Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo
Entre os
moradores do Manixi, “além de Maria Caxinauá, morava o bugre Paxiúba”, o
detentor de uma das poderosíssimas chaves para se penetrar no
entrilhamento da floresta mítico-substancial desta narrativa ficcional do
escritor Rogel Samuel. Sobre Paxiúba, não obstante o anterior capítulo VI, a
ele dedicado, há ainda muito a se examinar, analítica e reflexivamente.
Entretanto, por agora, move-me um interesse maior em refletir os papeis
femininos da índia maacu Ivete (belíssima) e de Maria Caxinauá (a figura da
morte), nas páginas desta entrançada rede de conhecimento, que é este romance
de Rogel Samuel. Assim, digressivamente, estarei ocupada em reconhecer os
desempenhos ficcionais destas importantes personagens femininas, neste romance
aqui dignificado.
E eis a maacu
Ivete se aproximando do advogado Antônio Ferreira, “agente e sucessor dos
negócios” do sogro, no momento, fazendo-se convidar para o almoço no Palácio,
uma vez que fora visitar Pierre Bataillon com a intenção de propor-lhe a compra
do Manixi:
Bruscamente,
incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte ─
alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge,
aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, quase
nua, envolta num manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. Ela
traz, redonda, espelhada nas mãos, como se fosse o próprio sol, uma bandeja de
prata dourada, incandescente, impossível de ver, milhares de megatons acima do
suportável, o serviço de café e licor, de bacará rosado ─ um choque, Ferreira
fecha os olhos cego pelo relâmpago de diamante, e ela deposita a bandeja na sua
frente, quase no seu colo, sobre uma mesinha de mármore brecha vermelho
plantada ali sobre um tripé de ferro floreado, feminino, num gesto da oferenda
de simbolismo francês, um ramo de musácea, exótica estrelícia de lá, de pétalas
retas em forma de pássaros comprimidas em cristas laranjas de inspiração
art-nouveau, viva e em cima da felicidade equilibrada entre impulsos elegantes,
entre sutis meditações do nó, do sarugaku acrobático, aéreo ─ Ferreira está
tonto e não consegue compreender a mais bela das mulheres, das amazonas maacu,
bronze puro, Diana saída do Teatro Amazonas, visão adocicada das delícias na
suntuosidade do panorama, e no contágio, no inebriante que recende a romã, a
inhamuí, a panquilé, que deve ter saído do banho de rosas, cabelos na fragância
do vento, força, paixão, limpeza e puro amor de um ser jovem, de vinte anos,
que irradia viço, brilho, poder, Ferreira a vê da cadeira de palhinha, baixa, a
força, a selvagem cor daquelas pernas longas.
O almoço fora servido por
Maria Caxinauá, a índia parecia velha como a floresta. A fresca maacu [Ivete]
expõe seus braços à imaginação do olhar. A seda acentua e escorrega como cola
gosmenta. Naquela hora tudo escorre. Morna, preguiçosa, sensual. O igarapé
esmalta em velocidade invisível, na passagem oleosa. Chama-se “igarapé” por
economia geográfica, por seus estreitamentos, sua foz escondida entre duas
grandes samaúmas. “Do inferno”, significa “dos Numas”, de onde vem, do leite do
látex e dos índios. A concentrada riqueza.[i]
“Bruscamente”,
brilhantemente valorizada, aparece Ivete a copeira do Palácio, a índia maacu.
Ela aparece em todo o seu esplendor jovial para se contrapor à figura
desprotegida, rebaixada, da índia Maria Caxinauá, uma personagem feminina
marcada pelo sofrimento de seu povo. A deslumbrante índia Ivete não pertence à
linhagem dos Caxinauás, ela representa a beleza selvagem de uma outra etnia,
dispersada atualmente por algumas regiões do Amazonas ─ Alto Rio Negro,
Yauareté, Pari Cachoeira, Papuri, Tiquié e outras localidades adjacentes ─
conhecida hoje como Macu-Hupdah (Macu- Yuhupdeh ou Uaupés-Japurá ou Nadahup).
Por que uma representante feminina dos índios Maacus aparece divinizada, nesta
narrativa de Rogel Samuel, se todos os índios do Seringal são escravos de
Pierre Bataillon? A designação tribal Macu, segundo informes indígenas, quer
dizer “bichos”, ou índios que falam uma língua até bem pouco tempo ágrafa (um
dialeto indígena colombiano). Possivelmente, a maacu Ivete se encontra ali como
simples serviçal do Palácio Manixi, e não como plenipotenciária de tribos
espoliadas. Ou, os Maacus, assim como os Caxinauás, foram/são escravos do
Coronel, mas, por obra e graça do Destino Grego, a maacu Ivete conseguiu, com o
seu belo semblante mítico e suas telúricas formas, fintar seu adversário? Seria
porque os Maacus também são originários das mitologizantes e iluminadas
reservas colombianas de pescadores indígenas, indígenas estes que em outros
tempos se posicionaram como culturalmente nômades? A maacu Ivete (uma índia
nômade?) possui um porte nobre. É uma “deusa” naquele fabuloso recinto. Os
Palácios míticos grandiosos, por exigências históricas, foram/são moradias de
deuses ou de demônios. Ou moradas de culpados espíritos vagantes. A índia maacu
Ivete por enquanto é uma das deusas do séqüito do supremo caudilho-mandatário
Pierre Bataillon, no momento personagem mitificado. Ivete é uma deusa solar à
moda das silvícolas antilhanas, reinando em cenário europeizado, mas, não será
para sempre. A índia Maria Caxinauá também já foi uma entre as muitas beldades
imensuráveis desta dimensão extra-real, apenas, por um triste motivo
inafiançável, caiu em desgraça, envelheceu precocemente, e perdeu o brilho.
