NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE
SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
No segmento
narrativo-ficcional do capítulo CINCO: FERREIRA, (não confundir com
narrativa épica), a chamada narrativa de acontecimento (marca das
narrativas do século XX), diferente das narrativas de personagem do
romantismo e das narrativas de espaço do realismo-naturalismo, se faz
visível. Para penetrar no Palácio de Pierre Bataillon, o
narrador-personagem Ribamar de Sousa utiliza-se da técnica ficcional do
acontecimento fantástico, uma vez que não há nada que explique como
Ribamar se salvou, depois do incêndio da Floresta, onde pereceram seus
“parentes”, o tio e o irmão. Pelo ponto de vista dos estudos
semiológicos do texto ficcional (de segunda geração), tal impasse
narrativo é denominado como narrativa de acontecimento, modalidade
fantástica, justamente porque não há as tais explicações lineares, e o
personagem se recupera no plano das probabilidades existenciais sem se
lembrar dos detalhes do acontecimento insólito. Entretanto, ainda de
acordo com a semiologia de segunda geração (Greimás, Roland Barthes,
Anazildo Vasconcelos), o personagem se restaura de uma forma diferente
da anterior, ou seja, o Ribamar não mostrará mais a face do retirante
nordestino, assumindo, por outro lado, as feições do político manauara.
Recuperando aqui as diretivas foucaultianas: se antes faltou ao
estudioso francês o “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios
do jogo enunciativo, para teorizar sobre as palavras e as coisas, em seu
livro do mesmo nome, preso que estava, à época, às normas do poder
estruturalista, atualmente já há como desenvolver um pensamento
interpretativo, mesmo que este se volatilize a partir do próprio
estruturalismo. Para repensar este capítulo do romance, não há como
sistematizá-lo em um só paradigma teórico. A própria escrita telegráfica
do primeiro parágrafo assim o impõe. São períodos curtos, são flashes
instantâneos, como bem explica o narrador Ribamar de Sousa: “Flashes
fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e
se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa” . Nestes
aparentes flashes fracos (flashes fortes), o narrador-personagem
sintetiza uma cena cinematográfica que poderia preencher páginas e
páginas de escrita paraliterária. No entanto, com poucas e criativas
palavras, o narrador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda
Geração conduz os leitores a uma cena ímpar: o aparecimento de Ribamar,
depois da interseção ígnea, no cais fluvial de Pierre Bataillon, trazido
pelas águas, como Moisés do Egito.
Ainda, repensando a
questão pelo prisma foucaultiano, “a problemática da população” e “a
arte de governar”, naquelas paragens amazonenses próximas às fronteiras
da Bolívia e Peru, nos séculos XVIII e XIX, não se originaram do governo
familiar de modelo colonial português, ao contrário, o modelo familiar
amazonense, principalmente o da capital do Estado, até aos dias de hoje,
reflete o modelo familiar francês e uma certa influência alemã, herdada
naturalmente do convívio da população citadina e ribeirinha com os
padres alemães e prussianos, das congregações católicas que por ali se
aclimataram. Influências marcantes, também, poderão ser diagnosticadas,
levando-se em consideração as grandes expedições de estudiosos franceses
e germânicos da fauna e flora da região amazonense e adjacências, e do
domínio centralizador e familiar de muitos desses estrangeiros que se
colocavam como donos (e se colocam ainda) de extensões e extensões da
Grande Floresta, desmatando-a implacavelmente, além de subjugar a
população nativa e os retirantes nordestinos, que para ali se
deslocaram, nas épocas das grandes secas, em busca de melhores meios de
vida. O próprio romance rogeliano oferece-me pistas reveladoras.
No decorrer do século
XX, o capitalismo primitivo, originário da Revolução Industrial do
século XVIII, conhecido por “capitalismo selvagem” (dezesseis horas de
trabalho por dia, ou mais), foi se modificando gradativamente, e, já nos
anos finais do referido século passado, conheceu uma nova forma de ser
entendido em termos mundiais. Antes, no Brasil especialmente, era a
escravidão explícita ou camuflada do trabalhador assalariado: horas de
trabalho além do normal e dívida permanente para com o empregador, uma
vez que o “patrão” era também o dono dos postos de venda de mercadorias
necessárias à sobrevivência de seus empregados (carne-seca, farinha de
mandioca, açúcar, sal, etc.).
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