quarta-feira, 23 de abril de 2014

O IGARAPÉ DO INFERNO, 6

O IGARAPÉ DO INFERNO, 6

ROGEL SAMUEL

           


                Eu já contei essa estória, já. Eu passei a vida toda de palavras de nada. Era 1898. Era. Eu sei o ponto. O que você pensa? Passo aqui os dias e noites pensando nessa coisa morta, vaga, lenta, recompondo dias e noites, que há muito perdi o sonho da vida, do mundo, o Amazonas está longe, longe, noutro lugar. Talvez eu nem saiba mais como eu era, nessa minha estória, pois tenho que inventar para fugir para contar que estou aqui.




            Em 1898.


            Naquela época, havia o bugre enorme, caboclo Paxiuba. Tinha quase um metro e noventa de altura. Cada braço valia um monstro. Era bicho do mato, me lembro dele. Vi briga dele, vi a mosca morta fedorenta da morte, a conversa dele, assassino, sim, sim, sem sussurro. Aquele bugre era filho de um negro, de um barbadiano sem nome, com uma índia caxinauá. É o que dizem. Mas isto sei. Conheceram o pai dele, na estrada de ferro Madeira-Mamoré. O pai ainda era maior. Mas morreu cedo, de malária.




            Como sempre, ali naquele término se desembainha o Igarapé Bom Jardim – tão belo! – que desce no misterioso Jordao que corre ao largo do Rio Tarauacá que vai morrer no Alto Juruá de águas barrentas como leite – que sai triunfantemente no Solimões, no Amazonas, o Rei de todos os rios. O meu Rio. O Amazonas é o meu rio!




            Nas águas aneladas, enleadas, chagadas de mágoas do vale verde está a minha alma, lá no fundo está tudo, o começo de tudo e o fim – quando eu estiver pra morrer vou pro fundo daquele inferno verde.


            Paxiuba ia sempre ao porto daquele mulher, a Zilda, cheia de corpo, roliça, peitos de bom parto, a mãe, boa parideira. Chegava ali remando, silencioso e úmido. Canalha! A hora em que a Zilda lavava roupa era sagrada – o marido dela na estrada da mata, colhendo o leite das árvores seringueiras, e ela na beira do igarapé, lavando roupa. Às vezes até cantava, a infeliz. Eram canções que hoje já ninguém conhece, como a que tinha aquele refrão:




            Eu morro, eu perco a vida,


            Mas o amor dela não hei de deixar...




            E ela nem o via. Nunca! Ele de repente surgia na frente! Ela na prancha do cais, acocorada, batia roupa, a espuma saindo assim do muito sabão de borboletas brancas transparentes bolas ensaboadas coloridas em aéreo visitar, bobas bolas brancas voadoras se indo pelo ar da manhã daquilo como crianças de neve ou anjinhos leves de virgem maria. E Zilda de costas de cócoras concentrada na trempe, de sorte que não o tinha visto chegar de tão concentrada estava... ou fingia não ver... e vapt... e vapt... batia roupa branca na espuma do sabão do rio branca se esparzindo pelo ar como bolhas voadoras coloridas.




            – Bons dias...


            Aquela voz a assustava e assustou. Sempre se ouvia falar dele, das mortes e das mulheres estrupadas pelo bugre. O coração disparava. Pois aquela voz reconhecia, repercutia, reproduzia numa cantilena perigosa e mole, pegajosa, dela mesma saindo, era a voz, ela sabia, no que há de se ver do ventre, das suas íntimas facilidades carnes indefesas, ela arrepiava asco, sensação de arrepiante de medo, horror paralisante, r eceio terno, medo quente, temor, pavor, solidão, na repulsa e na aversão do ódio que a dominava pois o marido nunca tinha conseguido fazer com que ela chegasse ao orgasmo, quando não há gente no rio é que tinha mais aquilo que inspirava o horror o show o ouvir daquela voz masculinizada mole de macho que vinha vindo de dentro dela para a visitar sempre daquela maneira, ela sabia, a Zilda, sabia o que ele estava querendo, ela toda guarda fechada indefesa da desconfiança que assim ficava, tinha medo daquele homem, daquele herói, ele sempre teve o que quis, bastava esperar – era assim com a caça e com a pesca – ela ali sozinha, o marido no mato da estrada, o vestido bem molhado, a vírgula tremeluzente, úmida, nua entre as pernas a vigília, a roupa rasgada, as pernas grossas, paradas, olhando nem tristes nem medo nem nada, – pois bastava ele Paxiúba se aproximar para que ela começasse a uma espécie de pânico de um onanismo mental nos paus da margem como se fossem aqueles consolos, e prosseguia e prosseguia sempre ainda meio tomada como que dormindo, aquilo era um asar, aquilo era uma praga, um ser misterioso aquele belo macho, uma cobra, ou víbora venenosa, sonho mau de ainda não acordar no breu da noite soturna, volúpia ensandecida, – bastava saber-se olhada por aqueles olhos fixos para saber-se possuída, arrasada, entregue, atravessada, e cega como se estivesse nas estrelas, na lua, e tudo muito mole na noite no dia, quase nao sentia que ia que queria morrer ou que tinha sido tomada na surdez do êxtase dos limites da morte selvagem, e era assim que Paxiuba queria e conseguia as mulheres, o corpo dela todo doente tremia como se estivesse em transe, – sim, os poetas tinham os poemas, e os homens os seus pertences , – como é? Que é? Quem?




            Era em 1898.


            Era. Eu sei, nesse ponto. Você pensa? Passo as horas vagarosas nesse aqui e posso sonhar comigo, no meu mundo amazônico, sozinho, reconstruindo as cenas que há muito perdi no rumo daquelas águas. Talvez os outros nem saibam que aquilo ainda exista, nem nessa minha velha sala eu posso ver como um filme na parede, ninguém está entre os meus velhos fantasmas, com quem falo, sempre. Em 1898, eu não vivi. Paxiuba tinha 20 anos, naquela época. Mas nunca deixou de ter caça e mulher que quis, a mulher e a caça e a pesca, como sempre quis, no porto do Laurie Costa ou em outro qualquer lugar, ali, no paraná do Igarape Bom Jardim, Rio Jordão, Tarauacá, Juruá, Solimões, Rio Amazonas. 6.000 km de águas barrentas correndo para o mar.

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