domingo, 6 de abril de 2014

Rogel Samuel: CRÍTICA DA ESCRITA

(FOTO DE R. SAMUEL)


Rogel Samuel: CRÍTICA DA ESCRITA

            

De longe no rio surgem palavras, signos inusitados, estranhos à generalização do desconforto náutico da canoa fantasma, para desequilíbrio da verdade dos fatos, esquema psicanalítico de que o anacoreta é o desvario, a sombra e a marca de um limite. Sua insânia é uma instuspecção coletiva, contagia e envolve a absorção da própria prática da vida. Quando surdir, duende, refluído, recaído sobre si mesmo, predileto de si, portador do atemporal de seu passado, peregrino do rio e agora estrangeiro, preso, preso da mitologia, preso de si mesmo e a si mesmo pelo obscuro de sua própria soltura em tão poucas páginas, dentro do seu hábito de narrativas e clausuras, absorto, no germinar e no disseminar do contágio de seu desvario, ele será o verdadeiro contra-herói de uma genealogia moral, patriarcal, peregrino e único que, na estória, é passageiro da vida, embora circular, embora cíclica.

Aceita, melancolicamente, o filho, a sombra dos gestos, índices, o exaspero das lágrimas, a fascinação das promessas da infância (de ir, também), num transbordamento de queridas crenças, a unidade da predestinação. Na planura das almas que ficam, riscam-se as aventuras externas do pai, seus movimentos espontâneos. O poder multiplicador dos seus fragmentos errantes de nós mesmos, paisagem imaginária, ostentações insatisfeitas e inatingíveis: A alma do rio é extensa e tênue, comunica a mobilidade de auras, delgadas, temporais, a inconsistência interior, as camadas estratificadas do solo tradicional que se quebram pelo recurso do silêncio, o não ao verbo, pondo em crise o narrador (afluentezinho do rio). O silêncio do pai (só raros gestos), manifestação plena, um esquema seco, restrito, despojado, mas não estéril, sobre os fios de prata das águas luminosas, ou sobre a tonalidade veludamente negra da noite, o silêncio do pai é um simbolismo, símbolos marchando, constelações de espíritos das gentes, retirando-se o pai não se isola em si, somente, mas nos isola, a todos, com a dificuldade de conciliação e de articulação de seu anti-discurso, eliminado, reduzido a uma solidão que se desenha, sem mais nada, nas regiões mortas das águas, em que todas as coisas parecem recordadas, vivem civilizações paradas, geleira social: Uma ilusão feraz, fecunda — o pai não formula a questão: Quem me ama? é amado pelo filho, pelos familiares, ama, há amor, a outrance.

 

 

Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar: este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livro, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma crítica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura.

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