Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo
Tal é a ironia daqueles
esforços feitos afim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tornar
mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada
história ─ em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais
(vários povos desapareceram ali, nos critérios de uma singular estética do capital,
nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno.[i]
(─ “Assim é o látex”, dizia
ele [Pierre Bataillon] ─ “elástico como o caráter. E é por isso que sai
daquelas árvores como coisa fundamental e gomosa, como os líquidos viscosos sob
a casca do corpo, o pus, o plasma aquoso branco, a goma, a seiva selvagem do
muco que faz sangrar a floresta pegajosamente ─ é assim a seringa: o sangue da
Amazônia que colhemos como um estranho mal e que um dia teremos de pagar muito
caro”)[ii]
Quem se
encarregará das diversas mortes? Quem se encarregará de denunciar essas mortes?
As lembranças da “fresta negra” e dos vorazes, famintos, “ratos” (os quais
engordaram aos custos de muitas vidas que pereceram ingloriamente), repito, as
lembranças desses ratos da página 89, capítulo oito, ainda estão
estimulantes, cálidas, roedoras, em meu íntimo reflexivo-interpretativo.
E os diversos mortos da ficção rogeliana? Não posso, racionalmente, “confiar”
“ao túmulo ou à pira” os personagens que irão morrer, a começar dali, daquele
místico capítulo TRÊS:
NUMAS, ou seja,
a partir desta “travessia” rogeliana/carontiana impecavelmente
instigante. Assim como o narrador Ribamar de Sousa e o personagem Pierre
Bataillon, terei de me camuflar também em Caronte/Intérprete; terei de atravessar
o significado do rio infernal, deste Igarapé do Inferno à moda
rogeliana, e me apropriar de todas as lendas desta fúnebre travessia, para
enfim compreender o que este diferente autor amazonense quis revelar aos seus
leitores, tanto os do presente quanto os do futuro, nestas suas páginas
diferenciadas.
O(s)
narrador(es) rogeliano(s) atravessou/ (atravessaram) a terra (dimensão
histórica), atravessou/(atravessaram) o fogo (fogo real e fogo mítico), e agora
sua(s) alma(s) chegou/(chegaram) “à beira d’água” dos pensamentos eternais. A
imaginação dilatada do escritor, enquanto predisposição material ─ a escrita
ficcional ─ necessitou “que a água [tivesse] sua parte na morte; ela
[teve] necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte”, das
diversas mortes sub-anunciadas na frase “pelos limites imprecisos da morte”,
denunciando “os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais”
aquáticos, nitidamente resguardados nas lembranças imperecíveis do escritor.
“Oh, ruturas!” Oh, rogeliano relato! Quantos inocentes foram tragados pelo Rio
das Mortes localizado na Floresta Imensurável do Estado do Amazonas, próximo à
cidade de Manaus? O fatídico Rio Urubu. Algum amazonense se recorda dele? Eu me
recordo, porque morei em Manaus em 1996. Eu conheci este rio da morte, repleto
de perigos inimagináveis, o rio-túmulo de muitos náufragos, os quais no passado
não puderam se salvar dos grandes acidentes fluviais e pereceram por obra e
graça de piranhas vorazes. Por tal necessidade, e a partir da profunda
imaginação rogeliana, visualiza-se, aqui, um Caronte mítico travestido em
personagem ficcional, o Pierre Bataillon.
Bachelard
diz:
A função de um
simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é
quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte. Por mais que atravesse um
simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é o guardião de um
mistério.[iii]
Então, quem é
este Pierre Bataillon (aquele que tem consciência de que “um dia” pagará “muito
caro” por retirar da Amazônia o seu “sangue” precioso), enquanto
“barqueiro-guardião de um mistério”? Seria ele o Caronte/Guardião das antigas
verdades impenetráveis e impublicáveis, ou o Caronte/Guardião das diversas
mortes ficcionais que estão a se avizinhar ao longo da narrativa de Rogel
Samuel? Por que o “simbolismo de
Caronte” apareceu nestas páginas rogelianas? Por que o narrador-personagem diz
que “entre o Seringal e os Numas não havia canal”? E por que havia “entre a
tropa de guerra [tropa de guerra de Pierre Bataillon: os Caxinauás
domesticados] e a floresta dos Numas, uma reciprocidade tática de respeito e de
raivas”?
