Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
Naquela época a Amazônia
estava mudada. A recessão era grande, mas em Rio Branco havia 250.000 cabeças
de gado, entre balcedos de murerus, aguapés e canaranas, vicejando a riqueza
entre alagados e mondongos.
Nenhuma criada estava
próxima. Foi a própria D. Mariazinha de Abreu que, levantando-se solene da
cadeira, foi atender a quem batia à sua porta.
─ Bons dias, dona ─
disse-lhe aquele caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de
dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão. O homem
tirara o chapéu para falar com ela.
─ A senhora sabe onde mora o
Seu Juca das Neves?
Quando D. Maria viu aquilo
empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava
aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social.
─ Ao lado ─ disse, e retirou-se,
vindo sentar-se diante da negra Sebastiana Vintém.
Era a senhora mais fina,
mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo,
este narrador.
E aquele homem era Ribamar
(d’Aguirre) de Sousa.[i]
Nestas últimas
linhas do capítulo ONZE:
RIBAMAR, quem se apresenta é o segundo narrador (aquele que somente
agora se manifesta, para falar sobre o primeiro). Este segundo narrador é o
verdadeiro alter ego do escritor amazonense Rogel Samuel, ou
seja, aquele que ficou incógnito nos movimentados bastidores ficcionais de O
Amante das Amazonas, enquanto o primeiro personagem-narrador Ribamar de
Sousa, representante dos oprimidos retirantes, fugitivos da seca nordestina e
escravizados por classes sociais e políticas poderosas, contava a sua própria
história: da saída de Patos, Estado de Pernambuco, ao emprego no Palácio
Manixi, em um Seringal perdido do Amazonas, como secretário particular de D.
Ifigênia Vellarde.
O primeiro
personagem-narrador, o Ribamar, por enquanto, não poderá seguir como o condutor
do relato, pela simples razão de que agora ele se postará como o personagem
principal, submetido ao olhar perscrutante do segundo e genuíno narrador
pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração.
O que ocorreu
nesta terceira fase do romance foi simples e criativo: o Narrador principal
precisou de uma nova chave para penetrar às fortificações da
Cidade e, logo a seguir, percorrê-la. Ora, este novo invólucro ficcional já não
era um espaço autenticamente mítico, portanto, as anteriores chaves já
não se encontravam disponíveis. Os “parentes” de Ribamar já estavam mortos e o
lendário bugre Paxiúba ficara temporariamente para trás. A diretriz ficcional
pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração determinou um segundo narrador
(aquele que buscou/buscará esta necessária chave, para finalizar o relato),
narrador “este” que esteve sublinearmente influente desde o início do romance.
A assertiva rogeliana “conforme o digo, este Narrador” não deixa dúvida quanto
à renovada determinação de transformação narrativa. Para o correto entendimento
do que desejo a partir daqui refletir, busco outras palavras explicativas, ou
seja, para que o Ribamar de Sousa, submetido a uma diferenciada fase de
transição, pudesse continuar atuando, agora como personagem-representante da
burguesia manauara pós-borracha, outro narrador (“este narrador”) teria de
falar por ele, mesmo que aparentemente duplicado nas linhas finais, com a
impressão ficcional de junção de ambos, como se fossem apenas um único
narrador, propiciando a despedida do primeiro.
Entretanto,
antes de minha reflexiva incursão nos bastidores sócio-políticos da cidade de
Manaus envolvendo-me, por meio do relato rogeliano, com a já aproximada ─ e
instigante ─ elevação sócio-política do neo-Ribamar de Sousa, necessito
reconhecer esta efetiva voz narrativa que se apresenta. Quem é “este” novo
narrador? Quem é “este” narrador diferenciado (que seria um personagem como
outro qualquer, como diria Roland Barthes, se eu não pensasse o contrário),
o qual, ao falar de D. Maria de Abreu e Souza, a personagem feminina que, no
momento, centraliza o capítulo, o faz com elevada ternura?
Quando se sonha com a casa
natal, na extrema profundeza do devaneio, participa-se desse calor inicial,
dessa matéria bem temperada do paraíso material. (...).
