Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Neuza Machado - O Igarapé do Inferno Como Limite do Fim do Mundo
A morte está nela. Evocamos
sobretudo as imagens da viagem fúnebre. A água leva para bem longe, a água
passa como os dias. Mas outro devaneio se apossa de nós e nos ensina uma perda
de nosso ser na dispersão total. Cada um dos elementos tem sua própria
dissolução: a terra tem seu pó, o fogo sua fumaça. A água dissolve mais completamente.
Ajuda-nos a morrer totalmente. Tal é, por exemplo, o voto de Fausto na cena
final do Faust de Christophe Marlowe: “Oh minha alma, transforma-te em
pequenas gotas d’água e cai no Oceano, para sempre perdida.”[i]
“A morte está
nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os
dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o
primeiro personagem-narrador, o primeiro alter ego do escritor, para se livrar
definitivamente de sua histórica dor ─ “matar” a dor que o consumia ─,
obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o
Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para
enterrar os mortos amazonenses dignamente, fossem eles índios ou brancos ou
mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra
sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não
conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que
borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o
coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse
Gaston Bachelard. A narrativa ficcional de Rogel Samuel é demonstrativa da
tristeza que o assolava, naquele momento, já residindo distante do Amazonas,
mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho”
roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua
existência, o seu velho pai/Sertão no coração. Rogel Samuel carregou o Amazonas
inteiro em seu coração; carregou todas as lágrimas que caíram em seus rios
eternais. Parodiando Fernando Pessoa, eu poderia afirmar e reafirmar também:
Oh, Rio Negro adocicado, o quanto de seu negro mel são lágrimas de Rogel!
São raças
inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas
construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre.
Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho
escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas
economias de subsistência, tragicamente transformadas em exército de massas
proletárias ─ vinte milhões de índios massacrados no Brasil (...).[ii]
A narrativa, O
Amante das Amazonas, é uma singular barca “carregada de almas”, e, a cada
página, o seu timoneiro-narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda
Geração se percebe na iminência do enfrentamento de infinitos perigos. Nela viajam
todos os antigos “mortos” atestados pelos reais relatos da sociedade
amazonense, “almas culpadas” dos inúmeros genocídios que marcaram a verdadeira
história de dominação silvícola, naquele Estado Federativo do Brasil. Nela
viajam todos os “mortos” pessoais e impessoais do escritor, os inesquecíveis
“mortos” familiares e os inomináveis “mortos” neo-reconhecidos, principalmente,
os desassombrados “mortos”, dignatários, poderosos, replenos de culpas
históricas, gerenciadores de um rico passado de prosperidade e magnificência, e
“mortes”. Eles, os “mortos” familiares e os “mortos” reconhecidos, também
repletos de indeléveis culpas patriarcais. “A morte é uma viagem que nunca
acaba, é uma perspectiva infinita de perigos. Se o peso que sobrecarrega a
barca é tão grande, é porque as almas são culpadas”, diz Gaston Bachelard. É
verdade. Há culpas político-patriarcais nesta terra histórico-ficcional (na
destruição sem retorno vital e espiritual da flora e da fauna), no fogo
sócio-ficcional e/ou mítico-ficcional (que devastou/devasta a floresta), no ar
e nos rios do Seringal Manixi (poluídos pelos males do capitalismo
sócio-substancial, dilatado, sem limites, impessoal, o capitalismo selvagem das
grandes indústrias multinacionais), além dos perigos reais e irreais que estão
por ali, insólitos, a inspecionar preconceituosamente a mítica e intrépida
nação Numa.
Mas, quem é
este personagem Pierre, o barqueiro/Caronte que por ora singra “igarapé acima,
costeando os limites imprecisos da morte”? Seria ele um dos antigos
Governadores do Amazonas? Ou, por ventura, o destemido avô Maurice Samuel,
aquela venerada figura habilidosamente heroicizada nas tradicionais reuniões festivas
da família Samuel? Ou, quem sabe, o próprio Albert Samuel (o pai
brasileiro-boliviano-judeu-francês de Rogel Samuel que falava inúmeras línguas,
inclusive, dialetos indígenas), o pai do escritor, um homem intimorato que
navegava corajosamente naqueles furos insondáveis da região amazônica,
em seu navio de nome mítico e magnificente, o navio Adamastor, de propriedade
da família Samuel. Mobilizando-me, ainda, na busca de informações sobre a
genealogia de Rogel Samuel, vou encontrar certamente uma ultra-lendária bisavó
peruana, registrando o nobre sobrenome dos Cellis da antiga Roma, nome que
chegou aos anais da família Samuel (família descendente de judeus franceses)
por via da existência de um duque espanhol, o Duque de Cellis, “uma das mais
nobres famílias de Espanha”, como o próprio escritor revela ficcionalmente, ao
distinguir a figura de Pierre Bataillon, como o dono do Seringal Manixi e como
o Conquistador da Amazônia.