Para que eu
possa responder aos meus questionamentos interativos, os quais direcionam esta
reflexão teórico-interpretativa, terei de compreender o simbolismo do além
narrativo, ou extra-ficcional, destas páginas de Rogel Samuel. E
para evitar complexas e desavisadas argumentações contrárias, e possíveis
rejeições teóricas (evidentemente, de meus pares), recorro novamente à
filosofia de Gaston Bachelard:
Tudo quanto a
morte tem de pesado, de lento, é igualmente marcado pela figura de Caronte. As
barcas carregadas de almas estão sempre a ponto de soçobrar. Espantosa imagem
onde se sente que a Morte teme morrer, onde o afogado teme ainda o naufrágio! A
morte é uma viagem que nunca acaba, é uma perspectiva infinita de perigos. Se o
peso que sobrecarrega a barca é tão grande, é porque as almas são culpadas. A
barca de Caronte vai sempre aos infernos. Não existe barqueiro da ventura.[iv]
A barca do
Caronte/Narrador Ribamar de Sousa vai singrando desafiadoramente em direção ao
Igarapé do Inferno. Que é o Igarapé do Inferno? Seria o rio/“Inferno” de Dante
Alighieri localizado no Amazonas? Seria um rio-Inferninho localizado nos
limites do fim do mundo da floresta amazonense? Uma região do deus-me-livre
onde nenhum humano conseguiu colocar os pés, a não ser o personagem ficcional
Pierre Bataillon e sua família, os seus subordinados brancos, caboclos, bugres
e índios, acrescentando o contra-ponto das visitas esporádicas de Frei Lothar,
representante de uma religiosidade cristã há muito afastada das primitivas leis
disciplinatórias da Igreja de Cristo?
De acordo com
a minha assertiva anterior, o Caronte/Pierre Bataillon (assim como o Ribamar de
Sousa) é o barqueiro-guardião do mistério númico rogeliano. Para solucioná-lo,
Pierre Bataillon (acompanhado pelo narrador Ribamar de Sousa, momentaneamente
atingido pelos valores do inconsciente do narrador principal) avançou
“na parte mais secreta da floresta”, penetrou a região dos Numas, de barco
(imaginário que seja), costeou “os limites imprecisos da morte”, ofereceu
miçangas e outros objetos aos Numas e estes não aceitaram a oferenda (ritual
mítico-religioso), e, assim, os Numas continuaram Numes (seres
espiritualizados), e Pierre, apesar da recusa numística, postou-se
poderosamente humanizado, tornou-se o guardião de um mistério concernente ao
homem da floresta ─ o índio, o retirante nordestino, o caboclo e o bugre ─
enquanto personalidade ativada.
Então, vou ao
mistério: Pierre Bataillon dominava o homem da floresta (o povo silvícola
subjugado residente no Manixi), mas não pode dominar os Numas enquanto seres
espiritualizados. E eis a pergunta a incomodar a História do grandioso
Amazonas, a História do imenso Brasil, a incomodar principalmente o(s)
narrador(es) de Rogel Samuel: Como um pequenino estrangeiro europeu, pode
dominar a nação Caxinauá (nação silvícola brasileira) e não conseguiu dominar
os Numas/Numes (espaço universal)? “Entre a tropa de guerra [os
Caxinauás domesticados de Pierre Bataillon] e a floresta dos Numas se
estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”. A “tropa de
guerra” já não possuía a floresta como lar, seus componentes, os Caxinauás
domesticados, submissos a um tirano pré-capitalista, eram a milícia da
“floresta”/prisão de Pierre Bataillon. “Os Numas, não”. Os voluntariosos Numas
ainda tinham a Floresta do Fim do Mundo como lar, pois eram livres. Por tais
motivos, não havia canal entre o Manixi social e os Numas/Numes,
enquanto dimensões substanciais diferentes, alternadas e não compatibilizadas.
Se à água se
associam tão fortemente todos os intermináveis devaneios do destino funesto, da
morte, do suicídio, não é de admirar seja a água, para tantas almas, o elemento
melancólico por excelência. (...). A água melancolizante preside a obras
inteiras, como as de Rodenbach e Poe. A melancolia de Edgar Poe não provém de
uma felicidade desvanecida, de uma paixão ardente que a vida queimou. Decorre,
diretamente, da infelicidade dissolvida. Sua melancolia é verdadeiramente
substancial. (...). Também Lamartine sabia que, em suas tempestades, a água era
um elemento sofredor. Instalado junto ao lago de Genebra, enquanto as ondas
arrojavam espumas sob sua janela, ele escreve: “Nunca estudei tanto os
murmúrios, as queixas, as cóleras, as torturas, os gemidos e as ondulações das
águas como durante essas noites e esses dias passados sozinho na companhia
monótona de um lago. Eu teria feito um poema das águas sem omitir a menor
nota.” [Nota de Gaston Bachelard, op. cit., no 28, Lamartine, Confidences,
p. 306.][v]
Quando o
coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas: “Mergulhei
minha taça de prata dourada na fonte que borbulhava; ela se encheu de
lágrimas.” [Nota de Gaston Bachelard, op. cit., no 29, Edgar Quinet,
Ahasvérus, p. 161.][vi]
Eis aí o
espaço da ficção rogeliana traduzido como a barca de Caronte a carregar o
“coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história
sócio-pessoal. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de
Edgar Alan Poe, que preside a obra de Rogel Samuel; é antes de tudo a
atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou
a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual. O escritor, em sua ativada
solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado de
seu lugar de origem, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade
histórica de seu Amazonas, o lugar de seu nascimento e de seu conhecimento de
vida. Eis aí a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente em direção a
um espaço ensoberbecido ─ o Manixi ─ e ao seu rio da morte, o Igarapé do
Inferno.
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