O IGARAPÉ DO INFERNO, 3
ROGEL SAMUEL
Eu
passei a vida toda de palavras. Eu passei a vida toda de palavras de
nada. É a mesma estória! Esta é a mesma velha merda! Estou só. Estou
perdido! Mas sei. Lembro-me de que eu era assim, homem do qual de mal se
podia dizer perdido. Do pior. Talvez até fosse um vivente das Amazonas,
da exótica Amazônia minha terra, terra santa e mata. Palavra? Nada,
nada, as palavras nada valem, eu passei a vida toda de palavras de nada,
mais nada, nada mais.
Eu
passava os dias e as tardes. A mim. Foi, digo. Trabalhar é executar
aquelas danças de índio, sabe? Você vê? Sabe? Também não, não? Você está
fazendo o quê aqui, hem? Quando? Você tem medo? Sei. Eu? Ah ah ah, você
me faz rir, há o cheiro ácido da morte em cada ponto e canto.
Eu
passei a vida toda de palavras de nada! Canto. Te paguei pra ouvir, te
peguei para ler, esse serviço feito. Mas fica de olho, que eu te engano,
vê se não acabou. Sim. Ah, estou mais muito mais morto que vivo, sabe,
vou até te contar a estória secreta do meu fim, do que vivo desta morte.
É, já fiz muita coisa, já.
Pois
eu era assim, tão certo que era. E não parava em canto em ponto algum,
incomodado por bicho, viajando, pelos rios, em Manaus, Paris. Às vezes
sumia, era assim. Homem dúbio, substituí o sim e o não. Vivia às vezes
no Seringal, com índios, nordestinos, homens da balata, e aqueles todos
bêbados, na palha da desgraça, tapiris cheios de escorpiões e aranhas
caranguejeiras. Beira-d'água tem mosquito, lama. Cheiro podre de peixe,
lixo, merda, ácida.
Solteiro.
Raramente com alguma cunha, alguma puta, caboclinha nova, de passagem.
Dizem que fodi com a Conchita del Carmen, não sei não. Zequinha entre
homens, comia com os homens, eles. Dizem que era bicha. Não garanto. Era
assim, no quente. Comia peixe molho grande, caldeirada de tambaqui,
tucunaré cozido, pacu frito com cará, sardinhas, leite de castanha,
pirarucu de casaca, farinha do Arini com banana assada, o no escabeche,
no assado na folha da bananeira, tucunaré, pato, no tucupi, tigelas de
açaí, beiju, tapioca branca brava, coco ralado, cuscus de milho verde,
ralado, cozidos no vapor — tudo com garopa, sono profundo na rede, colo
de rede de prazeres, prazeres do quê? Você ainda acredita? Ah ah ah – eu
sou ele, porra: o Zequinha Bataillon. Ainda bem. Ah ah ah ah... Sacana.
Canto: Zequinha era capaz de embriagar e hipnotizar aqueles homens
todos, que o amavam, que o idolatravam, todos, calados, sorumbáticos,
mergulhavam num silêncio verde, o silêncio verde, a cola, a sela as
almas, vivi aquilo.
Zequinha
ficava no Palacete Manixi. Paxiúba dormia debaixo da cama, como um cão.
A Caxinauá contava estórias tristes, de Índio, fodia. O Amazonas é um
lugar bonito, amaldiçoado... Maldição de Ajuricaba, o herói do Rio Iiaá.
Ajuricaba caiu na emboscada dos soldados, amarrado a ferros, posto no
fundo. No meio da viagem para Belém se libertou e saiu matando os
soldados que estavam no convés com a corrente e gritos lançando-se nas
águas escuras do Rio Negro, onde desapareceu. A morte é a escravidão!
Queriam-no vivo para o humilhar, os fidalgos portugueses. Não! Antes
morrer, amaldiçoou ele no rio. Não há peixe ali. Isso aconteceu em 1729.
Depois, Belchior Mendes de Moraes, um capitão, fez a grande chacina,
matou mais de 30.000 índios, cerca de 300 malocas, e o rio passou a se
chamar Rio Urubu. Mais tarde, 40 mil índios foram mortos por uma
epidemia de varíola, espalhada de propósito em presentes, roupas.
Varíola infecciosa, contagio por vírus, o corpo cheio de pus, erupções
purulentas, muito horror aquela morte, raquialgia, máculas, pápulas,
vesículas, pústulas, cegueira, crises nervosas, respiratórias, a morte
lenta, no meio da selva, hemorragias cutâneas, o corpo podre comido de
formigas carnívoras. Morte.
Me
dá a tua mão! Estou morrendo! Estou dizendo. Tenho pouco pouco tempo de
vida. Eu digo. Naquele dia Zequinha deu sumiço de si, no meio da
floresta, a mata cheia de cobras, insetos, sanguessugas, moscas de
ferrão, o pium, o carapanã, as mutucas, as cabo-verdes, os potós, os
catuquis, os morimbondos, as cabas, as muriçocas, as suvelas, os
besouros, as formigas. Ah, as formigas. A saúva antropófaga devora um
vivente em minutos. Abandonados, os cadáveres da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré quando se ia buscar só ossos brancos. Tem a formiga de
fogo, a saca-saia, a lavapés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a
carregadeira, a táxi, a tracuá. Principalmente a tocandira, grande,
peluda, dói tanto que dá febre. E a formiga roceira, a cortadeira, a
guerreira, a correição... Martius disse populações inteiras fugindo das
formigas. As açucareiras são capazes de por pra correr um exército. São
milhares milhões bilhões de bilhões de formigas. Atravessam matas, rios,
em balsas de si mesmas.
Zequinha voltava do Rio Jordão.
Tinha
ido ao Barracão do Manuel de Faria, chamado "Trapiche do Commercio",
onde ele comprava os vinhos franceses, os Collares, do Porto, Whisky
Black, Alyrrod, Eduardo VII, Whitelys, Black Botle, o licor Benedictine —
: Chartreuse, Pipermint, Anesone, Anizete, Curaçao d'Opio, Marraschino,
Kümel, Cognac Macieira, Bisquit, Vermouthes. A Champagne Duc de Reims. E
fiambre, o presunto português, sardinhas em lata, queijo da Serra da
Estrella, queijo Eyssen holandês, a lagosta o salmão, o chá Lontra. E
tinha ali Gramofones de Victor, discos de Caruso, máquinas de costura
New Home, selas inglesas...
Eu
tinha ido ao Rio Juruá, de 3.200 km de extensão — águas velhas,
nervosas, barrentas — no copo dágua apresentam em minutos três dedos de
argila no fundo. No Juruá viviam 49 tipos de índios — rio cheio de
perigos, torrões, salões, pedrais, muiunas, rebojos, ituranas, panelas,
eu passei a vida toda de palavras de nada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário