Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Aproprio-me
da citação nietzschiana, via Bachelard, para compreender este parágrafo de
Rogel Samuel.
As águas correm desde o sem
princípio das partes íntimas da narrativa animal sob as árvores de 70 metros de
altura; as águas vêm dos desconhecidos lugares da origem Numa; são águas da
sobrevivência, são esquecidas e passam. Frias. Se perdem. Perigo; atroz. A
princípio não se podem delimitar com precisão, onde as terras dos Numas, onde
as do Seringal Manixi. Depois se vêem. Se sentem. No cheiro. Raras, marcas,
macias. A flecha especada no talo da árvore, atravessa a picada, a vermelha. O
galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do
eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os
Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites.
Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta.[i]
É preciso
adivinhar o pintor para compreender a imagem, afirmou Nietzsche, e
Bachelard referendou-o. E se Marie Bonaparte, endossada também por Gaston
Bachelard, “descobriu” “a principal razão psicológica” da “tonalidade profunda
do devaneio criador” dos contos de Edgard Alan Poe, porque não poderia agir da
mesma forma, esta analista e ao mesmo tempo fenomenóloga tupiniquim, ao
dialogar com o texto diferenciado de Rogel Samuel? Assim como Edgard Poe, Rogel
Samuel é fiel às lembranças imperecíveis. E por que não repensar também algumas
idéias de Michel Foucault, reveladas à França e ao mundo lá pelos idos dos anos
de 1970, ainda atuantes por aqui, nestas plagas também tupiniquins, nestes anos
iniciais do Terceiro Milênio.
Vivemos um momento em que a
função do intelectual específico deve ser reelaborada. Não abandonada, apesar
da nostalgia de alguns pelos grandes intelectuais “universais” (dizem:
“precisamos de uma filosofia, de uma visão de mundo”). Basta pensar nos
resultados importantes obtidos com relação à psiquiatria, que provam que essas
lutas locais e específicas não foram um erro, nem levaram a um impasse. Pode-se
mesmo dizer que o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais
importante, na medida em que, quer queira quer não, ele é obrigado a assumir
responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático,
farmacologista, etc. Seria perigoso desqualificá-lo em sua relação específica
com um saber local, sob pretexto de que se trata de um problema de
especialistas que não interessa às massas (...) ou de que ele serve aos
interesses do Capital e do Estado (...) ou ainda de que ele veicula uma
ideologia cientificista (...).[ii]
Muito antes
de Michel Foucault, Bachelard compreendeu que “a função do intelectual
específico” deveria “ser reelaborada” e “não abandonada”. Apenas, como
referencial comparativo, me vejo na obrigação de colocar, aqui, as afirmativas
de Bachelard sobre um assunto, teórico, que esteve a incomodar os intelectuais
europeus, ao longo do século XX, e que, infelizmente, continua a pressionar os
intelectuais brasileiros, os quais, como se evidencia, estiveram e estão ainda
presos nas malhas das antigas teorias estrangeiras. As antigas orientações da
teoria literária estão hoje misturadas, graças ao processo globalizante da
atualidade, às novas teorias literárias que por aqui aportaram no final do
século XX e princípio deste. Resguardados por esse entrançar de teorias
literárias díspares, os mestres e professores universitários deste lado de cá
do Atlântico, e aqui, nestas minhas paragens, se digladiam, cada qual querendo
impor a sua verdade analítico-interpretativa, em se tratando de literatura,
seja ela brasileira ou estrangeira. Neste meio intelectual tupiniquim, como
leitora-intérprete, da obra O Amante das Amazonas, também me afogo e me
debato em diversas teorias, movendo-me “nas igualmente imaginárias áreas do Rio
Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais”, ou seja, nestas “águas” admiráveis
recriadas pelo poder ficcional de Rogel Samuel.