Entretanto, as duas índias representam um drama: “o drama do dia e da noite”,
se me vejo aqui às voltas com as inferências filosóficas de Gaston Bachelard.
Todos os heróis são solares;
todos os deuses são deuses da luz. Todos os mitos contam a mesma história: o
triunfo do dia sobre a noite. (...).
Na teoria mítica de Ploix
[Nota de Gaston Bachelard: Charles Ploix, La nature et lês dieux), todos
os deuses, mesmo os que vivem sob a terra, porque são deuses receberão uma
auréola; virão, ainda que por um dia, ainda que por uma hora, participar da
alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante.[ii]
O instante
narrativo do narrador de Rogel Samuel, por ora, exige o aparato do brilho
mítico. A maacu Ivete, a copeira da bandeja de prata incandescente, como deusa
propensa a reinar em todos os elementos, recebeu uma alegre “auréola”
temporária, e uma ígnea matéria (temporariamente apaziguada, não letal), para
iluminar um trecho da narrativa, repleta de sofrimentos históricos. Ela
irrompeu “com fúria e fulgor”, exigindo para si um contraponto, apenas para
realçar aviltadamente a figura lunar de Maria Caxinauá. Todas as palavras do
parágrafo, valorizando a índia Ivete e valorizando o ambiente sexualizado,
foram “pescadas” cuidadosamente dos míticos rios diurnos, com suas águas
ensolaradas, porque, a noturna figura feminina, principal, há muito, já caíra
em ostracismo, já habitava a “meia-noite psíquica” do escritor, necessitando,
por tal motivo, de um sol extraordinário que a iluminasse. A maacu Ivete foi
instada, no trecho narrativo, a ser esse sol, foi convidada a “participar da
alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante”. O dia estava
aprazível, magnífico, e Antônio Ferreira, o comensal solicitado para o régio
almoço de Bataillon, merecia, no ato, uma visão/aparição fulgorosa. Foi então
que a índia Ivete apareceu. Não é o fogo mítico um sinal de transformação
narrativa? O sol não é, portanto, um poderoso símbolo do fogo mitificado? “O
igarapé esmalta em velocidade invisível”, porque o Sol, “o Febo no horizonte”,
está ali, naquele momento, a iluminar-lhe.
E eis a índia
Maria Caxinauá, o contraponto infelicitado da maacu Ivete, se aproximando, como
se fosse uma personagem das trevas, para servir o almoço ao convidado Antônio
Ferreira:
Lentamente a porta se abriu
e a Caxinauá apareceu. (...).
Os ásperos, compridos
cabelos ensombravam a face com a figura da morte as pupilas eram dadas por
incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele
bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul,
rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num
hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o
Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que
perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era
uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo,
desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da
gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si
mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a
Inimiga. Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão
inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os
torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados,
desculturados se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria
Caxinauá.[iii]
A Lua, em
qualquer de suas aparições semanais, insólita, noturna e representativa de mistério,
poderá ser refletida como “a figura da morte”. Não é a Maria Caxinauá a “figura
da morte”? Não é a noturna Lua que tem suas fases distintas, às vezes se
esconde, às vezes aparece pela metade, outras vezes, revela-se em todo o seu
esplendor, quando iluminada inteiramente pelo diurno Sol? Não são suas pupilas,
digo, as pupilas de Maria Caxinauá (“dadas por incompreensível aura branca”)
referentes lunares? Não é a Lua o signo inconteste dos lunáticos? Maria
Caxinauá, por ventura, não poderá ser interpretada como referencial
mítico-lunar? Não é a assombrada noite, dignificada pela Lua Cheia
principalmente, um reposteiro de ódio, medo e incontrolável pavor? Maria
Caxinauá é o símbolo do ódio reprimido das inúmeras tribos tragicamente
pacificadas por europeus, naqueles sítios amazonenses, símbolo do “exército de
massas proletárias”, originárias de todos os “índios massacrados no Brasil” (os
verdadeiros donos deste imenso país). E eis novamente a minha apreciação
teórico-reflexiva aderindo-se às “lágrimas”/palavras de Rogel Samuel: “vinte
milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de
Maria Caxinauá”[iv]. Mas,
por enquanto, surgem perguntas: Qual é o papel de Maria Caxinauá nesta
narrativa rogeliana? A representação de uma “multidão inumerável de índios
[amazonenses] massacrados”? As respostas virão em seu devido tempo.
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