quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico

NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi
 
Primeiramente avisto o Palácio.
 
O dia está nascendo. (...). Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto, toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o rei, o construtor do império amazônico, (...). Apareço trazido pelas águas, como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa.
 
Pierre Bataillon é homem mais baixo e magro do que eu pensava. Bem vestido, empertigado, gestos largos, modos aprumados, nervosos, uma dignidade, uma cortesia à antiga. Nariz aquilino. Cabelos finos. Bigodinho negro. A cabeça levantada, nobre, tem aura. A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas e calças largas, sapatos de verniz. Parece suportar, nas costas retas, as barbatanas retiformes de um manequim retígrado, que tudo vê, tudo olha. O gesto, o olhar com que, altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais, soberanamente, por concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, é como se olhasse de cima, de um patamar superior. Ouço-o falar um português erudito, postiço, livresco, clássico e impostado, mas fluente. (...) o terno branco brilha. Bem talhado. Camisa de seda, suspensórios, colete, um John Bull de ouro maciço atravessado, preso por uma corrente de aros duplos, pesada, platina e ouro. Ele é um homem de vitrine, de museu, arrumado. Na cintura há um Smith de níquel e prata, cabo de marfim. Dizem que ele atira bem, como um militar, que coleciona armas, revólveres, carabinas, arcabuzes que entulham a Sala de Armas da sua tropa de choque.
 
Não sei por que Pierre Bataillon quis que eu ficasse, trabalhasse com ele. Gostou de mim.[i]
 
O narrador rogeliano, nesta fase de seu romance, apresenta o personagem Pierre Bataillon, aos leitores de seu presente histórico e aos leitores do futuro, por meio de uma escrita que se constitui agregando à linguagem ficcional a técnica da linguagem visual cinematográfica. O desenrolar narrativo propulsor de sua ressurreição pela água, ao nascer do dia (sinal de que as trevas ígneas que protegeram/protegem os mistérios familiares e os raros símbolos começam a desvanecer-se), movimentar-se-á, de ora em diante, em favor de uma querela íntima que o incomoda, enquanto alter ego do escritor Rogel Samuel: a perda dos puros valores míticos da tradição amazônica em confronto com os valores degradados da modernidade (últimos alvores da Era Moderna já em decadência). O incômodo se faz visível, uma vez que uma das questões centrais do romance, em suas duas partes iniciais (a forma de economia do Manixi ficcional/Amazônia real do início do século XX em confronto com a perda de antigos valores mítico-sociais), relaciona-se com a economia pré-zona franca da cidade de Manaus. Os pensamentos da pura estética do ar, como já expliquei anteriormente (elemento condutor para a alteração do exterior narrativo), aqui, acoplou-se à água revitalizante em benefício de um renovado direcionamento ficcional. À moda dos flashes cinematográficos, ou à moda dos desenhos em quadrinhos oriundos das artes plásticas, os quais revitalizaram a priori as imaginações juvenis do século XX, o Ribamar de Sousa sai do rio-conducente renovado, pronto para futuras peripécias ficcionais (pós-modernas). O narrador-personagem se apropria do olhar intelectual e da mão trabalhadora e do imaginário-em-aberto sui generis de seu criador, elementos próprios da escrita pós-moderna, descontínua e fragmentada, para assinalar a ocasião do encontro. O escritor pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, através de seu avatar ficcional, está, no momento, vivenciando o rico passado da Amazônia (vivenciando o seu próprio rico passado cronológico-familiar) por intermédio de um presente histórico transfigurado. Por meio da dialética temporal (Bachelard) e do conhecimento da técnica da apresentação narrativa (essência épica), as cenas (“de vitrine”) oriundas de íntimas ondas elétricas e de especialíssimos raios de luz, se vão revelando, intermitentes (“flashes fracos, aparecem e desaparecem”), primeiramente diante dele e, posteriormente, diante do compenetrado leitor, para, paradoxalmente, revelarem o apogeu e declínio do poder imperialista-capitalista no Amazonas.
 
Se queremos que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas.[ii]
 
Neste capítulo intitulado CINCO: FERREIRA, especialmente, o escritor amazonense Rogel Samuel alcançou o que Bachelard denomina de “pensamentos de pura estética”, pensamentos situados no terceiro cogito da consciência singular, em outras palavras, pensamentos de transcendência formal. Rogel Samuel transcendeu os limites impostos pelas diversas leituras (foram dez anos de pesquisa, segundo suas palavras), “pelas formas, através do apelo às formas”, por intermédio de uma intrigante “dialética temporal”. A apresentação de Pierre Bataillon não é uma simples identificação e qualificação de um personagem importante ao decurso narrativo. Pierre Bataillon é o símbolo dos primeiros capitalistas estrangeiros que povoaram a região amazonense, inclusive, símbolo das raízes estrangeiras do autor. Em sua pessoa ficcional se concentra, além da exuberância dessas antigas figuras políticas, a questão de uma passada economia oriunda da extração da borracha, anterior ao momento culminante da Zona Franca de Manaus.
O capítulo intitulado CINCO: FERREIRA é uma referência ao personagem Antônio Ferreira, advogado, “agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho” [Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, seu sogro], (...) “um menino”, um “meninão branco, mãos delicadamente tratadas, cabelos anelados, negros, caindo aos cachos sobre os aros de ouro dos óculos”. Antônio Ferreira aglutina em si todos os aventureiros-espertalhões que transitaram por Manaus nos anos iniciais do progresso amazônico, e ali enriqueceram (muitos, por intermédio de casamentos por conveniência).


[i] Idem: 48-49.
[ii] BACHELARD. A poética do devaneio. Trad. de Antônio de Padua Danesi. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988: 95.

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