NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
NEUZA MACHADO: Pierre
Bataillon: O
Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos
Limites Ilimitados do Manixi
Por este
aspecto, o Manixi rogeliano é uma “Gênese”, como afirma Gaston Bachelard (ou se
quiserem, é a “Fênix” ressurgindo das cinzas), porque “a vontade de trabalho”
do escritor (acrescido de seu ilimitado imaginário-em-aberto, já interagindo com cogito(3) da
consciência revigorada) assim determinou. As “visões diferentes” do “ferreiro”
e do “oleiro” (as “visões” diferenciadas, submetidas
às matérias diferenciadas, tais como terra, água, fogo e ar) sedimentaram um novo universo ficcional
em expansão: o Manixi rogeliano. (Assim como o diferente “Sertão” de
Guimarães Rosa, a mítica
“Macondo” de Gabriel Garcia Marques, e a fantástica cidade de “Santa Maria” de Juan
Carlos Onetti, escritor uruguaio).
Ainda,
retomando a proposta inicial deste meu capítulo sobre o poderoso Pierre
Bataillon e o seu Império monumental ─ o Manixi rogeliano ─, sem abandonar as
diretivas portellianas e bachelardianas que me estimulam por ora a interagir
reflexivamente com o romance de Rogel Samuel, para refletir sobre o poder
capitalista primitivo (dimensão sócio-substancial, sintagmática, linear) de
Pierre Bataillon em seu dilatadíssimo e ficcional Império Manixi (dimensão
mítico-ficcional paradigmática), imponho-me um repensar à moda foucaultiana,
entrelaçando-o com os conceitos fenomenológicos dos dois pensadores (o
brasileiro e o francês) já assinalados.
No início,
registrando a proveitosa intervenção de Eduardo Portella, nos anos setenta do
século XX, em prol da “teoria de inclusão do silêncio”[i],
para o entendimento das camadas ocultas do texto literário, comentava ali a
minha adesão (provinda de ordens teórico-críticas temporais) a uma interação
analítico-interpretativa, para desvendar os subterrâneos criativo-ficcionais do
romance O Amante das Amazonas. Continuo com o mesmo propósito, uma vez
que na Microfísica do Poder, de Michel Foucault, há induções parecidas
com as de Eduardo Portella. Em “Verdade e Poder”[ii],
há um diálogo entre Michel Foucault e Alexandre Fontana (seu entrevistador, na
ocasião), no qual o pensador francês esclarece as diversas mudanças teóricas
que impregnaram seus pensamentos, ao longo de sua produção filosófica
técnico-intelectual. Uma vez que Foucault as vivenciou, também, em plena crise
dos paradigmas teórico-críticos sobre o texto literário, paradigmas esses
realçados, posteriormente, por Eduardo Portella em meados do século XX, estas
mesmas idéias foucaultianas ainda são e serão, por um razoável período da
dimensão temporal do desenvolvimento teórico-crítico deste início de século
XXI, importantes para o meu próprio impasse interpretativo. Tal impasse,
interdisciplinar, continua a atuar aqui nestas plagas tupiniquins, uma vez que
ainda não se conhecem teorias autenticamente brasileiras que dêem conta das
análises e interpretações pertinentes aos textos dos escritores-criadores,
notáveis recriadores de nossa própria realidade. Ainda estamos presos às
teorias estrangeiras, em nossos cursos de Ciência da Literatura, graças à nossa
incapacidade de formularmos teorias literárias e críticas significativas que
possam interagir produtivamente e conscientemente com os textos de nossos
escritores. O “servilismo” intelectual, aqui, em nosso reduto intelectivo,
ainda é uma realidade. Ainda batemos palmas para as idéias teórico-críticas
estrangeiras (não que não sejam boas); aplicamo-las (as contribuições
teórico-críticas estrangeiras) aos textos de nossos artistas literários,
esquecidos de que um país como o Brasil, com um cabedal de escritores
superfavorecidos criativamente, desde o advento da história de sua própria
literatura, deveriam existir também idéias teórico-críticas condizentes com os
textos aqui produzidos. Enquanto não, como assim exige o meu presente momento
de intelectualidade globalizada, a contribuição filosófica, daqui e de lá, fará
parte de minhas reflexões. Assim, depois deste meu excurso intelectivo, retomo
Michel Foucault e seus “regimes” cognitivos-filosóficos “diferentes”, para
repensar este segmento criativo do romance O Amante das Amazonas de
Rogel Samuel, inserido, entre os outros segmentos também criativos de sua
escrita.
Michel Foucault: São estes
regimes diferentes que tentei delimitar e descrever em As Palavras e as
Coisas, esclarecendo que no momento não tentava explicá-los e que seria
preciso tentar fazê-lo num trabalho posterior. Mas o que faltava no meu
trabalho era este problema do “regime discursivo”, dos efeitos do poder
próprios do jogo enunciativo. Eu confundia demais com a sistematicidade, a
forma teórica ou algo como o paradigma. No ponto de confluência da História
da Loucura e As Palavras e as Coisas, havia, sob dois aspectos muito
diversos, este problema central do poder
que eu havia isolado de uma forma ainda muito deficiente.
Alexandre Fontana: Deve-se
então recolocar o conceito de descontinuidade no seu devido lugar. Talvez haja
um outro conceito mais importante, mais central no seu pensamento: o conceito
de acontecimento. Ora, a respeito do acontecimento, uma geração ficou durante
muito tempo num impasse, pois, depois dos trabalhos dos etnólogos e mesmo dos
grandes etnólogos, estabeleceu-se uma dicotomia entre as estruturas (aquilo que
é pensável) e o acontecimento, que seria o lugar do irracional, do
impensável, daquilo que não entra e não pode entrar na mecânica e no jogo da
análise, pelo menos na forma que tomaram no interior do estruturalismo.
Michel Foucault: Admite-se
que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não
apenas da etnologia, mas de uma série de outras ciências e até da história, o
conceito de acontecimento. Eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista
do que eu. Mas o importante é não se fazer com relação ao acontecimento o que
se fez com relação à estrutura. Não se trata de colocar tudo num certo plano,
que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um
escalonamento de tipos e acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance,
a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos.
O problema é ao mesmo tempo
distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem
e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a
partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico
ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem
em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos
e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande
modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade
que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder,
não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que
seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser
analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas,
das estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica de contradição), nem
a semiótica (como estrutura de comunicação) poderiam dar conta do que é
inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A “dialética” é uma maneira de evitar
a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto
hegeliano; e a “semiologia” é uma maneira de evitar seu caráter violento,
sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e
do diálogo.[iii]
[i] PORTELLA, Eduardo (Org.). “Limites
Ilimitados da Teoria Literária”. In.: Teoria Literária. 1. ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
[ii] FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Tradução de Roberto Machado. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990: 1 -
14.
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