (Esta minha particular expressão
teórico-crítica é válida ─ “segunda geração” ─, porque a primeira fase, também
entrópica, da escritura ficcional pós-moderna/pós-modernista de Primeira
Geração é totalmente diferenciada da segunda fase, ou seja, desta fase criativa
deste escritor aqui considerado).
Mas, o que é
a verdade rogeliana? A anterior verdade instituída, sobre “coisa” de difícil
explicação, apresentada sublinearmente pelo narrador-personagem Ribamar de
Sousa, já fora asfixiada pelo “rio deserto” (plano sem palavras conceituais,
amorfo), inserido na fábula númica do escritor amazonense. O momento
sócio-existencial de sua realidade próxima ainda não estava a permitir-lhe
novos fundamentos ficcionais. A entropia narrativa, à moda da primeira fase
pós-modernista, ainda teria de se fazer presente em seu relato. Entretanto,
mesmo repudiando as preconceituosas “verdades” instituídas e se debatendo em
uma realidade enrolada e espetacularmente diversificada, o ficcionista
pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conformou um outro rumo ou nova
sondagem para explicitar a sua verdade ficcional. E esta nova conformação
respaldou-se na incerteza da própria conformação, na luta constante para
se chegar a um bom termo explicativo-narrativo-ficcional.
[ii] Cf.: VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo hermenêutico na Cultura Pós-Moderna. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
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