NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
SOBRE
O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Ribamar de Sousa: A Máscara Ficcional do
Segundo Narrador
Em seu “sonho de origem”
(proximidade do arcabouço mítico, orientado, em um plano superior, pelo bugre
Paxiúba), o primeiro narrador, secundado interlinearmente pelo segundo, e este,
por sua vez, pelo criador ficcional, percorre a “correnteza negra” (amorfa) da
intuição fértil, “extasiado e sem pensar, com as estrelas”[i],
submetido ao próprio ser estrelado (corpo estrelado) do criador ficcional.
Nesse momento, o que está em pauta é o presente mítico do fecundo escritor
amazonense, suas “horas noturnas” sublimadas (engrandecidas), suas “muitas
horas entre sombras”, seus “segredos e lágrimas” se dissolvendo em meio às
próprias angústias imponderáveis. Entretanto, esta matéria de sonho (ar) terá
de ser temporariamente ativada pela magia do fogo revigorante (um fogo mítico extraordinário),
para iluminar os gaseificados instantes (“raros instantes”) do “espaço
adormecido” do próprio escritor. Para que o narrador Ribamar não se perdesse
“em confusas lembranças “de uma noite estrelada, com segredos e lágrimas se
dissolvendo”, a matéria ígnea (o fogo) foi ativada incondicionalmente, para imolar
“os parentes”, em benefício do comparecimento do bugre Paxiúba.
Da página
trinta e sete a quarenta e sete, o conhecimento do arcabouço mítico amazonense
─ indígena ─ se iluminará em favor do segundo narrador (avatar do escritor), o
qual, sonhadoramente, como explica Bachelard, buscará as mil
lembranças de seu próprio passado. Nas páginas do romance, estão todas as gravuras,
existenciais e/ou míticas que marcaram a solidão reflexiva do escritor Rogel
Samuel. “O verdadeiro espaço do trabalho solitário é dentro de um quarto
pequeno, no círculo iluminado pela lâmpada”[ii],
afirma Gaston Bachelard.
Sobre os
relatos subsidiados pelo fogo, Bachelard orienta-me:
Com o fogo tudo se modifica.
(...). Segundo afirma Paul Valéry, nas artes do fogo “nem abandono, nem
descanso, nem flutuações de pensamento, de coragem ou de humor. Elas impõem,
sob o aspecto mais dramático, o combate cerrado entre o homem e a forma. O seu
agente essencial, o fogo, é também o pior dos inimigos. É um agente de precisão
temível cujo efeito maravilhoso sobre a matéria que apresenta ao seu redor é
rigorosamente limitado, ameaçado, definido por certas constantes físicas ou químicas
difíceis de observar. Qualquer desvio pode ser fatal: a peça fica arruinada. Se
o fogo esmorece ou se ateia de mais, o seu capricho redunda em desastre”...[iii]
A criação ficcional de Rogel Samuel, no instante do
impasse narrativo, necessitou do auxílio do elemento fogo, principalmente do
fogo mítico em sua forma destrutiva, para que, posteriormente, auxiliado pelo
elemento água, pudesse realçar a imagem de uma Amazônia lendária e selvagem
(feminina e masculina), ameaçada de extinção por obra e graça do poder do capitalismo
selvagem. O fogo que iluminou o cogito reflexivo do escritor não esmoreceu
e nem se ateou de mais. Foi contemplado numa hora de ociosidade
[ociosidade = repouso ativado] em toda a sua vivacidade e brilho para
que o escritor, a partir da página 48, pudesse revelar aos pósteros os
grandiosos, inacreditáveis, e, posteriormente, extintos segredos capitalistas
do Manixi.
De qualquer forma, a partir do incêndio
transformador, a água será o elemento de condução criadora da narrativa
ficcional rogeliana, substância esta já anunciada (no primeiro capítulo) como
imprescindível para o desenrolar do relato. Depois do “fogo da labareda da
serpente” ─ uma indicação de que o plano mítico se avizinhava/avizinha-se ─, o
narrador Ribamar de Sousa [mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva
fria e rápida, e [foi] levado e [se afastou] dali”. “Uma correnteza negra” [o
abraçou, o envolveu, o levou]. O fogo, segundo Paul Valéry (citação de
Bachelard), “é um agente essencial”, mas “de precisão temível” cujo “efeito
maravilhoso é limitado”[iv].
Portanto, referendando a fase de transição para o plano mítico-ficcional, a consciência
singular deste autor amazonense, conhecedor das limitações ígneas, exige a
distinção de uma substância que possa se tornar também propulsora de “surpresas
de muitos outros ocorridos”[v].
Nesse impasse narrativo, há a incomum “aproximação”
do fogo com a água, enquanto elementos naturais da extensão geográfica
amazonense. Para tanto, para explicitar o repouso ativado (o sonho) e a
necessidade de um interregno estimulante (representado pelo arcabouço
mítico-ficcional da heroicidade ativada do bugre Paxiúba), a água se tornou/se
torna “uma correnteza negra”, indício de que as lembranças dos caudalosos rios
da terra natal, no momento, são “um convite à morte” (morte mítica), como
explica Gaston Bachelard, em seu livro A Água e os Sonhos[vi].
As lembranças da terra natal não são alentadoras ao escritor, são pesarosas. A
“correnteza” aquática, cogitativa, ainda não se desprendeu dos “rolos negros da
fumaça” do pensamento interativo, operador de incêndios literários grandiosos.
O criador ficcional (tão somente ele, apesar de Roland Barthes, o da primeira
fase estruturalista, continuar, fantasmagoricamente, a contaminar-me com a sua
assertiva: o narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve
confundir o autor com o narrador) se encontra às voltas com a “dipsomania
(impulso mórbido) da morte”[vii].
Nesse instante criativo de Rogel
Samuel, a substância essencial para o “ócio” dipsomaníaco (repouso fervilhante
a impulsionar o criador ficcional para a representação dramática da morte) é a
água negra, e, para este tipo de água, “que permite penetrar num dos refúgios
materiais elementares”[viii],
não existem palavras consoladoras. Por tal razão, percebe-se um veto contra a
chamada explicação linear (exemplar), instaurando-se o vazio ficcional
(ou espaço em branco), sobre o qual o leitor terá de se debruçar e preenchê-lo
com o seu próprio imaginário. Esta forma pós-moderna de narrar, no parágrafo em
questão, está perceptível. O ficcionista-narrador, submetido por sua vez ao seu
próprio repouso fervilhante, enquanto seu primeiro personagem-narrador
se debatia/se debate na milenar água do histórico-ficcional, logo a seguir,
desvendou o caminho secreto que o levaria a interagir com o plano mitificado da
realidade amazonense. Por esse ângulo interpretativo-reflexivo instaura-se o
interregno fabuloso de Paxiúba, pois o personagem-narrador Ribamar de Sousa
“não soube de mais nada do que se passou, “não [soube] como [fugiu e mergulhou]
“na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e
[afastado] dali”. Os “parentes” morreram, “mas... [ele] ainda estava vivo e não
ferido”. No caso, a água de “treva
fria”, mitificada, não permitiu a morte do primeiro narrador rogeliano, dignificando-o também como o
narrador decisivo da segunda seqüência mítico-ficcional.
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