terça-feira, 29 de abril de 2014

O IGARAPÉ DO INFERNO, 9

O IGARAPÉ DO INFERNO, 9
           



            Fui eu o primeiro a avistar uma fêmea Numa. Ao vivo. Mas fui o único.

            Aquelas águas escorriam desde o princípio do mundo, das partes íntimas do mundo. Gigantescas árvores deixam passar águas que vêm dos desconhecidos lugares numas. Os Numas lhes pertencem, da sobrevivência, esquecidas, feridas, passam. Frias. Se perdem. Perigo, atroz.

            A princípio não se pode delimitar com precisão. Onde as terras dos Numas? Onde as do Seringal?

            Depois se vêem.

            Sentem-se.

            No cheiro.

            Nas raras marcas macias.

            Uma flecha, especada no talo da árvore, atravessada na picada, vermelha. Um sinal.

            Um galho, quebrado, que diz: “Não passarás”.

            E, além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio em morte, que se separa.

            Pode-se banhar e pescar, mas deste lado. Nunca do outro lado. O lado secreto.



            Mas aos poucos os Numas se infiltravam.

            Avançavam. Atravessavam.

            Passavam além de si mesmos. Não respeitavam seus próprios limites.

            Atravessaram o rio, a ordem, o marco que existia, invisível, no rio e na floresta.



            A conduta, o êxtase, a curva onde moravam, o mediante, o perfeito domínio, os Numas se mexiam, silenciosos, invisíveis, nos múltiplos lados do rio, um rio em “S”, quase em sacado, um domínio incompreensível, ignorado, em torno do qual se distribuíam os seringueiros, aquela parte alta, terra-firme, cuidadoso controle, cordialidade.



            O Seringal, todas as noites, era invadido por fantasmas.



            O mundo se economizava.



            Harmonia de gestos, noturnos, em nenhum momento involuntários, violentos, irrompendo no pacto tênue, presente, do espírito do silencioso do palco armado.

            Não basta saber.

            Não basta esquecer.

            Não basta falar.

            Assegurar a paz, conforme um crime, como se a verdade dependesse do oculto.

            Não. Nada assustá-los, provocá-los.

            Não ameaçá-los, procedimentos que advertiam a hierarquia estabelecida. Eles, fantasmáticos e míticos. Eles, em liberdade de vento.



            Porque eles eram Nada.

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