NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do
Segundo Narrador
O sonho
do narrador Ribamar de Sousa, aqui, é um importante referente, pois, por meio
dele, o verdadeiro dono do narrar ficcional, o segundo narrador, à moda
deleuziana, está temporariamente oculto, distanciado da propagação cultural
burra, e processará o seu ato de narrar, estruturando sublinearmente a
edificação intelectual-espiritual de um Seringal Manixi idealizado, mitificado,
sem evidências exercidas. A partir do “sonho na noite velada”, “muito burra e
muito cega”, “entre sombras, segredos e lágrimas”, o escritor Rogel Samuel
procura revelar a seus leitores a verdadeira e primitiva história do Estado do
Amazonas, cujos vestígios foram consumidos pelos relatos oficiais ou reduzidos
em frações simplificadas pela veemência do código. A narrativa O Amante das
Amazonas poderá ser classificada futuramente como a história de uma representação/criação
mental, valiosamente ficcional (não é épica) do arquétipo poderoso e sensível
da Grande Mãe associado ao poder bélico do Grande Pai (o poder
feminino/masculino do mito andrógino), bem sinalizado por intermédio do mito
das amazonas guerreiras.
Por meio das
normas dos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, agrupadas à colaboração
filosófica de Gaston Bachelard, desvelo as palavras e frases referenciais que
iluminam o momento do impasse narrativo que levará o segundo e verdadeiro
narrador rogeliano a interagir, posteriormente, com os outros “grandes fatos”
(relativos aos poderes femininos e masculinos), ocorridos “em outros lugares e
horas, históricos e decisivos para a sucessão” (da ficção) que seria/será
relatada “no momento oportuno, mas que para tanto ainda [teria/terá] (o
primeiro narrador) de revelar surpresas de muitos outros ocorridos”[i].
De tal sorte que, foi a partir da citação acima que o primeiro narrador “não
soube de mais nada do que se passou”, pois não [entendeu] como conseguiu fugir
da “floresta em chamas”, mergulhando “na invisível água do igarapé de treva
fria e rápida, e [como foi] levado e [como pode se afastar] dali”. A
continuação deste episódio se tornará visível aos leitores no início da página
48 (no capítulo 5: CINCO:
FERREIRA). Por enquanto, o Ribamar, mergulhando no igarapé e
enfrentando os obstáculos da correnteza, imerge no prosseguimento do sonho
de seu criador ficcional, para chegar ao Palácio Manixi e se transformar em
secretário da esposa de Pierre Bataillon, D.Ifigênia Vellarde (“─ E onde está
Ribamar? ─ ouço a voz de D. Ifigênia que me procura. Fecho a porta e sigo para
atendê-la. Durante a noite estou de serviço.”)[ii].
Em verdade, quem bate “em paus e pedras”, quem procura prosseguir
“noite a dentro, extasiado e sem pensar, como se tudo aquilo fosse a
[continuação de] um sonho”, é o escritor amazonense Rogel Samuel. Entretanto,
não haverá explicações racionais, pois o primeiro narrador, alter ego do
segundo, “não viu mais o fogo da labareda da serpente”, ou seja, da labareda
conceitual e mítica que impõe regras discursivas lineares (o já conceitualmente
familiar). O primeiro narrador, temporariamente, terá de visualizar um fogo
mítico, que proporcione ao seu senhor, o narrador principal, uma espécie
de interrupção provisória, e este segundo, por sua vez, terá de harmonizar-se
ao verdadeiro proprietário do regulamento narrativo pós-moderno-pós-modernista
de Segunda Geração, o criador ficcional, buscando um momento de descanso (um
momento de sonho ativado), para que, páginas adiante, ele possa pôr em
evidência a ilimitação de seu interior férvido (para, com isto, apresentar o
poder feminino e masculino, naturais, o poder das amazonas guerreiras, em seu
Estado de nascimento). No momento, na página trinta e seis do romance, quem
sonha “na noite velada e muito burra e muito cega”, reafirmo, é o escritor do
final do século XX, impossibilitado de narrar os acontecimentos relativos ao mergulho
no invólucro onírico aquático de sua consciência singular. Assim, dando prosseguimento
às ordens privativas da ”meia-noite psíquica [repito: do escritor amazonense
Rogel Samuel], onde germinam virtudes de origem”[iii],
quem assume a interrupção ficcional transitória é o primeiro narrador,
representante de narrativas exemplares, o Ribamar de Sousa.
A
palavra sonho assinalada pelo narrador, como ele mesmo já informara
linhas atrás, indica que “a vida não é de caminhos retos ─, mas na iniciação às
Parcas, esboço de serpentes, nome de demônio”[iv].
Mesmo que a narrativa O Amante das Amazonas fosse/seja apresentada como
proveniente de uma insólita vida ficcional, teria/terá de corresponder à
“verdade” de quem narra: “Última verdade a ser implantada, cabeça a dentro, no
elenco das melhores e das mais remotas profundezas, na subversiva imaginação do
terror e da violência”[v].
Por tudo isto, à moda exemplar, o primeiro narrador (juntamente com o segundo,
indiscutivelmente pós-moderno, e, conseqüentemente, com o próprio escritor)
necessitou temporariamente das trevas míticas (o “espaço noturno” bachelardiano)
para que, no capítulo cinco[vi],
pudesse readquirir os puros “liames” de seu verdadeiro modo de narrar,
para manifestar, ficcionalmente e criativamente, aos poucos próximos e aos
inúmeros e pósteros leitores, os verdadeiros motivos da decadência do Império
Amazônico.
Sobre
o sonho do narrador rogeliano e o interregno que propiciou a
manifestação do mítico Paxiúba, no capítulo quatro, busco um novo
esclarecimento teórico-crítico, pela via filosófica de Gaston Bachelard, quando
este tematiza sobre “o espaço onírico”:
Mal entramos no sono e o
espaço se amortece ─ adormece um pouco antes de nós mesmos, perdendo suas
fibras e seus liames, perdendo suas forças de estrutura, suas coerências
geométricas. O espaço onde vamos viver nossas horas noturnas não possui mais
lonjura. É a síntese muito próxima das coisas e de nós mesmos. Ao sonhar com um
objeto, entramos nesse objeto como em uma concha.
Nosso espaço onírico tem sempre um coeficiente central. Algumas vezes, em nossos
sonhos de vôo, acreditamos ir bem alto, mas somos então apenas um pouco de matéria volante. E os céus
que escalamos são céus inteiramente interiores
─ desejos, esperanças, orgulhos. (...). Permanecemos o próprio centro da experiência onírica. Se um astro brilha,
é aquele que dorme que se estrela: um
pequeno brilho sobre a retina adormecida
desenha uma efêmera constelação, evoca a confusa lembrança de uma noite estrelada.
Nosso espaço adormecido
torna-se logo a autonomia de nossa retina, na qual uma química minúscula
desperta mundos. Assim, o espaço onírico tem por fundo um véu, um véu que se ilumina por si
mesmo em raros instantes ─ em instantes que se tornam mais raros e mais fugidios à medida que a noite penetra
mais profundamente nosso ser.[vii]
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