quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
Aproprio-me da citação nietzschiana, via Bachelard, para compreender este parágrafo de Rogel Samuel.
 
As águas correm desde o sem princípio das partes íntimas da narrativa animal sob as árvores de 70 metros de altura; as águas vêm dos desconhecidos lugares da origem Numa; são águas da sobrevivência, são esquecidas e passam. Frias. Se perdem. Perigo; atroz. A princípio não se podem delimitar com precisão, onde as terras dos Numas, onde as do Seringal Manixi. Depois se vêem. Se sentem. No cheiro. Raras, marcas, macias. A flecha especada no talo da árvore, atravessa a picada, a vermelha. O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta.[i]
 
É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem, afirmou Nietzsche, e Bachelard referendou-o. E se Marie Bonaparte, endossada também por Gaston Bachelard, “descobriu” “a principal razão psicológica” da “tonalidade profunda do devaneio criador” dos contos de Edgard Alan Poe, porque não poderia agir da mesma forma, esta analista e ao mesmo tempo fenomenóloga tupiniquim, ao dialogar com o texto diferenciado de Rogel Samuel? Assim como Edgard Poe, Rogel Samuel é fiel às lembranças imperecíveis. E por que não repensar também algumas idéias de Michel Foucault, reveladas à França e ao mundo lá pelos idos dos anos de 1970, ainda atuantes por aqui, nestas plagas também tupiniquins, nestes anos iniciais do Terceiro Milênio.
 
Vivemos um momento em que a função do intelectual específico deve ser reelaborada. Não abandonada, apesar da nostalgia de alguns pelos grandes intelectuais “universais” (dizem: “precisamos de uma filosofia, de uma visão de mundo”). Basta pensar nos resultados importantes obtidos com relação à psiquiatria, que provam que essas lutas locais e específicas não foram um erro, nem levaram a um impasse. Pode-se mesmo dizer que o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais importante, na medida em que, quer queira quer não, ele é obrigado a assumir responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático, farmacologista, etc. Seria perigoso desqualificá-lo em sua relação específica com um saber local, sob pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não interessa às massas (...) ou de que ele serve aos interesses do Capital e do Estado (...) ou ainda de que ele veicula uma ideologia cientificista (...).[ii]
 
Muito antes de Michel Foucault, Bachelard compreendeu que “a função do intelectual específico” deveria “ser reelaborada” e “não abandonada”. Apenas, como referencial comparativo, me vejo na obrigação de colocar, aqui, as afirmativas de Bachelard sobre um assunto, teórico, que esteve a incomodar os intelectuais europeus, ao longo do século XX, e que, infelizmente, continua a pressionar os intelectuais brasileiros, os quais, como se evidencia, estiveram e estão ainda presos nas malhas das antigas teorias estrangeiras. As antigas orientações da teoria literária estão hoje misturadas, graças ao processo globalizante da atualidade, às novas teorias literárias que por aqui aportaram no final do século XX e princípio deste. Resguardados por esse entrançar de teorias literárias díspares, os mestres e professores universitários deste lado de cá do Atlântico, e aqui, nestas minhas paragens, se digladiam, cada qual querendo impor a sua verdade analítico-interpretativa, em se tratando de literatura, seja ela brasileira ou estrangeira. Neste meio intelectual tupiniquim, como leitora-intérprete, da obra O Amante das Amazonas, também me afogo e me debato em diversas teorias, movendo-me “nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais”, ou seja, nestas “águas” admiráveis recriadas pelo poder ficcional de Rogel Samuel.
Assim e por causa disto, relembro os dizeres de Gaston Bachelard sobre o assunto que ora me movimenta, apenas para referendar a anterior citação de autoria de Michel Foucault:
 
Compreendi o valor dos novos processos de leitura fornecidos pelo conjunto das novas escolas psicológicas. Quando se lê uma obra com esses novos meios de análise, participa-se de sublimações muito variadas que aceitam imagens distantes e que dão impulso à imaginação em múltiplos caminhos. A crítica literária clássica entrava esse impulso divergente. Em suas pretensões a um conhecimento psicológico instintivo, a uma intuição psicológica nativa, que não se aprende, ela remete as obras literárias a uma experiência psicológica obsoleta, a uma experiência repisada, a uma experiência fechada.[iii]
 
Exatamente. Esta intelectual tupiniquim encarrega-se, aqui, nestas reflexões sobre a obra de Rogel Samuel, de responsabilidades perigosamente político-interpretativas, ou que poderão ser interpretadas, algures, assim. A questão homossexual, levantada pelo narrador-personagem de O Amante das Amazonas não é “um problema só de especialistas”, é uma questão ainda camuflada nos meios sócio-familiares brasileiros e que interessa a todos, sem distinção sexual ou de classe. É um problema que está longe de servir aos interesses do Capital e do Estado, não veicula uma ideologia cientificista, mas exige que seja revisto, por ângulos mais conscienciosos e sem interferências preconceituosas. As “águas” dessas lembranças míticas do narrador-personagem de Rogel Samuel “correm desde o sem princípio das partes íntimas” de sua narrativa. Anteriormente, em períodos literários do passado, a proposta de “princípio” narrativo estava submetida à força das “árvores de 70 metros de altura”, frondosas “árvores” conceituais, dominadoras, cerceadoras de um novo princípio narrativo. Tais “árvores” conceituais estavam/estão, talvez estarão ainda a impedir uma novíssima ultrapassagem verbal ─ ficcional ou paraliterária ─ contra as tradicionais seculares instituições preconceituosas de como se apresentar ao mundo. Urgia plantar outras, mais condizentes com a realidade do final do século XX. Necessita-se plantar outras mais harmônicas com este início de século XXI.
As “águas” (as lembranças imperecíveis do narrador) provêem “dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios audazes, só se perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa tribo diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento, porque foram interditadas vergonhosamente pelo anterior regime patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas, representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, são especiais, porque provêem do devaneio interno de quem narra. O narrador rogeliano Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor. Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.[iv]
 
O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta.[v]
 
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis preconceituosas que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar, deste lado”. A imaginação rogeliana, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador”[vi], pois ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
 
A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.
 
Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram.
 
A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas de “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem”.[vii]


[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 23.
[ii] FOUCAULT, Michel, 1990: 12.
[iii] BACHELARD, 1998: 60 - 61.
[iv] Cf.: BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração. Trad. de Marcelo Coelho. 1. edição brasileira. São Paulo: Ática, 1988.
[v] SAMUEL, Rogel, 2005: 23.
[vi] BACHELARD, 1998: 47.
[vii] FOUCAULT, Michel, 1990: 15 - 16.

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