NEUZA MACHADO: Pierre
Bataillon: O
Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos
Limites Ilimitados do Manixi
Primeiramente avisto o
Palácio.
O dia está nascendo. (...).
Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto,
toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o
rei, o construtor do império amazônico, (...). Apareço trazido pelas águas,
como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu
irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga,
frouxa.
Pierre Bataillon é homem
mais baixo e magro do que eu pensava. Bem vestido, empertigado, gestos largos,
modos aprumados, nervosos, uma dignidade, uma cortesia à antiga. Nariz
aquilino. Cabelos finos. Bigodinho negro. A cabeça levantada, nobre, tem aura.
A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas e calças largas, sapatos de
verniz. Parece suportar, nas costas retas, as barbatanas retiformes de um
manequim retígrado, que tudo vê, tudo olha. O gesto, o olhar com que,
altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais, soberanamente, por
concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, é como se
olhasse de cima, de um patamar superior. Ouço-o falar um português erudito,
postiço, livresco, clássico e impostado, mas fluente. (...) o terno branco
brilha. Bem talhado. Camisa de seda, suspensórios, colete, um John Bull de ouro
maciço atravessado, preso por uma corrente de aros duplos, pesada, platina e
ouro. Ele é um homem de vitrine, de museu, arrumado. Na cintura há um Smith de
níquel e prata, cabo de marfim. Dizem que ele atira bem, como um militar, que
coleciona armas, revólveres, carabinas, arcabuzes que entulham a Sala de Armas
da sua tropa de choque.
Não sei por que Pierre
Bataillon quis que eu ficasse, trabalhasse com ele. Gostou de mim.[i]
O narrador
rogeliano, nesta fase de seu romance, apresenta o personagem Pierre
Bataillon, aos leitores de seu presente histórico e aos leitores do futuro, por
meio de uma escrita que se constitui agregando à linguagem ficcional a técnica
da linguagem visual cinematográfica. O desenrolar narrativo propulsor de sua ressurreição
pela água, ao nascer do dia (sinal de que as trevas ígneas que
protegeram/protegem os mistérios familiares e os raros símbolos
começam a desvanecer-se), movimentar-se-á, de ora em diante, em favor de uma
querela íntima que o incomoda, enquanto alter ego do escritor Rogel Samuel: a
perda dos puros valores míticos da tradição amazônica em confronto com os
valores degradados da modernidade (últimos alvores da Era Moderna já em
decadência). O incômodo se faz visível, uma vez que uma das questões centrais
do romance, em suas duas partes iniciais (a forma de economia do Manixi
ficcional/Amazônia real do início do século XX em confronto com a perda de
antigos valores mítico-sociais), relaciona-se com a economia pré-zona franca da
cidade de Manaus. Os pensamentos da pura estética do ar, como já
expliquei anteriormente
(elemento condutor para a
alteração do exterior narrativo), aqui, acoplou-se à água
revitalizante em benefício de um renovado direcionamento ficcional. À moda dos flashes
cinematográficos, ou à moda dos desenhos em quadrinhos oriundos das artes
plásticas, os quais revitalizaram a priori as imaginações juvenis do
século XX, o Ribamar de Sousa sai do rio-conducente renovado, pronto para
futuras peripécias ficcionais (pós-modernas). O narrador-personagem se apropria
do olhar intelectual e da mão trabalhadora e do imaginário-em-aberto sui
generis de seu criador, elementos próprios da escrita pós-moderna,
descontínua e fragmentada, para assinalar a ocasião do encontro. O escritor
pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, através de seu avatar ficcional,
está, no momento, vivenciando o rico passado da Amazônia (vivenciando o seu
próprio rico passado cronológico-familiar) por intermédio de um presente
histórico transfigurado. Por meio da dialética temporal
(Bachelard) e do conhecimento da técnica da apresentação narrativa
(essência épica), as cenas (“de vitrine”) oriundas de íntimas ondas
elétricas e de especialíssimos raios de luz, se vão revelando,
intermitentes (“flashes fracos, aparecem e desaparecem”), primeiramente diante dele e,
posteriormente, diante do compenetrado leitor, para, paradoxalmente, revelarem o apogeu e declínio do poder imperialista-capitalista no Amazonas.
Se queremos
que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender,
pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se
mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade
de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria
"duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois
procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até
lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas.[ii]
Neste capítulo
intitulado CINCO:
FERREIRA, especialmente, o escritor amazonense Rogel Samuel alcançou o
que Bachelard denomina de “pensamentos de pura estética”, pensamentos situados
no terceiro cogito da consciência singular, em outras palavras, pensamentos de
transcendência formal. Rogel Samuel transcendeu os limites impostos pelas
diversas leituras (foram dez anos de pesquisa, segundo suas palavras), “pelas
formas, através do apelo às formas”, por intermédio de uma intrigante
“dialética temporal”. A apresentação de Pierre Bataillon não é uma simples
identificação e qualificação de um personagem importante ao decurso narrativo.
Pierre Bataillon é o símbolo dos primeiros capitalistas estrangeiros que
povoaram a região amazonense, inclusive, símbolo das raízes estrangeiras do
autor. Em sua pessoa ficcional se concentra, além da exuberância dessas antigas
figuras políticas, a questão de uma passada economia oriunda da extração da
borracha, anterior ao momento culminante da Zona Franca de Manaus.
O capítulo
intitulado CINCO:
FERREIRA é uma referência ao personagem Antônio Ferreira, advogado,
“agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho” [Comendador Gabriel
Gonçalves da Cunha, seu sogro], (...) “um menino”, um “meninão branco, mãos
delicadamente tratadas, cabelos anelados, negros, caindo aos cachos sobre os
aros de ouro dos óculos”. Antônio Ferreira aglutina em si todos os
aventureiros-espertalhões que transitaram por Manaus nos anos iniciais do
progresso amazônico, e ali enriqueceram (muitos, por intermédio de casamentos
por conveniência).
[ii] BACHELARD. A poética do devaneio. Trad. de Antônio de Padua Danesi. 1. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1988: 95.
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