LOGO limpo, satisfeito, depois do jantar,
estava de melhor humor. O Barão prosseguia sua viagem no meio da noite -
uma temeridade, mas como era de esperar Ferreira queria o navio em Manaus logo.
O rumor das máquinas já não o incomodava, resignara-se. Frei Lothar subiu para
a popa, para uma espécie de terraço no escuro. Estava sozinho. O vento começou
a fazer-lhe bem, aquele vento tinha um cheiro terno, uma alma terna, ele ficou
vendo a noite escura, na navegação de descida, entre o vulto das sombras. Era
assim que ele sempre se sentia - um passageiro do mundo. Nunca parava, noite a
dentro, vida a fora. Ficou pensando no homem que tinha assistido em Villa
Seabra. Aquele homem ia morrer ... Que coisa é a morte? Que coisa é a fé?
Muitos homens tinham morrido nos seus braços, e ele nada pudera fazer. Que
coisa era a morte? Sua fé há muito perdida. Lixe-se o Provincial! O que Frei
Lothar via e viu durante toda vida - não foi Deus: Foi a dor, a dor e a morte,
a miséria e a desolação. Frei Lothar se levantou com esforço, saiu dali e foi
ao camarote de onde veio com o violino. Sentou-se. Ia estudar até o sono
chegar. Era a Segunda Partita de Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia
superar certas dificuldades. Tocava sem a partitura. Estudava sem a partitura,
no escuro, dentro do vento veloz. Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem
ninguém. Oh! No Amazonas era assim. O Amazonas não tinha partitura, não tinha
luz, nem ninguém. O Amazonas era uma imensa planície de miséria. A depressão
econômica pairava no seu monstruoso silêncio. A Partita saía quase boa dos
artríticos e velhos dedos. Nunca tivera tempo de estudar, nunca tivera
condições, acomodações. Viajava com o violino em navios e em canoas, nos furos
e lagos, e por pouco não se perdeu o violino junto com os escorpiões: aquele
era um violino precioso, simbolizava o que ele não tinha sido. O mau padre, o
mau médico, o mau violinista. Nunca fizera nada bem. Nada inteiro. Agora estava
velho, fraco, tinha pouca fé, pouca ciência, pouca técnica. Oh, pior que a
morte é a mediocridade! Frei Lothar pensava, o violino gemia, ladainhas,
recitações, reflexões. Assistira os doentes sem recursos, dissera missas sem
paixão, e agora tocava mal a Partita. Sem remédios, sem partituras, sem
higiene, sem saber. Frei Lothar tocava com imaginação. O violino era um
Guarnerius. Tinha sido presente de Juca das Neves, um dos poucos homens por
quem Frei Lothar tivera amizade. Na verdade, os Guarnerius não são imitação.
São aprimoramento dos Stradivários e muito mais sonoros, apropriados para as
salas de testes e grandes orquestras, ao passo que os Strad eram camerísticos.
Ajudado pela inspiração, a Partita saía quase boa. O Barão avançava no
meio da noite. De repente, o Frei se lembrou do Concerto Duplo - beleza! - e
emendou a Partita num dos trechos de sua parte. No Concerto Duplo tudo era
ânsia, sublimidade. Ele se imaginava no meio da orquestra, lembrava-se dos
sonhos de ser músico, e não padre, mergulhava no concerto ouvindo o violoncelo
e toda a grande orquestra. Via as galerias repletas, de onde explodia o
sucesso, o aplauso, tudo aquilo bem longe do Amazonas, bem longe da morte. Ele
foi levado pelo devaneio. Por quê? Do antigo misticismo não sobrava nada. Por
quê? Tocava Brahms cortando ao meio a floresta Amazônica. Por quê? A noite
corria no altíssimo, e o céu da Amazônia de repente ficou transparente e claro
e coberto de estrelas que cintilavam, e tudo lhe apareceu de uma só natureza,
num bloco em que ele não existia mas estava integrado num todo - e Frei Lothar,
parando de tocar, correu para a amurada com lágrimas nos olhos, e de repente
viu, em êxtase, que a Imensidão e a Eternidade apareciam subitamente ali na sua
frente, vindo e chegando a ele, amplas, entrando por seus olhos, por seus
ouvidos, e tudo era um só Incomensurável ... - e ele, integrado, eterno, deu um
grito e se sentiu incompreensivelmente feliz
Rogel Samuel: O amante das amazonas.
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