quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico


Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico


Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

 

“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.

Foi a partir da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes rogelianos se infiltraram, avançaram e atravessaram as leis preconceituosas da história do homem ocidental, premiando os leitores de Rogel Samuel com uma númica e criativa cena homossexual/lesbiana: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado a construir monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do escritor e o texto que seria apresentado aos leitores).

Necessito de uma explicação: Em um primeiro momento, refleti o assunto pelo ponto de vista da interpretação primária, respaldada pelo próprio texto ficcional de Rogel Samuel. Com esta atitude, reconheço, submeti-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica, como proclamei anteriormente. Para uma interpretação reflexivo-fenomenológica e explícita do mítico homossexualismo/androginismo das indiazinhas Numas/Numes rogelianas, interpretação esta que seja respeitada pelos meus pares intelectuais, submissos às teorias literárias estrangeiras (a maior parte, pelo menos), exige-se, para o esclarecimento do assunto, um repensar à moda do fim da modernidade (Era Moderna) e o início da pós-modernidade (do século XX para cá).

Até meados do século passado, a questão, no âmbito da criação ficcional, não poderia ser exposta nitidamente. Os pensadores fenomenólogos, como, por exemplo, Nietzsche, Heidegger, Deleuze, Foucault, Vattimo, perceberam que a artística interpretação literária da realidade (arte literária), teria de acompanhar a situação real de quem a produzisse. O escritor, fosse ele ficcionista ou poeta, teria de mostrar uma de suas faces ao mundo ─ neste romance de Rogel Samuel, por exemplo, a de criador literário ─, ou seja, o seu modo de estar no mundo. O escritor-ficcionista do século XX sofreu esta exigência cogitativa e cognitiva ao ver-se obrigado a abandonar a forma exemplar dos narradores ficcionais tradicionais em proveito de um diferenciado propósito narrativo-ficcional. Os narradores do século XX (não confundi-los jamais com os narradores épicos), narradores do caos vivencial do homem em transição, secular e milenar, exigiram, para si mesmos (e para os pósteros) uma renovada forma de expressão literária/ficcional (sem absolutismo), que os representasse, orientando-os para uma não-convencionada atitude ante as regras imperialistas, cerceadoras, do mundo moderno. Por exemplo, neste romance de Rogel Samuel, esta idéia de uma renovada literatura ficcional já se revela sublinearmente. Senão, vejamos:

 

No quarto dia não apareceram.

 

O rio era um deserto. Eu não tinha conseguido, na loucura do dia anterior, a plenitude daquilo que, há tempo, em mim, era só desejo impulso obscuro e sem nome: eu tinha arriscado a vida. Tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade, o que valia a pena, o que valia a vida, na equivalência surpreendente torcionária ─ a vida não é de caminhos retos ─, mas na iniciação às Parcas, esboço de serpentes, nome de demônio. Minha verdade. Tampo do tempo. Última verdade a ser implantada, cabeça a dentro, no elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva imaginação do terror e da violência ─ amá-las para mim seria desmistificar: As meninas fugidias, no mais rápido do ato, no átimo, não as pude pegar, na desiderabilidade do aceno, do acerto de contas.[i]

 

“O rio era um deserto”. Penso, extratexto narrativo, o que esta informação ficcional rogeliana quer dizer, ou seja, não havia como transformar em palavras as íntimas lembranças. No entanto, existia o desejo, “um impulso obscuro e sem nome” de oferecer “plenitude” aos pensamentos diferenciados. O narrador-personagem “tinha arriscado a vida” para, enfim, dar forma ficcional às suas lembranças.  Ele “tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade”. O que seria esta verdade? Seria uma verdade deleuziana?

O que seria a verdade do narrador-personagem de Rogel Samuel. Seria aquela imposta pelas anteriores regras ficcionais, substanciais, regras essas que tanto incomodaram o escritor Alain Robbe-Grillet, Jules Deleuze, Michel Foucault e outros, em meados do século XX, regras imperialistas, preconceituosas, que impunham ao escritor um modelo, à moda de grandes romances do passado, modelo este para o qual o jovem escritor deveria manter os olhos voltados, como afirmou Robbe-Grillet? Ou tal personagem-narrador-inovador deveria buscar sua verdade no fundo do poço dos juízos de descoberta (Bachelard), distanciado das regras ficcionais substanciais de seu momento-histórico e encarregar-se por sua vez de lutar titanicamente com as palavras diferenciadas, originárias de novíssimos princípios e restritas ao alargadíssimo imaginário-em-aberto do repouso fervilhante do escritor?

Os fundamentos substanciais daquelas regras anteriores ao pós-modernismo, se as penso pela ótica de Gianni Vattimo[ii], àquela época, não poderiam ser criticados e, muito menos, reformulados, ou mesmo refundamentados, pois eram fundamentos considerados absolutos, consagrados, inquestionáveis. Assim, a ficção do século XX final, entrópica, sinalizou-se como a ficção do não-fundamento. Aqui, repenso aquela informação perfeita, artística, sucinta de Rogel Samuel, citada páginas atrás: “Como nessa matéria nada é absoluto”. Esta afirmação endossa o meu texto reflexivo-interpretativo, sobre o diferenciado narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, o narrador-personagem Ribamar de Sousa de Rogel Samuel, este meu texto teórico-interpretativo, conscientemente fragilizado, porque se coloca conscientemente como pioneiro, e que, certamente, sofrerá repetidas investidas, contrárias, das hostes intelectuais, brasileiras ou não, proprietárias das eternas verdades teórico-críticas institucionalizadas.

Contudo, voltando à ficção do século XX, nitidamente entrópica, reafirmo, pela minha própria forma de entender o pensamento de Gianni Vattimo, que esta se sinalizou como a ficção do não-fundamento. Os ficcionistas-criadores de uns anos para cá não instituíram os chamados fundamentos corretos, não estabeleceram verdades absolutas, negaram uma disposição e distribuição do fazer narrativo pelo modelo tradicional, desenvolveram um diferenciado exame da realidade de suas propostas ficcionais. Esses ficcionistas do século XX, extremamente não-convencionais, procuraram uma adequação ao estado entrópico de suas realidades existenciais. Já que não possuíam mais a confiança e firmeza do substancialmente instituído, valeram-se de suas dúvidas diárias, vazias, desenvolvendo gradativamente suas lutas titânicas com as palavras ainda não-substancialmente formalizadas.

A verdade do narrador-personagem Ribamar de Sousa, foi o estabelecimento da não-verdade do criador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração Rogel Samuel, pois este não possuía um fundamento histórico sobre os Numas, substancial, confiável ─ em virtude de ser o escritor originário de uma criação social preconceituosa ─ para se posicionar sobre o problema da homossexualidade (masculina) nas hostes indígenas. (Esta minha particular expressão teórico-crítica é válida ─ “segunda geração” ─, porque a primeira fase, também entrópica, da escritura ficcional pós-moderna/pós-modernista de Primeira Geração é totalmente diferenciada da segunda fase, ou seja, desta fase criativa deste escritor aqui considerado).

Mas, o que é a verdade rogeliana? A anterior verdade instituída, sobre “coisa” de difícil explicação, apresentada sublinearmente pelo narrador-personagem Ribamar de Sousa, já fora asfixiada pelo “rio deserto” (plano sem palavras conceituais, amorfo), inserido na fábula númica do escritor amazonense. O momento sócio-existencial de sua realidade próxima ainda não estava a permitir-lhe novos fundamentos ficcionais. A entropia narrativa, à moda da primeira fase pós-modernista, ainda teria de se fazer presente em seu relato. Entretanto, mesmo repudiando as preconceituosas “verdades” instituídas e se debatendo em uma realidade enrolada e espetacularmente diversificada, o ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conformou um outro rumo ou nova sondagem para explicitar a sua verdade ficcional. E esta nova conformação respaldou-se na incerteza da própria conformação, na luta constante para se chegar a um bom termo explicativo-narrativo-ficcional.





[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 34 - 35.


[ii] Cf.: VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo hermenêutico na Cultura Pós-Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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