NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do
Segundo Narrador
As narrativas de acontecimento não se submetem à
delimitação do narrar tradicional. Se não há explicação para o acontecido, o
episódio será classificado como essencial para o reconhecimento da narrativa
fantástica, uma vez que o personagem-atuante Ribamar de Sousa se recuperou,
de uma forma diferenciada, diga-se de passagem, no plano das probabilidades
existenciais. O narrador rogeliano duplicado teria ainda muito o que viver,
para que, depois da aparição do bugre Paxiúba, pudesse narrar, à moda do
escritor ficcional do século XX, a decadência sócio-substancial do Amazonas, o
seu lugar de nascimento.
Entretanto, para o prosseguimento de minha reflexão
sobre o ativo exercício de escrita ficcional do primeiro narrador, logo depois
da morte dos “parentes” e da ascensão narrativa ao plano mítico, plano este
reservado para a inserção do “lendário e eterno”[i]
Paxiúba, continuo a exigir aqui o auxílio filosófico de Gaston Bachelard:
O ser é antes de tudo um
despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária. O
indivíduo não é a soma de suas impressões gerais, é a soma de suas impressões
singulares. Assim se criam em nós os mistérios familiares, que se designam em
raros símbolos. Foi perto da água e de suas flores que compreendi ser o
devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se evola das coisas
pela mediação de um sonhador.[ii]
“O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta
na consciência de uma impressão extraordinária”. O primeiro narrador, alter ego
do segundo, despertou, primeiramente, por intermédio de uma consciência
ativada, extraordinariamente impressionada com a descoberta
ficcional do plano mítico amazonense, constituído a partir da insígnia
do bugre Paxiúba. Se ele, enquanto um sobrevivente do ataque dos Numas, ataque
este que ocasionou o incêndio da floresta, e, por conseqüência, a morte dos “parentes”,
levado pela correnteza do “igarapé de treva fria e rápida”, não se lembra de
como se salvou, em contrapartida, tem a certeza de que “uma correnteza negra [o
abraçou, o envolveu, o levou]. Ele também tem o conhecimento de que [bateu] “em
paus e pedras”, mas que [prosseguiu], “noite a dentro, breu a fora, sem pesar,
por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse
o prosseguimento de [seu] sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa,
continuando assim por muitas horas entre as sombras, segredos e lágrimas”, sentindo tudo a se dissolver
... Sim”.
Bachelard diz: “O indivíduo não é a soma de suas
impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares. Assim se criam em
nós os mistérios familiares, que se designam em raros símbolos”.
O narrador de O Amante das Amazonas (o primeiro, o segundo, o terceiro;
quantos forem) concentra em si as impressões vivenciais, singulares, de seu
criador. Os “mistérios familiares”, cerceadores, realçados na filosofia
bachelardiana, acenam as suas presenças incomodantes na ficção extraordinária
de Rogel Samuel (extraordinária aqui não possui sentido encomiástico; o
meu propósito para exibi-la é interpretativo-reflexivo). Assim, os raros
símbolos (os símbolos importantes que povoaram/povoam/povoarão o amplo
imaginário-em-aberto do escritor), restritos a esses mistérios familiares
convertem-se em arcabouço heróico, porque as “verdades” da mitologia indígena
brasileira, “verdades” oriundas dos conceitos vivenciais exemplares, adquiridos
desde a infância e adolescência na cidade de Manaus, sempre fizeram parte da
vida do escritor. E permanecerão com ele, enquanto vigorar o seu itinerário
existencial como cidadão do mundo.
Eu deixei o Amazonas, mas
meu coração ficou lá, na margem do Rio Negro.
A floresta, naquele tempo
dos anos 1949 e 1950, era imensa, feita de árvores seculares enormes, imensas,
pré-históricas. A floresta verdadeira era impenetrável. Não, não posso mais
falar, pois me emociono, (...). não sei falar da Amazônia de minha infância com
racionalidade.[iii]
“Foi perto da água e de suas flores que melhor
compreendi ser o devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se
evola das coisas pela mediação de um sonhador”[iv],
reflete Gaston Bachelard, no capítulo “Imaginação e Matéria” de seu livro A
Água e os Sonhos. Por este prisma, foi assim que, às margens dos igarapés
ou mesmo ladeando os largos e caudalosos rios amazonenses, manifestou-se, por
meio da quentíssima aragem manauara (vento), proveniente da Floresta, o “cheiro
do camaru”, anunciando ao escritor Rogel Samuel a presença do mítico
personagem, o bugre Paxiúba, por intermédio da íntima e distinta compreensão do
devaneio de “um universo em emanação”[v].
Repensando a matéria ar como um renovado
elemento condutor para a alteração do exterior narrativo, é como se no capítulo
seguinte, destinado à elevação do fantástico Paxiúba, o “cheiro do camaru”
“fosse o prosseguimento do sonho [do escritor] na noite velada”, dissolvendo
e “anestesiando” as lembranças ruins e, ao mesmo tempo, reanimando o fluxo
narrativo por meio de uma novíssima “impressão extraordinária”.
O dia está nascendo. (...).
Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto,
toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o
rei, o construtor do império amazônico, (...). Apareço trazido pelas águas,
como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu
irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga,
frouxa.[vi]
O narrador principal, neste capítulo, ainda
necessita de seu primeiro narrador, o Ribamar de Sousa, para revelar aos
leitores de seu presente histórico (aos realmente interessados em sua recriação
ficcional sobre a glória e decadência do Império Amazônico) e aos leitores do
futuro (aqueles que inequivocamente irão julgar o valor de sua ficção-arte) as
diversas realidades ─ sócio-míticas e sócio-políticas ─ do Manixi, incluindo
também o seu deslumbrante apogeu e melancólico declínio. Nos capítulos finais,
o Ribamar de Sousa se transformará e passará o comando do proceder narrativo ao
segundo (e principal) narrador. Contudo, enquanto personagem significativo, ao
longo do romance, nas páginas finais, mesmo ostentando a fisionomia do poder capitalista em declínio, a sua presença será de régia importância.
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