É graças à casa que um
grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa se complica
um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas
lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos
durante toda a vida, em nossos devaneios. Um psicanalista deveria, pois,
atentar para essa simples localização das lembranças. (...) de bom grado
daríamos a essa análise auxiliar da psicanálise o nome de topoanálise. A
topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa
vida íntima. Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os
personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos no
tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da
estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio
passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o vôo do tempo.
Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do
espaço.[ii]
“Quando se
sonha com a casa natal”, “participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem
temperada do paraíso material”. O início do capítulo é, com certeza, uma
saudosa declaração de amor filial a uma venerada senhora (já falecida) e, sem
dúvida, é também um retorno à casa primordial (a casa da avó) e à casa
onírica (a Cidade de Manaus). O segundo narrador, neste renovado
interregno, antes de reencontrar a “casa onírica”, sai em busca da “casa
primordial” (“sai em busca do tempo perdido”) e, por um momento, vai ao
encontro da inesquecível casa da infância e adolescência (a casa da avó
materna). O narrador deseja “suspender o vôo do tempo”, reencontrar a
“personagem” amada, a “personagem dominante”, mas não poderá ser recebido como
a um filho pródigo pela Grande Mãe, simplesmente porque sua face
ficcional se disfarça com a aparência subserviente de seu duplo. A venerada
representante da figura materna não o reconheceu. (“Quando D. Maria viu aquilo
empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava
aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social”). A Grande Mãe foi
muito cortês e ofereceu-lhe o direcionamento pedido (─ “ao lado”), mas não o
convidou a reentrar na casa primordial, porque, verdadeiramente, o alter
ego Ribamar de Sousa foi designado pelo ficcionista para substitui-lo na
recuperação gloriosa de sua outra casa inesquecível, a casa onírica, a
Cidade que, no momento, já sofria os estragos da decadência pós-borracha. Por
tal motivo, o personagem Ribamar de Sousa fez/fará a aproximação do segundo
narrador, primeiramente com a Grande Mãe (o destaque da “Casa Primordial”) e,
posteriormente, com a Grande Casa do Passado (a Cidade de Manaus), a “Casa
Onírica”, permitindo-lhe a necessária retomada, para que, páginas adiante, ele
pudesse interagir com o meio sócio-político de seu pretérito notável.
Ela ─ e eu me lembro como se
fosse hoje ─ não gostava de pintar as unhas pela manhã. Preferia pintá-las à
tarde, pois de manhã, apesar da legião de criadas, tinha sempre muito o que
fazer naquela casa. (...).
Sim ─ ela não gostava de
pintar as unhas pela manhã. D. Maria de Abreu e Souza, ainda jovem e bonita,
conforme a conheci, bela, elegante, morava na Rua Barroso, numa casa cujos
fundos davam para o Igarapé do Aterro. D. Maria ia, naquela tarde, a um
aniversário, e mandara um moleque chamar a negra Sabá para corrigir o esmalte
das unhas, e já marcara hora na Mezzodi, a cabeleireira da época.
Foi quando bateram à porta.
(...).
Nenhuma criada estava
próxima. Foi a própria D. Mariazinha de Abreu que, levantando-se solene da
cadeira, foi atender a quem batia à sua
porta.[iii]
Sobre “a casa
onírica”, diz Gaston Bachelard:
Uma casa onírica é uma imagem
que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um
simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver
na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar
conta, uma dinâmica de reconforto.[iv]
Se examinássemos o caráter
social das imagens (...). Esse exame determinaria uma outra camada das imagens,
a camada do superego. Aqui a casa é o bem da família. Ela
é encarregada de manter a família. (...) desse ponto de vista, é tanto
mais interessante por estudar a família em seu conflito de gerações entre um
pai que deixa periclitar a casa e o filho que devolve à casa solidez e luz. Em
tal caminho, vai-se substituindo aos poucos a vontade que sonha pela vontade
que pensa, pela vontade que prevê. Chega-se a um reino de imagens cada vez mais
conscientes.[v]
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