O IGARAPÉ DO
INFERNO, 2
Zequinha,
não. Não e não! Relações exclusivas: Maria Caxinauá e o bugre Paxiúba, o Mulo.
Você ri? Ri? Gosto. Você ri. Você acha a minha fala muito velha? À medida que
envelheci, reinventei a fala, pra falar, e você sabe. Sabe, tenho pouco tempo
de vida. Não, não. Tenho. Já sinto a mordida da morte. Minto?
Zequinha
nasceu em 1890, no Manixi. No meio daqueles índios. Eram os Caxinauás, mansos
mansos. Eram os Numas, violentos, assassinos eles.
O Seringal
Manixi se estendia que muito além das margens do Igarapé do Inferno. Aquilo
saía no Igarapé Bom Jardim, que sai no Rio Jordão, e deságua no Rio Tarauacá,
tributário do Rio Juruá, afluente do Solimões. Não é o fim do mundo? Onde?
Onde? Ah, você? Lá, no rendilhado labirinto de ilhas e trilhas, de furos e
lagos. Lá nasceu Zequinha, filho da vida do fim do mundo, filho do Pierre Bataillon
e da dona Ifigênia, oh, essa mulher hábil, aparentada da família Vellarde, são
colombianos, sabe? — seu pai era primo de D. Angel. A lenda ainda circula na
cidade de Tarauacá. Atribuem a ela a rainha da riqueza, rainha. As ligações
peruanas e colombianas de D. Ifigênia. Na guerra do Acre. Pierre se deu bem com
os dois lados. Seu Seringal ficava do outro lado, fora da área conflitada.
Fora.
A educação
refinada de Zequinha foi outro caso.
Em 92,
quer dizer, em 1892, a malária dizimava os curumins de todos os lados, todos,
nas barrancas do Juruá. A família Bataillon, instalada à bordo do Barão de
Juruá, não saía, com medo.
E cruzou
por ali um cargueiro inglês.
Não, não
está gravando, menino, socorro, não tá. Já se foi, se foi. O cargueiro se
chamava Santa Maria de la Mar Dulce — o Paraná-guaçu — mas também Vicente Yanes
Pinson, pois ia, antes de dizer, que fizera parte de um acordo. O Santa passava
por ali, no momento, de bubuia, de descida, de embalo, debaixo do sol dourado,
apresentando vasta e esteira branca, bigodão cheio, a proa cortando com fúria
as águas pardas em direção a ponta do Fagoroso, do Inhame, do Capareral, talvez
de Forso, em virtude da aparência de um perfil de mulher, e dali para as ilhas,
rota batida da nossa borracha. O quê? Ah, sim, sim.
Pois bem,
pois bem, pois sim, muito bem. Se você quiser eu paro, paro de contar, muito
bem, muito bem, gosto de você, belezinha, assim gosto, me dá um pouco de café,
mais forte, estou morrendo, hoje escolhi para morrer. O quê? Já senti a ponta
da mordida da morte. Você está ouvindo, surdo? Surdo surdo. Conto conto.
Em 1894,
ou seja, dois anos depois, a epidemia passou, e os Bataillons estavam de volta
ao Manixi, quer dizer Zequinha, sua mãe. Sabe: um segredo, voltou só ele e a
mãe. Portanto Zequinha ficou até os oito anos de idade entre os índios, sob a
influência da Caxinauá. Sinto não sinto. Não e não. Olho pra você e digo: eis
ai quem tem. Sinto não.
Em 1898
Zequinha voltou para capital do Reichland de Alsácia-Lorena, os primeiros
estudos. Morava ao lado da catedral famosa, fama. Conheço a catedral de
Estrasburgo. O relógio conheço. Aos quinze anos está de volta, no Seringal
falando francês, alemão, tocando piano, foi quando amasiou-se com a índia Maria
Caxinauá.
Em 1907,
ficou órfão de mãe. D. Ifigênia faleceu. Ele voltou, de novo, para a Europa,
voltou para Paris. Morava na Rue de Sevres, se não me engano, em companhia de
uma mulher desconhecida. Daí também morre de malária seu pai, em 1910, e ele
vem para cá, de novo, já para vender tudo, o Manixi, o império selvagem, homem
de muita fortuna. Mas sim. Mas há quem diga que os dois morreram no naufrágio.
Mentira, mentira.
Uma coisa
é certa: o jovem Batailon assim como sabia tocar excelentemente uma sonata de
Beethoven ao piano, podia, o puto, podia andar inteiramente nu pela mata. Como
um índio!
Sim, seu
desaparecimento nunca foi explicado.
Me dá um
pouco de café, estou ficando cego, cansado, não acabo a merda desta estória, oh
esse seu Narrador , menino, nunca fique velho, não! mate-se antes, dane-se
enquanto jovem, mas não deixe a decomposição da velhice chegar. Isto é
humilhante! E estou velho porque tenho medo, medo de morrer. Medo! A velhice é
o medo! Medo de morrer. Eu sempre fui suicida, sabe, mas já velho mudei,
fraquejei, por isso tenho medo de morrer. O suicida tem medo de morrer. Morre
antes, morre logo. Quê? Você quer me matar, é? quer me assaltar? É? Ho ho, sinto,
sinto isso, sinto, sinto, conto. E digo, já fui muito rico. Rico! Como é mesmo
o seu nome?
Menti? Não
menti. Velho não mente. Inventa. Sou mais velho do que este mundo. Já perdi a
noção da Verdade. Bonito? Ah ah. Você evangélico acha isso bonito? Tudo aqui é
velho, as fotos, os móveis. Tudo sujo. Vivo aqui há muitos anos. Antes, tinha
uma mulher que vinha, limpava, mas a Geralda morreu, morreu. Como é esta morte?
Eu vivi, vivi e nao ria, não, o que não sei como é a cara da morte. Nunca saberei.
Saberei. Oh, sim, já. Ah ah, você vê? Você vê? Conto, conto. Está uma puta
chuva, meu Deus, vai alagar tudo tudo. Que frio!
Aonde eu?
Bem. Foi lá. Lá. Foi na Praia do Cuco, à margem esquerda do Igarapé do Inferno,
que foi visto pela última vez. Do outro lado ficava a Ponta do Fedegoso. Ali
eram vistos, em outras épocas, os Numas, os guerreiros Numas nus, escondidos na
vegetaçao, entre Tacacazeiros da Várzea, os paudebalsa, molongós que ali
nascem, entre cipós titicas e cordas de tucum. Ali tem mais , muita sorva
assassina, massaranduba, ja foi lugar de viração de tartaruga, de arapoca de
cheiro, de ucuúba, de anil. Oh, vida vida. Sabe, menino, você é muito bom para
mim. Você me faz bem lembrar. Você até me da vontade de me matar. Viver? Com
força, com unhas e dentes, com sangue, com pus, e não quero beber o bolero. Ah
ah, não tenha medo, não sou louco. Não. Vi um homem velho morrer abandonado
sozinho no seu colchão – ele estava deitado em cima de um mar de suas fezes.
Você não que saber o que é a morte? Era aquilo, a cama se tinha transformado
numa bacia de fezes, mesmo na parede havia fezes coladas, respingadas,
espalhadas, tudo aqui fedia, pois aquele homem era agora uma montanha de
excrementos e o fedor era sentido já no corredor da entrada do prédio, como
algo estranho, mais que fecal, excrementício, coliforme, como uma borra
aveludada de esgoto úmido e pútrido. Aquilo, digo, entrava pelos narizes e não
saía nunca mais da narina da gente como se nos infeccionasse e contaminasse e
empestasse por dentro com a matéria pestilenta da morte.
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