domingo, 9 de fevereiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 
 
 
 
 
 
NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
 
 
 
 
 
 
 
Por este aspecto, o Manixi rogeliano é uma “Gênese”, como afirma Gaston Bachelard (ou se quiserem, é a “Fênix” ressurgindo das cinzas), porque “a vontade de trabalho” do escritor (acrescido de seu ilimitado imaginário-em-aberto, interagindo com cogito(3) da consciência revigorada) assim determinou. As “visões diferentes” do “ferreiro” e do oleiro” (as “visões” diferenciadas, submetidas às matérias diferenciadas, tais como terra, água, fogo e ar) sedimentaram um novo universo ficcional em expansão: o Manixi rogeliano. (Assim como o diferente “Sertão” de Guimarães Rosa,  a mítica “Macondo” de Gabriel Garcia Marques, e a fantástica cidade de “Santa Maria” de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio).
Ainda, retomando a proposta inicial deste meu capítulo sobre o poderoso Pierre Bataillon e o seu Império monumental ─ o Manixi rogeliano ─, sem abandonar as diretivas portellianas e bachelardianas que me estimulam por ora a interagir reflexivamente com o romance de Rogel Samuel, para refletir sobre o poder capitalista primitivo (dimensão sócio-substancial, sintagmática, linear) de Pierre Bataillon em seu dilatadíssimo e ficcional Império Manixi (dimensão mítico-ficcional paradigmática), imponho-me um repensar à moda foucaultiana, entrelaçando-o com os conceitos fenomenológicos dos dois pensadores (o brasileiro e o francês) já assinalados.
No início, registrando a proveitosa intervenção de Eduardo Portella, nos anos setenta do século XX, em prol da “teoria de inclusão do silêncio”[i], para o entendimento das camadas ocultas do texto literário, comentava ali a minha adesão (provinda de ordens teórico-críticas temporais) a uma interação analítico-interpretativa, para desvendar os subterrâneos criativo-ficcionais do romance O Amante das Amazonas. Continuo com o mesmo propósito, uma vez que na Microfísica do Poder, de Michel Foucault, há induções parecidas com as de Eduardo Portella. Em “Verdade e Poder”[ii], há um diálogo entre Michel Foucault e Alexandre Fontana (seu entrevistador, na ocasião), no qual o pensador francês esclarece as diversas mudanças teóricas que impregnaram seus pensamentos, ao longo de sua produção filosófica técnico-intelectual. Uma vez que Foucault as vivenciou, também, em plena crise dos paradigmas teórico-críticos sobre o texto literário, paradigmas esses realçados, posteriormente, por Eduardo Portella em meados do século XX, estas mesmas idéias foucaultianas ainda são e serão, por um razoável período da dimensão temporal do desenvolvimento teórico-crítico deste início de século XXI, importantes para o meu próprio impasse interpretativo. Tal impasse, interdisciplinar, continua a atuar aqui nestas plagas tupiniquins, uma vez que ainda não se conhecem teorias autenticamente brasileiras que dêem conta das análises e interpretações pertinentes aos textos dos escritores-criadores, notáveis recriadores de nossa própria realidade. Ainda estamos presos às teorias estrangeiras, em nossos cursos de Ciência da Literatura, graças à nossa incapacidade de formularmos teorias literárias e críticas significativas que possam interagir produtivamente e conscientemente com os textos de nossos escritores. O “servilismo” intelectual, aqui, em nosso reduto intelectivo, ainda é uma realidade. Ainda batemos palmas para as idéias teórico-críticas estrangeiras (não que não sejam boas); aplicamo-las (as contribuições teórico-críticas estrangeiras) aos textos de nossos artistas literários, esquecidos de que um país como o Brasil, com um cabedal de escritores superfavorecidos criativamente, desde o advento da história de sua própria literatura, deveriam existir também idéias teórico-críticas condizentes com os textos aqui produzidos. Enquanto não, como assim exige o meu presente momento de intelectualidade globalizada, a contribuição filosófica, daqui e de lá, fará parte de minhas reflexões. Assim, depois deste meu excurso intelectivo, retomo Michel Foucault e seus “regimes” cognitivos-filosóficos “diferentes”, para repensar este segmento criativo do romance O Amante das Amazonas de Rogel Samuel, inserido, entre os outros segmentos também criativos de sua escrita.
 
Michel Foucault: São estes regimes diferentes que tentei delimitar e descrever em As Palavras e as Coisas, esclarecendo que no momento não tentava explicá-los e que seria preciso tentar fazê-lo num trabalho posterior. Mas o que faltava no meu trabalho era este problema do “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios do jogo enunciativo. Eu confundia demais com a sistematicidade, a forma teórica ou algo como o paradigma. No ponto de confluência da História da Loucura e As Palavras e as Coisas, havia, sob dois aspectos muito diversos,  este problema central do poder que eu havia isolado de uma forma ainda muito deficiente.
 
Alexandre Fontana: Deve-se então recolocar o conceito de descontinuidade no seu devido lugar. Talvez haja um outro conceito mais importante, mais central no seu pensamento: o conceito de acontecimento. Ora, a respeito do acontecimento, uma geração ficou durante muito tempo num impasse, pois, depois dos trabalhos dos etnólogos e mesmo dos grandes etnólogos, estabeleceu-se uma dicotomia entre as estruturas (aquilo que é pensável) e o acontecimento, que seria o lugar do irracional, do impensável, daquilo que não entra e não pode entrar na mecânica e no jogo da análise, pelo menos na forma que tomaram no interior do estruturalismo.
 
Michel Foucault: Admite-se que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não apenas da etnologia, mas de uma série de outras ciências e até da história, o conceito de acontecimento. Eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista do que eu. Mas o importante é não se fazer com relação ao acontecimento o que se fez com relação à estrutura. Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos e acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos.
 
O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura de comunicação) poderiam dar conta do que é inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A “dialética” é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a “semiologia” é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo.[iii]


[i] PORTELLA, Eduardo (Org.). “Limites Ilimitados da Teoria Literária”. In.: Teoria Literária. 1. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
[ii] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990: 1 - 14.
[iii] Idem: 4 - 5.

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