segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
 
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do Segundo Narrador
 
 
            Em seu “sonho de origem” (proximidade do arcabouço mítico, orientado, em um plano superior, pelo bugre Paxiúba), o primeiro narrador, secundado interlinearmente pelo segundo, e este, por sua vez, pelo criador ficcional, percorre a “correnteza negra” (amorfa) da intuição fértil, “extasiado e sem pensar, com as estrelas”[i], submetido ao próprio ser estrelado (corpo estrelado) do criador ficcional. Nesse momento, o que está em pauta é o presente mítico do fecundo escritor amazonense, suas “horas noturnas” sublimadas (engrandecidas), suas “muitas horas entre sombras”, seus “segredos e lágrimas” se dissolvendo em meio às próprias angústias imponderáveis. Entretanto, esta matéria de sonho (ar) terá de ser temporariamente ativada pela magia do fogo revigorante (um fogo mítico extraordinário), para iluminar os gaseificados instantes (“raros instantes”) do “espaço adormecido” do próprio escritor. Para que o narrador Ribamar não se perdesse “em confusas lembranças “de uma noite estrelada, com segredos e lágrimas se dissolvendo”, a matéria ígnea (o fogo) foi ativada incondicionalmente, para imolar “os parentes”, em benefício do comparecimento do bugre Paxiúba.
Da página trinta e sete a quarenta e sete, o conhecimento do arcabouço mítico amazonense ─ indígena ─ se iluminará em favor do segundo narrador (avatar do escritor), o qual, sonhadoramente, como explica Bachelard, buscará as mil lembranças de seu próprio passado. Nas páginas do romance, estão todas as gravuras, existenciais e/ou míticas que marcaram a solidão reflexiva do escritor Rogel Samuel. “O verdadeiro espaço do trabalho solitário é dentro de um quarto pequeno, no círculo iluminado pela lâmpada”[ii], afirma Gaston Bachelard.
Sobre os relatos subsidiados pelo fogo, Bachelard orienta-me:
 
Com o fogo tudo se modifica. (...). Segundo afirma Paul Valéry, nas artes do fogo “nem abandono, nem descanso, nem flutuações de pensamento, de coragem ou de humor. Elas impõem, sob o aspecto mais dramático, o combate cerrado entre o homem e a forma. O seu agente essencial, o fogo, é também o pior dos inimigos. É um agente de precisão temível cujo efeito maravilhoso sobre a matéria que apresenta ao seu redor é rigorosamente limitado, ameaçado, definido por certas constantes físicas ou químicas difíceis de observar. Qualquer desvio pode ser fatal: a peça fica arruinada. Se o fogo esmorece ou se ateia de mais, o seu capricho redunda em desastre”...[iii]
 
A criação ficcional de Rogel Samuel, no instante do impasse narrativo, necessitou do auxílio do elemento fogo, principalmente do fogo mítico em sua forma destrutiva, para que, posteriormente, auxiliado pelo elemento água, pudesse realçar a imagem de uma Amazônia lendária e selvagem (feminina e masculina), ameaçada de extinção por obra e graça do poder do capitalismo selvagem. O fogo que iluminou o cogito reflexivo do escritor não esmoreceu e nem se ateou de mais. Foi contemplado numa hora de ociosidade [ociosidade = repouso ativado] em toda a sua vivacidade e brilho para que o escritor, a partir da página 48, pudesse revelar aos pósteros os grandiosos, inacreditáveis, e, posteriormente, extintos segredos capitalistas do Manixi.
De qualquer forma, a partir do incêndio transformador, a água será o elemento de condução criadora da narrativa ficcional rogeliana, substância esta já anunciada (no primeiro capítulo) como imprescindível para o desenrolar do relato. Depois do “fogo da labareda da serpente” ─ uma indicação de que o plano mítico se avizinhava/avizinha-se ─, o narrador Ribamar de Sousa [mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [foi] levado e [se afastou] dali”. “Uma correnteza negra” [o abraçou, o envolveu, o levou]. O fogo, segundo Paul Valéry (citação de Bachelard), “é um agente essencial”, mas “de precisão temível” cujo “efeito maravilhoso é limitado”[iv]. Portanto, referendando a fase de transição para o plano mítico-ficcional, a consciência singular deste autor amazonense, conhecedor das limitações ígneas, exige a distinção de uma substância que possa se tornar também propulsora de “surpresas de muitos outros ocorridos”[v].
Nesse impasse narrativo, há a incomum “aproximação” do fogo com a água, enquanto elementos naturais da extensão geográfica amazonense. Para tanto, para explicitar o repouso ativado (o sonho) e a necessidade de um interregno estimulante (representado pelo arcabouço mítico-ficcional da heroicidade ativada do bugre Paxiúba), a água se tornou/se torna “uma correnteza negra”, indício de que as lembranças dos caudalosos rios da terra natal, no momento, são “um convite à morte” (morte mítica), como explica Gaston Bachelard, em seu livro A Água e os Sonhos[vi]. As lembranças da terra natal não são alentadoras ao escritor, são pesarosas. A “correnteza” aquática, cogitativa, ainda não se desprendeu dos “rolos negros da fumaça” do pensamento interativo, operador de incêndios literários grandiosos. O criador ficcional (tão somente ele, apesar de Roland Barthes, o da primeira fase estruturalista, continuar, fantasmagoricamente, a contaminar-me com a sua assertiva: o narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve confundir o autor com o narrador) se encontra às voltas com a “dipsomania (impulso mórbido) da morte”[vii].
Nesse instante criativo de Rogel Samuel, a substância essencial para o “ócio” dipsomaníaco (repouso fervilhante a impulsionar o criador ficcional para a representação dramática da morte) é a água negra, e, para este tipo de água, “que permite penetrar num dos refúgios materiais elementares”[viii], não existem palavras consoladoras. Por tal razão, percebe-se um veto contra a chamada explicação linear (exemplar), instaurando-se o vazio ficcional (ou espaço em branco), sobre o qual o leitor terá de se debruçar e preenchê-lo com o seu próprio imaginário. Esta forma pós-moderna de narrar, no parágrafo em questão, está perceptível. O ficcionista-narrador, submetido por sua vez ao seu próprio repouso fervilhante, enquanto seu primeiro personagem-narrador se debatia/se debate na milenar água do histórico-ficcional, logo a seguir, desvendou o caminho secreto que o levaria a interagir com o plano mitificado da realidade amazonense. Por esse ângulo interpretativo-reflexivo instaura-se o interregno fabuloso de Paxiúba, pois o personagem-narrador Ribamar de Sousa “não soube de mais nada do que se passou, “não [soube] como [fugiu e mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [afastado] dali”. Os “parentes” morreram, “mas... [ele] ainda estava vivo e não ferido”.  No caso, a água de “treva fria”, mitificada, não permitiu a morte do primeiro narrador rogeliano, dignificando-o também como o narrador decisivo da segunda seqüência mítico-ficcional.


[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 36.
[ii] BACHELARD, Gaston. 1989: 108.
[iii] Idem: 9.
[iv] VALÉRY, Paul. Pièces sur l’art: 13. In: BACHELARD, 1989: 62.
[v] SAMUEL, 2005: 47.
[vi] BACHELARD, Gaston. 1998: 58.
[vii] Ibidem.
[viii] Ibidem.

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