Aquele homem
magro, baixo (teria 1,60m de altura), cotidianamente elegante, empertigado,
ereto, a cabeça levantada disfarçava a pequena estatura, bigodinho à Carlitos,
com quem se parecia, altivo, mas sem ridículo, altaneiro, nobre, neto do Duque
de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma,
inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas, sempre com a mulher,
D. Ifigênia Vellarde, católica, filha bastarda do nobre D. Angel Vellarde,
mulher amante da Amazônia e do seu luxo selvagem, doceira, bordadeira, nos seus
elegantes e simples vestidos de seda rosa cálido, com os dois grandes diamantes
como grossas lágrimas caindo dos lóbulos das orelhas quais espantosos
girassóis, (...), sim, era impossível conceber (...) como aquele fidalgo
engastado na floresta, cercado de todo o luxo parisiense e de seus muitos
livros, (...), como [pode se tornar] o Conquistador da Amazônia, do vasto
império de látex (...), sim, aquele homem não se desorganizava moralmente nos
seus abismos e nos seus extremos em transformar-se e sitiar-se o Seringal num
campo de concentração durante a dominação Numa.
Não,
agudissimamente obsedado, Pierre Bataillon herdara restos espirituais da monarquia
de grandes reis, admirado por nações, ou obra-prima da literatura ─ como se
esperasse o óbvio: que logo os Numas viriam prostrar-se e reverenciar o seu
supremo caráter e estilo ─ as insólitas reações daquele homem, ser qualitativo,
fora da indistinta massa humana, pertencente ao número dos que representam algo
excepcional, que ilustram o nome com a imagem interna do uso de si, ligando-se
à metafísica da criação de um super-homem singular e inscrito na atmosfera do
fantástico cotidiano.[iii]
Neste capítulo
teórico-reflexivo, sobre a obra ficcional de Rogel Samuel, não é o poder
capitalista primitivo familiar de Pierre Bataillon (aquele poder
histórico-político visto páginas atrás), que se encontra aqui em exercício
teórico-especulativo. Não. O que me movimenta analítico e fenomenologicamente é
a imagem secreta, sublimada, elevada, posicionada ao mais elevado grau do
pensamento mítico-ficcional, do barqueiro Caronte/Pierre Bataillon e/ou
Caronte/Narrador Ribamar de Sousa. Sim. Aqui, o Pierre Bataillon incorporou a
figura do lendário Barqueiro das regiões infernais, o mensageiro das tristes
notícias e timoneiro dos mortos. Mas, da mesma forma, o narrador Ribamar de
Sousa também poderá ser interpretado. Por que será?
A barca de
Caronte será assim um símbolo que permanecerá ligado à indestrutível desventura
dos homens. Atravessará as épocas de sofrimento. (...)
Em suma, o
homem do povo, o poeta ou um pintor (...) reencontram todos em seu sonho a
imagem de um guia que deve “conduzir-nos na morte”. O mito que vive sob a
mitopéia [relato inacreditável] é um mito muito simples associado a uma imagem
bem clara. Eis por que ele se mostra tão tenaz. Quando um poeta retoma a imagem
de Caronte, pensa na morte como numa viagem. Revive o mais primitivo dos
funerais.[iv]
Penso que
vale meditar o espaço sócio-substancial do Manixi rogeliano em confronto com a
outra face fabulosa do mesmo Manixi, acrescentando um juízo mais elaborado
sobre aquele estranho e longínquo Seringal Manixi e seu Igarapé do Inferno
enquanto “limite do fim do mundo” e cemitério lendário. Para tal exigente exame
analítico-fenomenológico, busco, em princípio, a dimensão verticalizante,
interativa, do Manixi ficcional:
Desçamos agora a este mundo
ignoto.
Habitavam
ali, naquela ocasião, além da índia Maria Caxinauá, do bugre caboclo Paxiúba, o
menino Mundico, e sua mãe, a cozinheira do Palácio, Isaura Botelho ─ mãe de
Benito Botelho, que morava em Manaus, levado, como já disse, por Frei Lothar e
entregue depois aos cuidados do Padre Pereira, do Internato Vassourinha. Lá
estava também eu, o ainda jovem Ribamar de Souza, que viera de Patos em busca
de seu irmão Antônio e de seu tio Genaro ─ ambos agora mortos. Também o índio
Arimoque, cujas estórias fantásticas ainda circulam até hoje pela região. João
Beleza, o coxo, e alguns homens da guarda ficavam no barracão, a certa
distância. A maacu Ivete já estava casada com Antônio Ferreira e morava em
Manaus, ─ Ferreira separado da sua Glorinha Lambisgóia, filha do Comendador
Gabriel Gonçalves da Cunha, (...)[v]
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