O amante das amazonas
Rogel Samuel
O amante das amazonas
UM: VIAGEM.
MAS não disse
que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no
Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio
Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde
anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa
volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até o
Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o
Rio Mu, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o
Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha,
que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E
foram para o Riozinho do Leonel, seguiram pelo Tejo, pelo Breu, pelo
belo Igarapé Corumbam - o magnífico! -, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna,
o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das
Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do
Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar
desconhecido. E lá, foi lá que eles encontraram o barco que seguia para o
Igarapé do Inferno e que os deixou no Manixi, onde amansaram, no Acre,
aviados do dono do seringal.
Confesso (que
todo este livro é a confissão de minha vida) que logo senti naquele
momento Genaro e Antônio ansiando em retomar para o sertão, que a crise
da vida amazonense se agravava, e isto que as condições dos seringueiros
pioravam nos tempos dos meus parentes naquele modo se ralando e se
gastando no trabalho de tirar leite da mata sem proveito.
Ou quando me
avistaram não me compreenderam. Eu magro, olhar esmagado sob uns cachos
de cabelos castanhos que tinha, abandonado, surgido como aparição no
banco do alpendre do tapiri (caía, eu me lembro bem, escura, procelosa
tempestade, noturnos clarões e sibilante vento) oh não, que não me
reconheceram (estaria eu ali no testemunho de suas sortes), nem me
aplaudiriam e antes me odiavam. Pois não tinham eles saído também
jovens, há mais de dez anos, de mim guardando a amarela lembrança da
criança de roupinha suja de água de barrela? Não se viram em mim naquele
momento matador das esperanças em corte de pessoa, alto, sonoro e
significativo nome de mais uma noticia de crise que vinha dar naquela
pátria das más notícias, naquele lugar sempre em princípios, no recomeço
de uma queixa que já se prolongava tantos anos, dispersando a família
pelos lugares todos, dos nossos, que nem conheci, nem sei se ainda
vivem, um foi para São Paulo, feito soldado; e outro, tendo talento nas
pernas, foi-se súbito para Belém, voltando depois pelo Piauí, passado
pela Serra Grande até Teresina, seguido pelo Maranhão até Goiás, cabra
de pé solto que era, para depois subir o Tocantins até a Bahia onde
finalmente desapareceu e de onde não deu mais nenhuma notícia senão que
acabou no leprosário de Paricatuba (“Tenho fé em homem que come e anda
armado”, disse-nos ele no dia da partida para nós. “Cria talento e
coragem. Com gororoba no bucho, pau de fogo nas costas e faca de ponta
nos quartos chamo qualquer boca de fera!”); o outro - ah! -, era o mais
velho, e moído e miúdo morria de fome com não abandonar a mãe velha (ela
o amava mais que todos. Minha mãe morreu 2 anos depois que parti. Ela
me desprezava, sei que me odiava, sei que me amaldiçoou na hora da
morte); e nossa irmã, bela, cativa, caçula, abandonada pelo marido para
fazer a vida na Vila de Santa Rita com os tropeiros da região, ganhando
assim o de si para escapar da fome do mundo enquanto o sertão descascava
de árido: sim, a nossa família toda, fodida e quebrada, assim que
depois vi, me deixava sozinho, comigo, no horror de Deus.
POIS não
disseram palavra. Se recolheram em si, e eu ainda durante muito tempo
sentado no escuro, escorrendo chuva na mala de amarrado, chorando no
abandono e solidão. E eu quis voltar, e não estar ali. E eu não quis ter
vindo. Mas não tinha o caminho de volta. E nunca mais voltei.
E, lentamente, a
partir do seguinte, comecei a fazer aquelas coisas próprias, como
cozinhar e limpar o tapiri, pescar e catar frutas para que não se
passasse fome. E como eu devia logo ao patrão que nem conhecia, tive de
começar a correr, prisioneiro das colocações, e a seguir estrada com
tigelinha de flandres, a fazer trabalho de defumação com o ouricuri,
cavacos de maçaranduba e acabu, a criar minhas próprias pélas. O leite
se tomava negro, ao meu contato. A agricultura não casa com a seringa?
Produz o que consome? E não falavam comigo, e não me ensinavam, como que
me ignoravam, não se falavam entre si, os dois. Tinham virado bichos, e
não creio soubessem falar. Chegavam de noite, macacos moídos, mudos e
sujos, comiam e dormiam fedendo. E de madrugada de novo para a estrada,
movidos por um interno aparelho de corda, mecânicos, outra vez, eu não
sabia para onde, eu não sabia para quê.
Mas aprendi a
ferir a árvore, a defumar o látex, a empilhar as pélas de borracha, a
ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do acotovelamento das
águas escuras do Igarapé do Inferno (que até hoje ouço e sei que irei
ouvi-lo neste fim de rumo na hora de minha morte).
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