domingo, 2 de fevereiro de 2014

O amante das amazonas

O amante das amazonas

O amante das amazonas


Rogel Samuel

O amante das amazonas

 

UM: VIAGEM.

MAS não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até o Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Mu, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram pelo Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam - o magnífico! -, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido. E lá, foi lá que eles encontraram o barco que seguia para o Igarapé do Inferno e que os deixou no Manixi, onde amansaram, no Acre, aviados do dono do seringal.
Confesso (que todo este livro é a confissão de minha vida) que logo senti naquele momento Genaro e Antônio ansiando em retomar para o sertão, que a crise da vida amazonense se agravava, e isto que as condições dos seringueiros pioravam nos tempos dos meus parentes naquele modo se ralando e se gastando no trabalho de tirar leite da mata sem proveito.
Ou quando me avistaram não me compreenderam. Eu magro, olhar esmagado sob uns cachos de cabelos castanhos que tinha, abandonado, surgido como aparição no banco do alpendre do tapiri (caía, eu me lembro bem, escura, procelosa tempestade, noturnos clarões e sibilante vento) oh não, que não me reconheceram (estaria eu ali no testemunho de suas sortes), nem me aplaudiriam e antes me odiavam. Pois não tinham eles saído também jovens, há mais de dez anos, de mim guardando a amarela lembrança da criança de roupinha suja de água de barrela? Não se viram em mim naquele momento matador das esperanças em corte de pessoa, alto, sonoro e significativo nome de mais uma noticia de crise que vinha dar naquela pátria das más notícias, naquele lugar sempre em princípios, no recomeço de uma queixa que já se prolongava tantos anos, dispersando a família pelos lugares todos, dos nossos, que nem conheci, nem sei se ainda vivem, um foi para São Paulo, feito soldado; e outro, tendo talento nas pernas, foi-se súbito para Belém, voltando depois pelo Piauí, passado pela Serra Grande até Teresina, seguido pelo Maranhão até Goiás, cabra de pé solto que era, para depois subir o Tocantins até a Bahia onde finalmente desapareceu e de onde não deu mais nenhuma notícia senão que acabou no leprosário de Paricatuba (“Tenho fé em homem que come e anda armado”, disse-nos ele no dia da partida para nós. “Cria talento e coragem. Com gororoba no bucho, pau de fogo nas costas e faca de ponta nos quartos chamo qualquer boca de fera!”); o outro - ah! -, era o mais velho, e moído e miúdo morria de fome com não abandonar a mãe velha (ela o amava mais que todos. Minha mãe morreu 2 anos depois que parti. Ela me desprezava, sei que me odiava, sei que me amaldiçoou na hora da morte); e nossa irmã, bela, cativa, caçula, abandonada pelo marido para fazer a vida na Vila de Santa Rita com os tropeiros da região, ganhando assim o de si para escapar da fome do mundo enquanto o sertão descascava de árido: sim, a nossa família toda, fodida e quebrada, assim que depois vi, me deixava sozinho, comigo, no horror de Deus.
 
 
POIS não disseram palavra. Se recolheram em si, e eu ainda durante muito tempo sentado no escuro, escorrendo chuva na mala de amarrado, chorando no abandono e solidão. E eu quis voltar, e não estar ali. E eu não quis ter vindo. Mas não tinha o caminho de volta. E nunca mais voltei.
E, lentamente, a partir do seguinte, comecei a fazer aquelas coisas próprias, como cozinhar e limpar o tapiri, pescar e catar frutas para que não se passasse fome. E como eu devia logo ao patrão que nem conhecia, tive de começar a correr, prisioneiro das colocações, e a seguir estrada com tigelinha de flandres, a fazer trabalho de defumação com o ouricuri, cavacos de maçaranduba e acabu, a criar minhas próprias pélas. O leite se tomava negro, ao meu contato. A agricultura não casa com a seringa? Produz o que consome? E não falavam comigo, e não me ensinavam, como que me ignoravam, não se falavam entre si, os dois. Tinham virado bichos, e não creio soubessem falar. Chegavam de noite, macacos moídos, mudos e sujos, comiam e dormiam fedendo. E de madrugada de novo para a estrada, movidos por um interno aparelho de corda, mecânicos, outra vez, eu não sabia para onde, eu não sabia para quê.
Mas aprendi a ferir a árvore, a defumar o látex, a empilhar as pélas de borracha, a ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do acotovelamento das águas escuras do Igarapé do Inferno (que até hoje ouço e sei que irei ouvi-lo neste fim de rumo na hora de minha morte).
 

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