O IGARAPÉ DO INFERNO, 8
Tudo
aquilo está hoje em ruína descontínua, tudo aquilo acabou, a minha descrição
corresponde ao que ele era, o Palácio, há muitos anos, na minha mocidade, na
perdição da minha memória. Mas as árvores no meio da floresta estão lá, para
confirmar a existência e elaboração.
Ainda vejo
bem o corpo retorcido daquele edifício oitocentista no alto da terra-firme,
plantado como marco por conta de rios de sangue e de milhares de libras
esterlinas, o reluzente ouro da borracha.
Era longe,
muito longe, afastado de tudo, afastado de si, distante.
Eu não
sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico,
luxuoso, tricotado em filigranas de ouro e pedras preciosas, de um outro modo,
de um outro tempo, quando o Palácio buscava sua imagem na natureza perdida.
Ali havia
uma sala de música, onde se via um pequeno piano Pleyel, e a vitrine, onde
Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o
Klotz, o Vuillaume), as gravuras, representando Viotti, Baillot, David,
Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim. Havia a máscara mortuária de Beethoven, laureada
em bronze, de Stiasny.
Mais além
a Biblioteca, em que Madame Sabóia lia em voz alta versos de Lamartine.
Depois
vinham salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias vazias e
inúteis, cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em
galerias e corredores restritos, e que se fechavam em si mesmos, ao som do
piano de Pierre Bataillon em diálogo com o violino de Frei Lothar naquela
sonata de Mozart.
Como
alguém que se concentra em si, num poder surdo, ágil, terrível, que se
expressava nas paredes de estuque, pintadas com irisações de ouro esverdeado e
escuro, numa entrançadura de ritmos e galhadas e folhagens de vegetação
alucinada e japonesa que subia por aquelas formas até ao teto refletidas nos
espelhos de cristal, nas flores dos lustres, de modo a evocar a lembrança de
algum exótico prazer.
Sim, sou
eu um velho escroto de um outro século.
Por isso
me demoro em descrever, tudo em minúcias, aquele Palácio onde vivi, onde
observei, onde apreendi, durante tantos anos. Eu passei a vida toda de palavras
de nada.
E aquela
povoação de objetos e móveis antigos, descrevendo monstros e mitos: a cômoda
veneziana, a visão da atividade sexual da imagem; o armário de Boulle, as cenas
de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a
tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos, na idiotia de vistosas
calças vermelhas e botas pretas, e o silêncio rigoroso do gabinete inglês; a
dinâmica, a morfologia prostituída do divã de Delanois; a unidade e variante
elíptica do canapê - os cipós, íris, cardos, insetos estilizados, filiformes,
incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses, num delírio
neo-rococó.
Dá para
descrever as estátuas sobre lambrequins? E as rocalhas e rosáceas ecléticas,
urnas nas cimalhas dos balcões, as cariátides, os capitéis?
Pierre
Bataillon compôs e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na
consumação daquelas mobílias suntuosas, amontoadas e sem uso, no processo da
esquizofrenia desejante na reprodutora boca desumanizada para pôr fim ao
exagerado dos seus lucros, no autofágico prazer do espetáculo de seu capital
luxuriante, arte vã, fútil e suicida, em doença, em loucura, em mortes e crimes
impunes vários povos desapareceram ali, nos critérios de uma singular estética
do capital, nos vazios de um paganismo coquete, amoral e moderno.
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