NEUZA MACHADO: Pierre
Bataillon: O
Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos
Limites Ilimitados do Manixi
Por este
prisma foucaultiano, percebo atualmente o inter-relacionamento teórico-crítico
dos diversos saberes analítico-interpretativos do momento, os quais
promovem o entendimento do texto ficcional dos ficcionistas da pós-modernidade.
Neste meu tempo de pluri-atividade intelectual, por certo submetida a
pluri-rotatividade criativa do ficcionista pós-moderno-pós-modernista de
Segunda Geração, não há como fugir à regra. Para pensar a atuação do personagem
Pierre Bataillon, senhor do Seringal Manixi, e repensar os limites ilimitados
que confirmam o seu fabuloso poder, enquanto espaço extravital, não poderei
observar apenas a sua efetiva localização geográfica na região amazonense. Pelo
ponto de vista dos tratados descritivos, sobre o local (de fato) desta ímpar
recriação ficcional, a ilimitação não existe. O Manixi natural não
poderá conter o (competir com o) Manixi ficcional rogeliano. Se me adéquo às
regras analíticas, subservientes aos cientificistas conceitos críticos
cerceadores (oriundos de antigas normas estruturalistas, ou da já ultrapassada Teoria
de Exclusão do Silêncio[i]),
criticada alhures por Eduardo Portella, o espaço geográfico em questão se
reduzirá a um trecho da Floresta Amazônica, onde se localiza uma região
propícia ao plantio de mandioca e um lago, que foi chamado de Manisi Avani
pelos antigos habitantes indígenas do lugar, o qual, posteriormente, sofreu
assimilação vocabular com o nome de Manixi. Se pesquiso, no mapa do Brasil, o
Amazonas de Rogel Samuel e os Estados adjacentes, buscando o nome do
lugar (lugar que me embaraça reflexivamente, por não conhecê-lo internamente) e
as diversas denominações dos rios caudalosos e igarapés ostensivos, que
aparecem, em grande quantidade, atravessando o relato, acharei, com certeza,
vestígios esclarecedores, sem custo teórico, como costumo dizer. Existe
realmente esta sugestiva nomeação geográfica, habilmente recriada por Rogel
Samuel, em seu diferenciado romance sobre a glória e declínio do Amazonas, seu
Estado de nascimento. O Manixi de lá (o geográfico) é um local que abriga um
lago piscoso (Lago Manixi), situado na Bacia do rio Solimões, submisso ao
Município de Iranduba. O nome do local se notabiliza pelo fato de existir ali,
entre a variegada flora equatorial, o armazenamento de uma árvore (ou arbusto)
chamada manixeiro, cujos frutos saborosos são conhecidos por manixi
(espécie de mandioca), além da planta chamada maniva ou maniwa
(espécie de amendoim). Manixi, segundo outras fontes, provém de Manibí
(maniibí), que quer dizer, em sentido lato, Terra da Mandioca.
A deusa indígena Mani era, por exemplo, cultuada como a deusa da
mandioca, o que, no caso, simbolizava a divindade indígena protetora da
fartura, da prosperidade. Além disto, segundo informações governamentais,
existe ainda (atualmente sem esplendor) o Seringal Manixi, sobredito ficcionalmente e
distinguidamente por Rogel Samuel. Entretanto, o Seringal Manixi que anima
minhas reflexões poderá ser interpretado reflexivamente por intermédio da
filosofia de Gaston Bachelard, quando este interage filosoficamente com a
poética da casa primordial, em seu livro A Poética do Espaço, ou mesmo,
ainda reflexivamente, por intermédio dos pensamentos foucaultianos, sobre o
poder.
O excesso de pitoresco de
uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda
no devaneio. As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos
nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição.
Descrevê-las seria mandar visitá-las. Do presente pode-se talvez dizer tudo;
mas do passado! A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua
penumbra. Ela pertence à literatura em profundidade, isto é, à poesia, e não à
literatura eloqüente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a
intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que
preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um
devaneio em que vou repousar no meu passado.[ii]
O Manixi, o
que me acena provocativamente, não é o Manixi real dos manuais geográficos da
região amazonense. Encontro-me, aqui, acanhada pelo mítico-ficcional Seringal
Manixi, do escritor Rogel Samuel, e por seu Palácio magnificente, “supremo,
inominável, majestoso”[iii];
por seu dono extraordinário, cuja alcunha reputada é Pierre Bataillon,
“um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá”[iv];
além de deparar-me enlaçada nas inúmeras questões pós-modernas deste
diferenciado romance. Entretanto, para deslindá-lo reflexivamente, com
convicção teórico-interpretativa, buscando o plano do silêncio
fenomenológico à moda dos pensamentos do crítico brasileiro Eduardo Portella,
ou do filósofo francês Gaston Bachelard, ou pela poderosa lente genealógica de
Michel Foucault, não me furtarei a um cotejamento com a realidade histórico-geográfica
do Amazonas, confrontando-a com o sistema mítico-social da ficção rogeliana, em
benefício de esclarecimentos interpretativos. Por conseguinte, buscarei, no
texto de Rogel Samuel, as informações proveitosas ao meu interativo e reflexivo
pensamento analítico-interpretativo.
Pois que esta narrativa ─
paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia
confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa,
aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia
dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de
improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais
sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do
suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Rio Tarauacá, que
sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos
retornando.[v]
O Manixi da narrativa rogeliana poderá ser visto
pelo mesmo prisma que revelou aos leitores universais o Sertão ficcional de
Guimarães Rosa. Assim como o Sertão roseano, oriundo do sertão de Minas Gerais,
que “está em todo lugar”, como diz Riobaldo (o personagem-narrador de Guimarães
Rosa), do mesmo modo percebo o Manixi ficcional de Rogel Samuel. Assim como o
Sertão de Guimarães Rosa foi visto, por mim, em meu livro (que ainda não foi
publicado), Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do cogito(1)
ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada
a partir da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o espaço
ficcional do Manixi rogeliano será aqui interpretado. A narrativa revelou-me, e
revelará aos futuros leitores, as íntimas lembranças (memória) e recordações
(matéria poética) do escritor amazonense Rogel Samuel, sobre a sua “casa primordial”
inesquecível. Os sentidos vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos,
gustativos), provindos da infância e adolescência, vividos ali, na terra natal,
permaneceram/permanecem intensos e persistentes nas lembranças poetizadas do
escritor, mesmo que ele esteja hoje distanciado geograficamente de seu lugar de
nascimento, e são percebidos liricamente (matéria lírica interferindo no relato
ficcional) ao longo da narrativa. Quem se lembra (recorda
ficcionalmente) do Igarapé do Inferno (por que “do Inferno”?) e de toda aquela
paisagem dantesca, é o escritor. O personagem-narrador Ribamar de Sousa apenas
se coloca como o porta-voz de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara
ficcional do criador amazonense atavicamente preso às lembranças e recordações do passado, fossem elas boas ou más).
[ii] BACHELARD, Gaston. A poética do
espaço. Tradução de Antônio de Padua Danesi. 7. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005: 32.
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