domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Máscara Ficcional do Segundo Narrador

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador
 
 
 
O sonho do narrador Ribamar de Sousa, aqui, é um importante referente, pois, por meio dele, o verdadeiro dono do narrar ficcional, o segundo narrador, à moda deleuziana, está temporariamente oculto, distanciado da propagação cultural burra, e processará o seu ato de narrar, estruturando sublinearmente a edificação intelectual-espiritual de um Seringal Manixi idealizado, mitificado, sem evidências exercidas. A partir do “sonho na noite velada”, “muito burra e muito cega”, “entre sombras, segredos e lágrimas”, o escritor Rogel Samuel procura revelar a seus leitores a verdadeira e primitiva história do Estado do Amazonas, cujos vestígios foram consumidos pelos relatos oficiais ou reduzidos em frações simplificadas pela veemência do código. A narrativa O Amante das Amazonas poderá ser classificada futuramente como a história de uma representação/criação mental, valiosamente ficcional (não é épica) do arquétipo poderoso e sensível da Grande Mãe associado ao poder bélico do Grande Pai (o poder feminino/masculino do mito andrógino), bem sinalizado por intermédio do mito das amazonas guerreiras.
Por meio das normas dos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, agrupadas à colaboração filosófica de Gaston Bachelard, desvelo as palavras e frases referenciais que iluminam o momento do impasse narrativo que levará o segundo e verdadeiro narrador rogeliano a interagir, posteriormente, com os outros “grandes fatos” (relativos aos poderes femininos e masculinos), ocorridos “em outros lugares e horas, históricos e decisivos para a sucessão” (da ficção) que seria/será relatada “no momento oportuno, mas que para tanto ainda [teria/terá] (o primeiro narrador) de revelar surpresas de muitos outros ocorridos”[i]. De tal sorte que, foi a partir da citação acima que o primeiro narrador “não soube de mais nada do que se passou”, pois não [entendeu] como conseguiu fugir da “floresta em chamas”, mergulhando “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [como pode se afastar] dali”. A continuação deste episódio se tornará visível aos leitores no início da página 48 (no capítulo 5: CINCO: FERREIRA). Por enquanto, o Ribamar, mergulhando no igarapé e enfrentando os obstáculos da correnteza, imerge no prosseguimento do sonho de seu criador ficcional, para chegar ao Palácio Manixi e se transformar em secretário da esposa de Pierre Bataillon, D.Ifigênia Vellarde (“─ E onde está Ribamar? ─ ouço a voz de D. Ifigênia que me procura. Fecho a porta e sigo para atendê-la. Durante a noite estou de serviço.”)[ii]. Em verdade, quem bate “em paus e pedras”, quem procura prosseguir “noite a dentro, extasiado e sem pensar, como se tudo aquilo fosse a [continuação de] um sonho”, é o escritor amazonense Rogel Samuel. Entretanto, não haverá explicações racionais, pois o primeiro narrador, alter ego do segundo, “não viu mais o fogo da labareda da serpente”, ou seja, da labareda conceitual e mítica que impõe regras discursivas lineares (o já conceitualmente familiar). O primeiro narrador, temporariamente, terá de visualizar um fogo mítico, que proporcione ao seu senhor, o narrador principal, uma espécie de interrupção provisória, e este segundo, por sua vez, terá de harmonizar-se ao verdadeiro proprietário do regulamento narrativo pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, o criador ficcional, buscando um momento de descanso (um momento de sonho ativado), para que, páginas adiante, ele possa pôr em evidência a ilimitação de seu interior férvido (para, com isto, apresentar o poder feminino e masculino, naturais, o poder das amazonas guerreiras, em seu Estado de nascimento). No momento, na página trinta e seis do romance, quem sonha “na noite velada e muito burra e muito cega”, reafirmo, é o escritor do final do século XX, impossibilitado de narrar os acontecimentos relativos ao mergulho no invólucro onírico aquático de sua consciência singular. Assim, dando prosseguimento às ordens privativas da ”meia-noite psíquica [repito: do escritor amazonense Rogel Samuel], onde germinam virtudes de origem”[iii], quem assume a interrupção ficcional transitória é o primeiro narrador, representante de narrativas exemplares, o Ribamar de Sousa.
            A palavra sonho assinalada pelo narrador, como ele mesmo já informara linhas atrás, indica que “a vida não é de caminhos retos ─, mas na iniciação às Parcas, esboço de serpentes, nome de demônio”[iv]. Mesmo que a narrativa O Amante das Amazonas fosse/seja apresentada como proveniente de uma insólita vida ficcional, teria/terá de corresponder à “verdade” de quem narra: “Última verdade a ser implantada, cabeça a dentro, no elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva imaginação do terror e da violência”[v]. Por tudo isto, à moda exemplar, o primeiro narrador (juntamente com o segundo, indiscutivelmente pós-moderno, e, conseqüentemente, com o próprio escritor) necessitou temporariamente das trevas míticas (o “espaço noturno” bachelardiano) para que, no capítulo cinco[vi], pudesse readquirir os puros “liames” de seu verdadeiro modo de narrar, para manifestar, ficcionalmente e criativamente, aos poucos próximos e aos inúmeros e pósteros leitores, os verdadeiros motivos da decadência do Império Amazônico.
            Sobre o sonho do narrador rogeliano e o interregno que propiciou a manifestação do mítico Paxiúba, no capítulo quatro, busco um novo esclarecimento teórico-crítico, pela via filosófica de Gaston Bachelard, quando este tematiza sobre “o espaço onírico”:
 
Mal entramos no sono e o espaço se amortece ─ adormece um pouco antes de nós mesmos, perdendo suas fibras e seus liames, perdendo suas forças de estrutura, suas coerências geométricas. O espaço onde vamos viver nossas horas noturnas não possui mais lonjura. É a síntese muito próxima das coisas e de nós mesmos. Ao sonhar com um objeto, entramos nesse objeto como em uma concha. Nosso espaço onírico tem sempre um coeficiente central. Algumas vezes, em nossos sonhos de vôo, acreditamos ir bem alto, mas somos então apenas um pouco de matéria volante. E os céus que escalamos são céus inteiramente interiores ─ desejos, esperanças, orgulhos. (...). Permanecemos o próprio centro da experiência onírica. Se um astro brilha, é aquele que dorme que se estrela: um pequeno brilho sobre a retina adormecida desenha uma efêmera constelação, evoca a confusa lembrança de uma noite estrelada.
 
Nosso espaço adormecido torna-se logo a autonomia de nossa retina, na qual uma química minúscula desperta mundos. Assim, o espaço onírico tem por fundo um véu, um véu que se ilumina por si mesmo em raros instantes ─ em instantes que se tornam mais raros e mais fugidios à medida que a noite penetra mais profundamente nosso ser.[vii]


[i] Idem: 47.
[ii] Idem: 77.
[iii] BACHELARD, Gaston, 1991: 160.
[iv] SAMUEL, Rogel, 2005: 35.
[v] Ibidem.
[vi] Idem: 48.
[vii] BACHELARD, Gaston, 1991: 160.

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