Lucilene
Gomes Lima
FICÇÒES
DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo
comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
A ABORDAGEM DO CICLO DA BORRACHA NA
FICÇÃO AMAZONENSE
Monteiro
aponta um tratamento superficial dado pela maioria dos escritores às obras do
ciclo ao afirmar que tanto os antigos quanto os modernos deixaram de perceber o
mundo do seringal por uma via verdadeiramente sociológica que penetrasse a sua
engrenagem internamente e optaram pelo aspecto externo da tragédia fácil.[1]
Para Monteiro, as características da economia de transplantação geraram as
formas de abordagem que enfatizam a negatividade do meio, os comportamentos
humanos aberrativos.
A
ficção em torno do ciclo explorou abundantemente imagens da solidão do
seringueiro na selva, solidão que na maioria das vezes é o degredo do
nordestino retirante, vivendo o estranhamento de uma ambiente que lhe é
desconhecido e hostil. A relação inamistosa do seringueiro com os índios que
habitavam as grandes extensões de terras dos seringais é também um tópico quase
sempre abordado nas obras do ciclo. Via de regra, o indígena aparece como um
ser sanguinário, ameaça ao trabalho do seringueiro, pavor que faz o dia-a-dia
nas estradas de corte de seringa um perigo constante. Além desses tópicos que
geralmente se apresentam nas obras do ciclo, ocorre a constância de alguns
aspectos, muitas vezes estruturadores dos enredos, que se relacionam
diretamente às características das relações de trabalho estabelecidas em função
da extração do látex. O relacionamento do patrão seringalista com o seringueiro
ou freguês motivou a maior parte das abordagens das obras. Os dados históricos
que informam as condições nem sempre justas do vínculo de trabalho entre o
patrão e o freguês serviram de corolário à criação dos ficcionistas, abrindo um
caminho que foi percorrido diversas vezes. Passaremos a analisar, a seguir, a
constância desses aspectos nas obras do “ciclo da borracha”.
A dicotomia explorador-explorado
Seringalistas
e seringueiros são, na maioria dos romances da borracha, as personagens
centralizadoras dos enredos ou, se considerarmos outro aspecto da narrativa,
personagens sob as quais recai a focalização.[2]
As demais figuras presentes nas atividades do seringal, entre elas gerentes,
guarda-livros ou aquelas atreladas ao processo do ciclo, tais como aviadores,
exportadores não têm presença de destaque na prosa do “ciclo da borracha”. Não
se tem a visão do mundo do seringal senão através do seringalista que configura
o explorador e do seringueiro, o explorado.
A
condição do seringalista como explorador da força de trabalho do seringueiro
possibilitou a criação de um estereótipo do patrão truculento. O endosso dessa
imagem veio das próprias relações de trabalho estabelecidas nos seringais. Ao
criar o contrato de trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês
seringueiro a um regulamento que estabelecia mais vantagens ao patrão do que ao
freguês. Além das perdas que o seringueiro tinha com a cobrança de um débito
que se iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal e acrescia-se com o
preço das ferramentas de trabalho, também era obrigado a se submeter a uma
ração alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A selva,
a percepção do narrador põe-se frontalmente em oposição ao seringalista,
esclarecendo a condição de servidão do seringueiro, vítima da má fé e da
extorsão:
Aquele era
sempre o ‘talão grande’ onde se juntavam as despesas da viagem e mais
empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de
pagamento, o sertanejo ingênuo.
Alberto viu-se
com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcelados por seis ou oito
linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe pareceram não valer
um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à
nota do vizinho, descobriu nela uma quantia igual, repetida em quantos papéis
se estendiam para Binda.[3]
Em
Terra de ninguém, romance de
Francisco Galvão, o narrador também demonstra aversão pela personagem do
coronel seringalista. Identificando-se com os seringueiros, esse narrador
critica o enriquecimento do seringalista, os privilégios que aufere às expensas
do trabalho dos seringueiros. No contexto do romance, a possibilidade de saldo
para os seringueiros é taxativamente negada:
A vida corria
monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna do dono do
seringal. Todos lutavam com o mesmo esforço, como polias impulsionando a mesma
máquina. As estradas contribuíam, com o suor humano, para que ele possuísse na
firma J. G. de Araújo, grandes reservas monetárias.
[...]
Mil braços se
estorciam ajudando a engorda pacífica e mansa desse homem, na selva bárbara,
onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que aumentava o débito
da conta corrente pela desapreciação do preço das gomas.
O que se
atrevesse a falar em saldo, no desejo natural da volta ao nordeste,
arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estrada, morto à tocaia
mandada fazer pelo Antônio.[4]
[1]
Ibid., p. 47.
[2] De
acordo com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização
pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra
ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem
da história, quer o do narrador heterodiegético, conseqüentemente, a focalização além de condicionar a quantidade de informação veiculada
(eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica,
moral e ética em relação a essa informação [...]” (Dicionário de teoria da narrativa, p. 246).
[3] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 101.
[4]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 89.
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