quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo

 
 

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo


 

 

Entre os moradores do Manixi, “além de Maria Caxinauá, morava o bugre Paxiúba”, o detentor de uma das poderosíssimas chaves para se penetrar no entrilhamento da floresta mítico-substancial desta narrativa ficcional do escritor Rogel Samuel. Sobre Paxiúba, não obstante o anterior capítulo VI, a ele dedicado, há ainda muito a se examinar, analítica e reflexivamente. Entretanto, por agora, move-me um interesse maior em refletir os papeis femininos da índia maacu Ivete (belíssima) e de Maria Caxinauá (a figura da morte), nas páginas desta entrançada rede de conhecimento, que é este romance de Rogel Samuel. Assim, digressivamente, estarei ocupada em reconhecer os desempenhos ficcionais destas importantes personagens femininas, neste romance aqui dignificado.

E eis a maacu Ivete se aproximando do advogado Antônio Ferreira, “agente e sucessor dos negócios” do sogro, no momento, fazendo-se convidar para o almoço no Palácio, uma vez que fora visitar Pierre Bataillon com a intenção de propor-lhe a compra do Manixi:

 

Bruscamente, incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte ─ alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge, aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, quase nua, envolta num manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. Ela traz, redonda, espelhada nas mãos, como se fosse o próprio sol, uma bandeja de prata dourada, incandescente, impossível de ver, milhares de megatons acima do suportável, o serviço de café e licor, de bacará rosado ─ um choque, Ferreira fecha os olhos cego pelo relâmpago de diamante, e ela deposita a bandeja na sua frente, quase no seu colo, sobre uma mesinha de mármore brecha vermelho plantada ali sobre um tripé de ferro floreado, feminino, num gesto da oferenda de simbolismo francês, um ramo de musácea, exótica estrelícia de lá, de pétalas retas em forma de pássaros comprimidas em cristas laranjas de inspiração art-nouveau, viva e em cima da felicidade equilibrada entre impulsos elegantes, entre sutis meditações do nó, do sarugaku acrobático, aéreo ─ Ferreira está tonto e não consegue compreender a mais bela das mulheres, das amazonas maacu, bronze puro, Diana saída do Teatro Amazonas, visão adocicada das delícias na suntuosidade do panorama, e no contágio, no inebriante que recende a romã, a inhamuí, a panquilé, que deve ter saído do banho de rosas, cabelos na fragância do vento, força, paixão, limpeza e puro amor de um ser jovem, de vinte anos, que irradia viço, brilho, poder, Ferreira a vê da cadeira de palhinha, baixa, a força, a selvagem cor daquelas pernas longas.

 

O almoço fora servido por Maria Caxinauá, a índia parecia velha como a floresta. A fresca maacu [Ivete] expõe seus braços à imaginação do olhar. A seda acentua e escorrega como cola gosmenta. Naquela hora tudo escorre. Morna, preguiçosa, sensual. O igarapé esmalta em velocidade invisível, na passagem oleosa. Chama-se “igarapé” por economia geográfica, por seus estreitamentos, sua foz escondida entre duas grandes samaúmas. “Do inferno”, significa “dos Numas”, de onde vem, do leite do látex e dos índios. A concentrada riqueza.[i]

 

“Bruscamente”, brilhantemente valorizada, aparece Ivete a copeira do Palácio, a índia maacu. Ela aparece em todo o seu esplendor jovial para se contrapor à figura desprotegida, rebaixada, da índia Maria Caxinauá, uma personagem feminina marcada pelo sofrimento de seu povo. A deslumbrante índia Ivete não pertence à linhagem dos Caxinauás, ela representa a beleza selvagem de uma outra etnia, dispersada atualmente por algumas regiões do Amazonas ─ Alto Rio Negro, Yauareté, Pari Cachoeira, Papuri, Tiquié e outras localidades adjacentes ─ conhecida hoje como Macu-Hupdah (Macu- Yuhupdeh ou Uaupés-Japurá ou Nadahup). Por que uma representante feminina dos índios Maacus aparece divinizada, nesta narrativa de Rogel Samuel, se todos os índios do Seringal são escravos de Pierre Bataillon? A designação tribal Macu, segundo informes indígenas, quer dizer “bichos”, ou índios que falam uma língua até bem pouco tempo ágrafa (um dialeto indígena colombiano). Possivelmente, a maacu Ivete se encontra ali como simples serviçal do Palácio Manixi, e não como plenipotenciária de tribos espoliadas. Ou, os Maacus, assim como os Caxinauás, foram/são escravos do Coronel, mas, por obra e graça do Destino Grego, a maacu Ivete conseguiu, com o seu belo semblante mítico e suas telúricas formas, fintar seu adversário? Seria porque os Maacus também são originários das mitologizantes e iluminadas reservas colombianas de pescadores indígenas, indígenas estes que em outros tempos se posicionaram como culturalmente nômades? A maacu Ivete (uma índia nômade?) possui um porte nobre. É uma “deusa” naquele fabuloso recinto. Os Palácios míticos grandiosos, por exigências históricas, foram/são moradias de deuses ou de demônios. Ou moradas de culpados espíritos vagantes. A índia maacu Ivete por enquanto é uma das deusas do séqüito do supremo caudilho-mandatário Pierre Bataillon, no momento personagem mitificado. Ivete é uma deusa solar à moda das silvícolas antilhanas, reinando em cenário europeizado, mas, não será para sempre. A índia Maria Caxinauá também já foi uma entre as muitas beldades imensuráveis desta dimensão extra-real, apenas, por um triste motivo inafiançável, caiu em desgraça, envelheceu precocemente, e perdeu o brilho. Entretanto, as duas índias representam um drama: “o drama do dia e da noite”, se me vejo aqui às voltas com as inferências filosóficas de Gaston Bachelard.