Assim e por
causa disto, relembro os dizeres de Gaston Bachelard sobre o assunto que ora me
movimenta, apenas para referendar a anterior citação de autoria de Michel
Foucault:
Compreendi o
valor dos novos processos de leitura fornecidos pelo conjunto das
novas escolas psicológicas. Quando se lê uma obra com esses novos meios de
análise, participa-se de sublimações muito variadas que aceitam imagens
distantes e que dão impulso à imaginação em múltiplos caminhos. A crítica
literária clássica entrava esse impulso divergente. Em suas pretensões a um
conhecimento psicológico instintivo, a uma intuição psicológica nativa, que não
se aprende, ela remete as obras literárias a uma experiência psicológica
obsoleta, a uma experiência repisada, a uma experiência fechada.[iii]
Exatamente.
Esta intelectual tupiniquim encarrega-se, aqui, nestas reflexões sobre a obra
de Rogel Samuel, de responsabilidades perigosamente político-interpretativas,
ou que poderão ser interpretadas, algures, assim. A questão homossexual,
levantada pelo narrador-personagem de O Amante das Amazonas não é “um
problema só de especialistas”, é uma questão ainda camuflada nos meios
sócio-familiares brasileiros e que interessa a todos, sem distinção sexual ou
de classe. É um problema que está longe de servir aos interesses do Capital e
do Estado, não veicula uma ideologia cientificista, mas exige que seja revisto,
por ângulos mais conscienciosos e sem interferências preconceituosas. As
“águas” dessas lembranças míticas do narrador-personagem de Rogel Samuel
“correm desde o sem princípio das partes íntimas” de sua narrativa.
Anteriormente, em períodos literários do passado, a proposta de “princípio”
narrativo estava submetida à força das “árvores de 70 metros de altura”,
frondosas “árvores” conceituais, dominadoras, cerceadoras de um novo princípio
narrativo. Tais “árvores” conceituais estavam/estão, talvez estarão ainda a
impedir uma novíssima ultrapassagem verbal ─ ficcional ou paraliterária ─
contra as tradicionais seculares instituições preconceituosas de como se
apresentar ao mundo. Urgia plantar outras, mais condizentes com a realidade do
final do século XX. Necessita-se plantar outras mais harmônicas com este início
de século XXI.
As “águas”
(as lembranças imperecíveis do narrador) provêem “dos desconhecidos lugares da
origem Numa”, uma tribo desconhecida geograficamente e que ficou à margem da
história do Amazonas, por exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios
audazes, só se perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à
força física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa
tribo diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem Numa
ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas friamente ao
esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento, porque foram interditadas
vergonhosamente pelo anterior regime patriarcal. Foram/são esquecidas e
passaram/passam, porque, se íntimas, representaram/representam “perigo”,
se fossem/se forem verbalizadas.
Essas
“águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, são especiais, porque
provêem do devaneio interno de quem narra. O narrador rogeliano Ribamar de
Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da
matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor.
Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso
fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de
que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.[iv]
O galho quebrado diz: “Não
passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa.
Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam,
avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus
próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta.[v]
“O galho
quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda
permissão para que se infringisse/infrinja as leis preconceituosas que
comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a
passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar, deste lado”. A
imaginação rogeliana, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do
devaneio criador”[vi], pois
ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas leituras
foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do
eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do
não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional,
porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças
imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um
assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
A genealogia é cinza; ela é
meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos
embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.
Paul Rée se engana, como os
ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a
história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras
tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica;
como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões,
lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável
demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade
monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como
não possuindo história ─ os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos;
apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para
reencontrar as diferentes cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até
definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram.
A genealogia exige,
portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige
paciência. Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de
“grandes erros benfazejos” mas de “pequenas verdades inaparentes estabelecidas
por um método severo”. Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia
não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de
toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se
opõe à pesquisa da “origem”.[vii]
[iv] Cf.: BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração. Trad. de Marcelo Coelho. 1.
edição brasileira. São Paulo: Ática, 1988.
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