terça-feira, 22 de abril de 2014

A Elegia Nº1 de Mauro Mota



Elegia Nº1 de Mauro Mota


Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas
tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gesto de desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.




As regiões desertas

Rogel Samuel

Em que reside a beleza dessa elegia?
Entre outros elementos pela visão, mãos, lábios, pálpebras, cabeleira, corpo e alma, pendentes por um fio de cabelo.
As mãos libertam gestos. Os lábios frases. As pálpebras, as visões do amor, as regiões desertas.

 
Mauro Ramos da Mota e Albuquerque (Nazaré da Mata, 16 de agosto de 1911Recife, 22 de novembro de 1984) foi um jornalista, professor, poeta, cronista, ensaísta e memorialista brasileiro.
Filho de José Feliciano da Mota e Albuquerque e de Aline Ramos da Mota e Albuquerque, estudou na Escola Dom Vieira, em Nazaré da Mata, no Colégio Salesiano e no Ginásio do Recife. Diplomou-se na Faculdade de Direito do Recife, em 1937.



Lembranças do interior

Mauro Mota

 



CHUVA DE VENTO


De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.


VALSINHA DA BANDA DE MÚSICA MUNICIPAL

Música da
Banda Euterpina
Juvenil de
Nazaré da Mata

tocando ao
luar de prata.
(O seresteiro
achando a rima
da serenata.)
Música pelo
Natal; na festa
da padroeira.
(A procissão,
Nossa Senhora
da Conceição.)
Música nos bailes
de carnaval
e em funeral.

Seu Miguel ensaiava de noite, na Rua
da Palha, para as tocatas coletivas.
Nunca mais deixei de ouvir
as suas noturnas melodias na janela.
Sinto que ele acorda e volta de longe nesta madrugada.
Limpa a farda de tempo e areia,
vem do cemitério de São Sebastião,
vem com a sua valsa de antigamente,
vem com o seu clarinete na mão.


INSTANTÂNEO

No pátio da igreja de São Sebastião,
depois da missa cantada e da comunhão,
Dona Santinha, em perfeito estado de graça,
com o véu, o livro e o terço na mão,
murmurava a um grupinho que Padre João
estava, na sacristia, se derretendo
para a filha mais nova do sacristão.


LEILÃO



– Quanto dão? Quanto dão

– Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.

– Esta bengala de castão de ouro!

– (onde anda sem levá-la o dono
antigo?)

– Esta arca colonial!

–(falam dedicatórias de retratos.
Falam cartas de amor, a voz
trancada.)

– Esta mobília de jacarandá!

–(As visitas na sala, o pai, a mãe,
a irmã, a avó cochila no sofá.)

- Este faqueiro de prata!

– (Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)
– Esta cômoda do século XIX!

–(Soluçam as gavetas, dentro delas,
cheiro de roupa branca e de alecrim.)

– Esta louça azul de Macau!

– (A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta
xícara os vestígios dos lábios da
menina.)

– Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?
E a moça presa dentro desse
espelho do toucador do quarto de
dormir!

– Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro. Bate o martelo, bate aqui,
dói longe.
 

 

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