 

Todos os heróis são solares; todos os deuses são deuses da luz. Todos os mitos contam a mesma história: o triunfo do dia sobre a noite. (...).

 

Na teoria mítica de Ploix [Nota de Gaston Bachelard: Charles Ploix, La nature et lês dieux), todos os deuses, mesmo os que vivem sob a terra, porque são deuses receberão uma auréola; virão, ainda que por um dia, ainda que por uma hora, participar da alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante.[ii]

 

O instante narrativo do narrador de Rogel Samuel, por ora, exige o aparato do brilho mítico. A maacu Ivete, a copeira da bandeja de prata incandescente, como deusa propensa a reinar em todos os elementos, recebeu uma alegre “auréola” temporária, e uma ígnea matéria (temporariamente apaziguada, não letal), para iluminar um trecho da narrativa, repleta de sofrimentos históricos. Ela irrompeu “com fúria e fulgor”, exigindo para si um contraponto, apenas para realçar aviltadamente a figura lunar de Maria Caxinauá. Todas as palavras do parágrafo, valorizando a índia Ivete e valorizando o ambiente sexualizado, foram “pescadas” cuidadosamente dos míticos rios diurnos, com suas águas ensolaradas, porque, a noturna figura feminina, principal, há muito, já caíra em ostracismo, já habitava a “meia-noite psíquica” do escritor, necessitando, por tal motivo, de um sol extraordinário que a iluminasse. A maacu Ivete foi instada, no trecho narrativo, a ser esse sol, foi convidada a “participar da alegria divina da ação diurna que é sempre uma ação brilhante”. O dia estava aprazível, magnífico, e Antônio Ferreira, o comensal solicitado para o régio almoço de Bataillon, merecia, no ato, uma visão/aparição fulgorosa. Foi então que a índia Ivete apareceu. Não é o fogo mítico um sinal de transformação narrativa? O sol não é, portanto, um poderoso símbolo do fogo mitificado? “O igarapé esmalta em velocidade invisível”, porque o Sol, “o Febo no horizonte”, está ali, naquele momento, a iluminar-lhe.

E eis a índia Maria Caxinauá, o contraponto infelicitado da maacu Ivete, se aproximando, como se fosse uma personagem das trevas, para servir o almoço ao convidado Antônio Ferreira:

 

Lentamente a porta se abriu e a Caxinauá apareceu. (...).

 

Os ásperos, compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte as pupilas eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a Inimiga. Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados, desculturados se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá.[iii]

A Lua, em qualquer de suas aparições semanais, insólita, noturna e representativa de mistério, poderá ser refletida como “a figura da morte”. Não é a Maria Caxinauá a “figura da morte”? Não é a noturna Lua que tem suas fases distintas, às vezes se esconde, às vezes aparece pela metade, outras vezes, revela-se em todo o seu esplendor, quando iluminada inteiramente pelo diurno Sol? Não são suas pupilas, digo, as pupilas de Maria Caxinauá (“dadas por incompreensível aura branca”) referentes lunares? Não é a Lua o signo inconteste dos lunáticos? Maria Caxinauá, por ventura, não poderá ser interpretada como referencial mítico-lunar? Não é a assombrada noite, dignificada pela Lua Cheia principalmente, um reposteiro de ódio, medo e incontrolável pavor? Maria Caxinauá é o símbolo do ódio reprimido das inúmeras tribos tragicamente pacificadas por europeus, naqueles sítios amazonenses, símbolo do “exército de massas proletárias”, originárias de todos os “índios massacrados no Brasil” (os verdadeiros donos deste imenso país). E eis novamente a minha apreciação teórico-reflexiva aderindo-se às “lágrimas”/palavras de Rogel Samuel: “vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá”[iv]. Mas, por enquanto, surgem perguntas: Qual é o papel de Maria Caxinauá nesta narrativa rogeliana? A representação de uma “multidão inumerável de índios [amazonenses] massacrados”? As respostas virão em seu devido tempo.



[i] Idem: 55 - 56.
[ii] BACHELARD, 1998: 160.
[iii] SAMUEL, Rogel, 2005: 69.
[iv] Ibidem.

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